domingo, 21 de maio de 2017

Inquirições Sobre a Pureza do Sangue do Reverendo Francisco Xavier da Veiga


O Boletim de Trabalhos Históricos é uma publicação do Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, de Guimarães, da qual, entre 1933 e 2003, saíram do prelo cerca de 50 volumes, agora disponíveis na internet, em formato PDF, no endereço: http://www.csarmento.uminho.pt/amap.asp

Entre os muitos textos publicados encontra-se um largo número de transcrições (sem indicação de autor) de Inquirições Sobre a Pureza do Sangue tendo em vista apurar da puritate sanguinis dos candidatos a cargos, conezias e respectivas prebendas, da Insigne e Real Irmandade de Nossa Senhora da Oliveira, de Guimarães.

A inquirição de genere era feita como condição para o exercício de cargos públicos, militares, religiosos e de ingresso em universidades. Não havendo uma lei geral sobre inquirições de genere, elas eram, no caso da Colegiada da N. Senhora da Oliveira, feitas “em observação do Breve de puritate sanguinis do m.to Santo Padre Urbano VIII”[i], nos termos do qual não seriam admitidos nos seus canonicatos e mais benefícios, os descendentes de hereges, mouros, hebreus e judeus, e se ordenava que antes da admissão de qualquer eclesiástico, se lhe fizesse a inquirição testemunhal de puritate sanguinis.

Sem prejuízo das motivações religiosas que os justificavam, os estatutos da limpeza do sangue mostraram sempre uma natureza volúvel, pervertida e manipulada. As suas disposições – que excluíam por motivos étnico-religiosos – foram sempre uma arma eficacíssima no conflito social e, em consequência, serviram para deslegitimar o adversário. E não apenas deslegitimá-lo, quer dizer, desprovê-lo dos seus direitos mas, também, para o excluir do nível social e político que lhe correspondia e, quando a luta alcançou dureza significativa, os estatutos serviram para o anatematizar como herege, forma irreversível de aniquilamento.[ii]

Mais comezinhamente, tais interrogatórios serviam, na prática, como uma forte e intransponível barreira ao acesso aos cargos públicos e eclesiásticos, por todos os que não eram cristãos velhos, seja, da velha nobreza que, assim, reservava para si o controlo das instituições e as inerentes vantagens e delas afastava quer elementos judeus, quer da burguesia ascendente, quer, ainda, eventuais adeptos das novas ideias protestantes.

Os interrogatórios eram os estabelecidos no Assento de 5 de Março de 1637, do Cabido da Colegiada de N. Sra. Da Oliveira,[iii] no qual se definiram as regras a observar para execução do Breve papal, estabelecendo um rigoroso guião de todas as fases do processo, incluindo as perguntas a fazer às testemunhas.
As dez perguntas serviam para a identificação da testemunha, se sabia porque tinha sido chamado[iv] e se tinha recebido instruções sobre o que responder ou não responder, eventual parentesco com o inquirido, conhecimento que tinha do inquirido, de seus pais e avós, paternos e maternos e qual a voz pública e fama do inquirido.

A pergunta chave era a nona:


Como, talvez, seria de esperar, a maioria dos candidatos nomeados para os cargos e prebendas da Colegiada de N. Sra. Da Oliveira, era natural ou originário de Guimarães e seus arredores, num círculo que se vai alargando e esbatendo para diversas localidades do Minho e Douro, chegando a Viana do Castelo, a Mesão Frio, e ao Porto. Mas, também encontramos um natural da Almagreira (hoje no município de Pombal) e – é essa a razão deste texto – um natural de Aljubarrota.
Muitos dos candidatos são parentes, em regra sobrinhos, dos cónegos a que sucedem, mas como sempre, aparecem situações mais insólitas, como a das “Inquirições do Reverendo Pedro Ferreira de Leiva coadjutor de seu avô o Reverendo Cónego Pedro Ferreira de Leiva” ou, as “Inquirições do Reverendo Miguel de Macedo Portugal coadjutor de seu avô Miguel de Macedo Portugal cónego neste Real Colegiada”. 

