domingo, 27 de maio de 2018

Um comerciante ataijense na Lisboa do Séc. XIX





A Rua do Amparo em Lisboa é, hoje, uma curta passagem entre o Rossio e a Praça da Figueira ao lado norte desta, e paralela à igualmente curta Rua da Betesga que, ao sul, liga o mesmo Rossio à dita Praça[i] da Figueira.
Mas, nem sempre foi assim.

Até 1950 a Rua do Amparo, cujo nome vem de uma Capela de Nossa Senhora do Amparo que, antes do terramoto, por ali existiu fazendo parte do Hospital de Todos-os-Santos, começava na Rua do Arco do Marquês do Alegrete (actual Poço do Borratém), prolongando-se pelo lado norte da Praça da Figueira até ao Rossio.
Foi nos terrenos libertados pela ruína do Hospital Real de Todos-os-Santos que a seguir ao terramoto se começou a comerciar na zona da actual Praça da Figueira e, no projecto de reconstrução pombalina da Baixa, foi esse espaço destinado a mercado.
Esse mercado foi evoluindo e, pelo menos desde meados do Séc. XIX era já uma área de cerca de 8. 000 m2 fechada por um muro encimado por gradeamento a cujo interior se acedia por oito portas ocupando todo o quarteirão formado pelas ruas do Amparo, da Betesga, dos Correeiros e Nova da Princesa (actual Rua dos Fanqueiros). [ii]
Nesse tempo já o espaço era, como hoje, limitado pelos prédios do projecto pombalino que definem uma área de cerca de 12.000 m2.
Foi aí que se ergueu, entre os anos de 1882 e 1885, um grande edifício da chamada arquitectura do ferro, a “praça da Figueira”, que foi durante 64 anos, desde 1885 até 1949, (a par do mercado abastecedor da 24 de Julho inaugurado três anos antes, em 1 de Janeiro de 1882 e, ainda, parcialmente em funcionamento)[iii] um dos mais importantes mercados de Lisboa (no dizer de Fernando Pessoa, in “Lisboa – O que o turista deve ver”, o mercado central de Lisboa).

Em 1949 a “praça da Figueira” foi demolida e, no ano seguinte, a Câmara Municipal decidiu dar ao troço inicial da Rua do Amparo o nome de Rua João das Regras e integrar o troço central na nova Praça da Figueira, agora um grande espaço público, reduzindo a Rua do Amparo ao troço sobrante, de ligação com o Rossio.

Era aí, no nº 21 da Rua do Amparo, na hoje designada Rua João das Regras, numa porta onde há pouco funcionava (não sei se ainda funciona), sinal dos tempos, o Istanbul Kebab, comida Halal[iv], que o ataíjense Francisco Caetano Branco tinha o seu estabelecimento

Sabemos muito pouco deste Francisco Caetano branco. Apenas, que em 3 de Janeiro de 1883 foi celebrada a escritura de ratificação e confirmação da doação intervivos que fizeram Mariana Branca viúva e seus filhos Luísa, Francisca e Francisco, todos da Ataíja de Cima, e outra sua filha Maria e seu marido, a favor destes últimos,  Maria Branca e Sabino dos Santos Trindade, alfaiates, de “umas casas com seu pátio confrontando de norte e sul com ruas, nascente com José António de Castro e poente com Joaquim Felizardo”, que haviam sido verbalmente doadas pela Mariana Branca a sua filha Maria, uns seis anos antes, a título de dote pelo seu casamento com o referido Sabino dos Santos Trindade.

Qual seria a casa objecto da doação, só o poderemos saber quando soubermos quem eram os vizinhos José António de Castro e Joaquim Felizardo. Certo, certo, é que ela se situava no coração da aldeia, ente as ruas de Trás e a do lagar dos Frades, porque só aí há ruas próximas paralelas, só aí há casas que se confrontem a norte e a sul com ruas.

A escritura foi celebrada, como se disse, em 3 de Janeiro de 1883, em Alcobaça, no cartório do tabelião Francisco Eliseu Ribeiro e, nela, o Francisco Caetano Branco foi representado, mediante a competente procuração, por João Ângelo da Silva, casado, também da Ataíja de Cima. Na dita procuração o Francisco Caetano Branco é identificado como “solteiro, maior e sui juris[v], comerciante, morador na Rua do Amparo vinte e um”.

Tendo estabelecimento junto ao principal mercado de Lisboa, tinha a passar-lhe à porta um grande número de potenciais clientes e, por isso, talvez, um próspero negócio. Se assim era ou não, não o sabemos, nem sabemos qual era o ramo do seu negócio, nem mais nada sabemos sobre ele.

Duas curiosidades, para terminar:
Ao tempo da celebração da escritura, em 1883, a Mariana Branca era já duplamente viúva: Das 1ªs núpcias com Caetano dos Santos, casamento do qual lhe ficaram dois filhos, os referidos Francisco e Maria. Das 2ªs núpcias com António Dias, das quais lhe ficaram as filhas Luísa e Francisca.
A Mariana Branca e o Caetano dos Santos foram trisavós do nosso amigo Américo de Sousa Sabino.



 A praça da Figueira.



[i] Neste texto vai ser frequente o uso da palavra praça quer no sentido de mercado quer no de espaço público
[ii] Ver Carta Topográfica da Cidade de Lisboa, levantada entre 1856 e 1858 por Filipe Folque, in http://purl.pt/index/cart/aut/PT/44818.html
[iii] Embora ainda funcione como mercado – retalhista e já não abastecedor – o mercado 24 de Julho foi parcialmente transformado pela empresa multinacional Time Out num Food Market de grande êxito, com mais de 40 espaços gastronómicos diferentes.
[iv] Comida Halal refere-se aos alimentos autorizados e preparados de acordo com os preceitos da religião islâmica.
[v] Sui juris, é uma expressão latina usada em Direito Civil para significar que a pessoa é autónoma e livre, capaz de determinar-se sem depender de outrem. Em Direito Canónico refere-se às igrejas particulares, autónomas, que se encontram em comunhão com o Papa.