terça-feira, 28 de junho de 2016

Ir à Praia





Gosto muito de carapaus secos mas conheço mal a Nazaré.

Passei lá férias uma única vez e, nestes mais de sessenta anos que, entretanto, decorreram, os dedos de uma mão são, talvez, suficientes para contar os regressos, sempre de curta duração, meras passagens diurnas.

No último desses regressos impressionou-me o imenso casario que amalgamou a Praia e a Pederneira, o Calhau e o Sítio. Tudo, bem diferente das memórias antigas que guardo dessas tais férias, as minhas primeiras férias, teria eu cinco, no máximo seis anos, menos alguns dias.

Curiosamente, julgo que ainda lá está a casa onde nos instalámos, na esquina da Avenida Vieira Guimarães com a Rua de Sub-Vila. Um pequeno prédio em cujo rés-do-chão havia uma taberna que era propriedade ou gerida por um vizinho daqui da borda da serra, o Zé Rebocho, dos Casais de Santa Teresa. No primeiro andar era a residência do comerciante e nós ocupamos o sótão.  Perto, ficavam a garagem das camionetas da carreira que não sei se eram dos Claras se dos Capristanos e o mercado que penso estar no mesmo sítio embora em edifício diferente, se é que em 1953 ou 1954 o mercado já tinha edifício.

A Rua de Sub-Vila, na parte a sul da Vieira Guimarães, era a dita taberna e pouco mais. O campo começava logo ali, o alcatrão acabava e seguia-se, entre canaviais, por um estreito caminho de areia onde apenas cabia um carro de bois.

Lá mais adiante, o caminho fazia uma curva e era, por oeste, elevado em relação ao terreno para onde eu e o Quim da Pequena descemos, (na verdade, o Quim da Pequena diz que subimos para uma elevação de areia, uma duna que havia na borda do caminho). Subindo ou descendo, certo é que, à sombra de uns caniços, resolvemos aliviar a tripa que nós éramos rapazes do campo e no campo não havia casas de banho que, portanto, ali também nos não faziam falta.

Eis que do lado da Praia surge um carro de bois com seu abegão e, nele, empoleirado entre taipais, vinha um maganão de pé descalço, calça dobrada pelo meio da canela, camisa de flanela aos quadrados, cinta e barrete, como um bilhete postal.

Olhando lá para baixo (ou para cima?), para a sombra dos caniços, o dito descobriu-nos de calças na mão e, resolvendo chuchar com os dois turistas, trocou umas breves palavras com o condutor da junta e saltou do carro de vara na mão.

O meu primo já havia de andar pelos seus dez anos e foi rápido. Correu pelo talude desaparecendo num instante e só voltei a vê-lo já muito perto da taberna. Eu, tomado de um valente susto, lá consegui chegar ao caminho e correr, acabando também por me safar, perseguido pela risota dos pexins.

Imagino-me, neste dia ou num outro, rapazito do campo que de peixe tinha visto o pouco que chegava à Ataíja: umas sardinhas frescas para assar ou, as mais das vezes, já escaladas, salgadas e de barriga amarela que se comiam cozidas com batatas, uns carapaus que sempre se comiam fritos e chicharros que se vendiam ao par e a minha avó cortava em postas fininhas, um centímetro ou pouco mais, fritava, regava com molho de escabeche e guardava perto do pão, na buraca com porta de rede que havia na cozinha. Imagino-me dizia eu, de olhos esbugalhados ao ver a pexineira que na rua apregoava dois peixe-espadas, bichos enormes como eu nunca tinha visto, rabos a arrastar pelo chão, monstros que ela transportava erguendo ao alto os braços e enfiando-lhe nas guelras os dedos indicadores.

Não tenho dúvidas de que, perante tal visão, os meus olhos hão-de ter ficado tão surpresos como, um ano ou dois antes, tinham ficado na Senhora dos Enfermos perante o fotógrafo à lá minuta.

Esqueci-me de vos dizer que tudo se passava em Setembro, quando os camponeses iam à praia aproveitando (os poucos que podiam aproveitar) os escassos dias em que as terras não reclamavam presença, antes do São Mateus que era tempo de semear nabos e de preparar a adega, antes de começarem as vindimas que nesse tempo se faziam pelo final do mês e primeiros dias de Outubro.

Então, como agora, as festas em honra de Nossa Senhora da Nazaré agitavam o Sítio e, um dos momentos grandes da parte profana dos festejos era a tourada no dia 8 de Setembro. Lá fomos todos, subindo no elevador, para assistir à função.

Foi a minha primeira tourada. Lembro-me vagamente das cortesias e não terei desgostado do brilho dos trajes, da música, da animação da assistência e das habilidades dos cavalos. Da tourada nada vi ou nada me lembro salvo que, assustado com o rompante do touro, a esquiva do cavalo e os berros do cavaleiro, enfiei o nariz no colo da minha avó e de lá não saí até final do espectáculo. 

Curiosamente, quase não tenho memórias de nós na areia. Talvez lá não passássemos muito tempo. Afinal, nenhum tinha fato de banho e duvido que algum tivesse, sequer, molhado os pés no mar. Lembro-me, apenas, de andar por lá a vagabundear e, disso não duvido, sempre de olhos bem abertos, tentando saber e entender tudo, como ainda hoje gosto.

Seja como for, em certo dia de mar bravo, coisa não rara nos princípios de Setembro, a maioria dos barcos ficou na areia mas pelo menos uma traineira, mais destemida ou apenas incauta, fez-se ao mar, lançou o cerco da rede e, preso nela o peixe, empreendeu a manobra de regresso. Como quase sempre naquele tempo, o grande problema era passar a rebentação e conseguir varar na areia em segurança.
O mestre gritou ordens que permitiram apontar a proa à praia. Esperou a onda propícia e, agora a compasso, gritou gritos de ânimo aos remadores. O barco elevou a proa na onda e quando parecia que ia dobrar a espinha de água e chegar à praia foi de novo empurrado para o largo. Isto, uma vez, duas, três. Com as juntas de bois a postos, a areia ia-se enchendo de companheiros, amigos e familiares dos pescadores em perigo. Camponeses curiosos e de coração apertado ficaram um pouco afastados, ignorantes do que fazer, muitos fazendo coro com as mulheres vestidas de negro pelos maridos, filhos e pais sepultados naquele mar, as quais no meio de grande gritaria, invocavam Nossa Senhora da Nazaré e toda a corte celestial implorando a livrança dos infelizes.

Finalmente, um dos pescadores conseguiu saltar da traineira e chegar a terra arrastando uma corda que todos puxaram, bois e homens e mulheres, gentes da praia e do campo, até o barco varar na areia sem outros prejuízos que não o susto geral.

Nalgum canto da minha memória está gravada a visão de uma mulher de negro agachada na areia que, afastada da multidão e aparentemente alheia à aflição geral, recriminava:

É bem feito! Queriam o peixe todo!



Nota: Decidi passar a escrito estas memórias quando, há poucos dias, sobre a porta do prédio com o nº 161 da Rua de Campo de Ourique, em Lisboa, deparei com a representação do milagre da Nazaré que acompanha este texto.

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