Mas, isso são contas de outro rosário. O que agora nos interessa são as

Inquirições do Reverendo Francisco Xavier da Veiga provido na meia conezia curada que vagou por falecimento do Reverendo Francisco José V. de Pina, 1779[v]

Ilustríssimo e Reverendíssimo Senhor
Diz Francisco Xavier da Veiga filho legítimo do Dr. Pedro dos Santos da Veiga e de sua mulher Eufrásia Maria Teodora de Niz, natural da Vila de Aljubarrota, Bispado de Leira que achando-se colado na Conezia meia Prebendada que vagou por falecimento do Reverendo Francisco José V. De Pina, deseja tomar a sua posse, e porque o não pode fazer, sem que Vossa Senhoria lhe mande fazer as diligências de genere,
Pede a Vossa Senhoria seja servido nomear-lhe Juízes Comissários para o devido efeito
Espera e Roga Mercê

O requerido obteve provimento e foram nomeados os Inquiridores e mandado que se procedesse às Inquirições do requerente, de seus pais Dr. Pedro Santos da Veiga e sua mulher Eufrásia Maria Teodora de Niz e avós paternos, Manuel Antunes e Catarina Francisca, do lugar de Alvados e maternos António de Niz do Vale e Margarida Amada, todos do Bispado de Leiria.
Em cumprimento do que, em 3 de Fevereiro de 1779, já se encontravam em Aljubarrota os cónegos João Lopes e João Baptista da Silva, da dita Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, de Guimarães e nessa data ouviram as testemunhas.
Foram elas:

Simão Baptista de Sequeira, então com setenta e nove anos de idade[vi], viúvo, natural da vila da Batalha, Capitão de Ordenanças da Vila da Cela[vii], Familiar do Santo ofício, morador em Aljubarrota há mais de cinquenta anos,
Reverendo Padre Joaquim de Proença Saraiva, Presbítero Secular, de cinquenta e quatro anos de idade, natural da freguesia de Souto da Casa, Termo do Fundão, Bispado da Guarda, morador nesta vila de Aljubarrota há quarenta e dois anos,
Veríssimo de Sousa Henriques, de sessenta e nove anos de idade, viúvo, Capitão da Ordenança da freguesia de S. Vicente desta mesma vila de Aljubarrota, natural e baptizado na Colegiada da S. João Baptista da Vila de Coruche, morador nesta vila há cinquenta e dois anos,
Doutor João Baptista de Oliveira Baena, Cavaleiro Professo na Ordem de Cristo, que serviu a Sua Majestade nos Lugares de Letras, natural da vila de Aljubarrota, casado, de setenta anos de idade,
Doutor Silvestre Torres Correia Triaga, de sessenta e quatro anos de idade, viúvo, natural e morador na vila de Aljubarrota,
Reverendo Padre José Gomes Ferreira, Presbítero Secular, de sessenta e seis anos de idade, natural e morador na vila de Aljubarrota,
Sebastião de Barros, lavrador, casado, de sessenta anos de idade, morador no lugar da Cumeira, freguesia de S. Miguel do Juncal, termo da Vila de Porto de Mós e natural do lugar de Alvados, freguesia de N. Senhora da Consolação, do mesmo termo,
Maria da Silva Bonifácia, solteira, de sessenta e quatro anos de idade, que vive de seus bens, moradora no lugar da Cumeira, freguesia de S. Miguel do Juncal, termo da vila de Porto de Mós e natural do lugar de Alvados, freguesia de N. Senhora da Consolação, do mesmo termo,
José de Barros, de sessenta anos de idade, casado, que vive de sua fazenda, morador no lugar da Cumeira, freguesia de S. Miguel do Juncal, termo da Vila de Porto de Mós e natural do lugar e freguesia de Alvados, do mesmo termo,

As testemunhas foram perguntadas aos nove interrogatórios “costumados em semelhantes diligências” e responderam, coerentemente, testemunhando que o Dr. Francisco Xavier da Veiga, Bacharel em Teologia e Clérigo in inmoribus, nasceu na vila de Aljubarrota, no Beco junto da Rua Direita e foi baptizado na Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres da mesma vila., sendo filho do Dr. Pedro Santos da Veiga e de sua mulher Eufrásia Maria Teodora de Niz, moradores no dito Beco, ele natural de Alvados, freguesia de Nossa Senhora da Consolação, termo da vila de Porto de Mós e ela da freguesia de Nossa Senhora dos Prazeres da vila de Aljubarrota.
Quanto aos avós do inquirido, as testemunhas naturais de e, ou, residentes em Aljubarrota deixaram para outras as afirmações peremptórias acerca dos avós paternos, mas não hesitaram em confirmar que António de Niz do Vale e sua mulher Margarida Amada, lavradores, avós maternos do habilitando e, ambos, já falecidos naquela data, foram naturais e moradores naquela vila de Aljubarrota, freguesia de Nossa Senhora dos Prazeres.
Das oito testemunhas ouvidas, duas eram naturais de Alvados e colmataram o menor conhecimento que as demais pudessem ter sobre Manuel Antunes e sua mulher Catarina Francisca, já então falecidos, avós paternos do habilitando, os quais foram naturais e moradores no dito lugar de Alvados
E, todos, que o habilitando era filho legítimo dos pais referidos e, também, neto legítimo dos avós mencionados e por tal sempre foi havido e reputado.
E, que o habilitando não era nem foi herege, “nem apóstata da nossa Santa Fé Católica” e que não era filho de pais ou neto de avós, paternos ou maternos, que cometessem crime de lesa-majestade Divina ou Humana por que fossem sentenciados e condenados nas penas estabelecidas pelas leis do Reino.
E que não sabiam nem nunca ouviram que o habilitando ou seus pais, ou seus avós, alguma vez tivessem sido presos ou penitenciados pelo Santo Ofício, ou incorressem em alguma infâmia pública, ou pena vil, e facto ou de direito.
E que tudo o que testemunharam era publico e notório.

E assim se concluíram, ainda naquele dia 3 de Fevereiro de 1779, as inquirições que foram vistas e aprovadas pelo Cabido de Nossa Senhora da Oliveira logo no dia 10 seguinte, permitindo, assim, que o Dr. Francisco Xavier da Veiga tomasse posse da sua conezia meia-prebendada numa das mais antigas e ricas colegiadas de Portugal.

Os inimigos do nosso padre doutor (que os tinha, certamente), não hão-de ter deixado de dizer, entre dentes, que ele tinha arranjado “um grande tacho”





[i] Breve Exponi Nobis, de 12 de Julho de 1636.
[ii] In Juan Hernandez Franco, Cultura e Limpieza de Sangre en la España Moderna, Universidad de Murcia, 1996.
[iii] O assento está transcrito no Boletim de Estudos Históricos, Vol. I, 1933-1936, p.39-48, disponível na internet (consultado em 5-5-2017) em: http://www.csarmento.uminho.pt/docs/amap/bth/bth1933-1936_13.pdf.
[iv] O processo queria-se inteiramente secreto.
[v] In Boletim de Estudos Históricos, Vol. XXVII, 1967-1974, p.160-172, disponível na internet (consultado em 5-5-2017), em: http://www.csarmento.uminho.pt/docs/amap/bth/bth1967-1974_04.pdf.
[vi] A idade das testemunhas era declarada pelas próprias que, em regra, acrescentavam “pouco mais ou menos”.
[vii] Talvez por parecer insólito que a testemunha residisse num concelho sendo capitão de ordenanças noutro, na transcrição o cargo está seguido de um ponto de interrogação. Mas, era mesmo assim, como se vê em Nuno Gonçalo Pereira Borrego, As Ordenanças e as Milícias em Portugal, Subsídios para o seu Estudo, Vol I, Guarda-Mor, Lisboa 2006, p.292

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