domingo, 12 de julho de 2020

Restaurante Doces Sabores

Um excelente restaurante na Ataíja de Cima





O texto com o título "Doces Sabores", aqui publicado em 28 de Março de 2011 e actualizado em 7-6-2018, tornou-se um dos textos mais vistos deste blog, contando actualmente com cerca de 4000 visualizações, sendo certo que não há semana em que não venha alguém consultar o texto, sinal de que o Doces Sabores é cada vez mais conhecido.

Visto o tempo decorrido de mais de noveanos sobre o texto original e dois anos sobre a sua actualização, é altura de, de novo, o actualizar até porque, bem o sabemos, um tal tempo é mais do que suficiente para mudar tudo num restaurante. Adiante-se, desde já que, no Doces Sabores, se alguma coisa mudou foi para melhor.

O antigo restaurante Apeadeiro, que Francisco Vigário Salgueiro abriu após o seu regresso da emigração em França, foi objecto de profunda remodelação e modernização em 2010 e reabriu, no início de 2011, sob a direcção de sua filha Silvie e com o novo nome de "Doces Sabores".

Muito bem situado, ao Km 98 do IC2, à entrada da Ataíja de Cima e junto de um importante conjunto de empresas que, pelo menos ao almoço, lhe fornecem a maioria dos comensais, no entroncamento com a Estrada do Lagar dos Frades (Estrada Municipal n.º 553), com um amplo parque de estacionamento e uma vista privilegiada sobre a Serra dos Candeeiros, é dotado de salas separadas, uma para pastelaria/café e outra para restaurante, esta com design e decoração da autoria da conhecida designer de interiores Patrícia Carvalho (http://www.patriciacarvalho.pt/), uma sala relativamente pequena, acolhedora, com decoração e mobiliário simples mas confortável, que tem resistido muito bem ao decurso do tempo.

Pouco depois da reabertura a gestão passou para a responsabilidade de Criações Gourmet e a cozinha foi confiada à direcção do Chef Carlos Roxo.

Desde então o Doces Sabores, que temos frequentado com regularidade, vem-se confirmando como um dos melhores restaurantes da região, onde a preços muito razoáveis se pode comer comida simples e bem confecionada, mas também carnes maturadas ou peixe no pão e saborosas sobremesas e, porque os olhos também comem, tudo empratado e apresentado com cuidado e gosto e suportado num serviço eficiente e simpático.

Sabemos como os tempos que atravessamos foram e estão a ser particularmente adversos para toda a indústria do turismo e serviços de restauração e similares. Para fazer face à dificil contingência o Doces Sabores passou a dispôr de um serviço de Take Away, não tendo, nunca,deixado de colocar os seus serviços à disposição dos seus clientes.

Por razões pessoais ainda não pude lá voltar depois do início da pandemia. Espero fazê-lo em breve e sair de lá satisfeito, como sempre. Entretanto, para os que não conhecem, deixamos aqui a nota de que o Doces Sabores tem no Google Maps um total de duzentas e doze comentários, na esmagadora maioria (e, em nossa opinião) merecidamente elogiosos, o que lhe dá a excelente apreciação de 4,3 valores em cinco.

Tal como no texto original de 2011 e na actualização de 2018, posso terminar dizendo que, em termos de relação qualidade/preço, o "Doces Sabores" merece a nota de MUITO BOM!

O "Doces Sabores" é um estabelecimento que valoriza a Ataíja de Cima.


quarta-feira, 1 de julho de 2020

Um cirurgião no Carvalhal


Em 27 de Outubro de mil oitocentos e dois, já lá vão quase duzentos e dezoito anos, foi enterrado dentro da Igreja Paroquial de São Vicente de Aljubarrota, António Francisco da Silva, casado, com Luísa Francisca, moradores na Ataíjade Baixo.

Era Pároco de S. Vicente o Cura Thomás de Aquino da Costa que foi, de todos os padres que paroquiaram a freguesia nos últimos duzentos e cinquenta anos, o de melhor caligrafia. Uma letra bonita e clara, que nos permite ler sem a mais leve dúvida tudo o que escreveu, para grande sorte de todos os que escarafuncham nos assentos paroquiais, à procura de pedacinhos da história da gente comum.

Sobre o morto, o padre nada nos diz para além do seu nome, do nome do seu cônjuge e da localidade onde residiam. Não sabemos qual era a sua profissão, que idade tinha, nem porque morreu, ou onde nasceu, ou quem foram os seus progenitores, se deixou filhos ou não.

Em contrapartida, explica-nos detalhadamente as razões por que o António Francisco da Silva faleceu sem sacramentos e, apesar disso, foi enterrado dentro da igreja paroquial.
Para percebermos as razões é preciso lembrar-nos de que, em 1802, nos encontrávamos, ainda, em pleno Antigo Regime, não havia separação entre a Igreja e o Estado, a religião oficial do país, obrigatória para todos os nacionais, era a religião católica e havia multas para quem fosse responsável pela não administração dos sacramentos ao moribundo. 
A preocupação do padre era a salvação da alma do falecido e, por isso, o seu estado de graça. Daí, a longa explicação para o facto de ter falecido sem sacramentos:

“... não recebeo os sacramentos por afirmar o cirurgião Manuel Luis Cordeiro do Carvalhal Freguesia de Prazeres desta dita Villa ...”

E, eis aqui duas passagens interessantes: uma, que o doente foi assistido por um cirurgião, outra, que no Carvalhal havia um cirurgião.

Um cirurgião, naquele tempo, não era a mesma coisa que um cirurgião hoje. Desde logo, “... a cirurgia era extra-universitária. Aprendia-se fora da Universidade – o que não impedia que um médico pudesse também ser cirurgião”[i]. O doente era visto “como um corpo dividido em duas partes, interna e externa, sujeitas a diferentes patologias, alvo da atenção diferenciada do Médico e do Cirurgião”[ii] e, como se isso não bastasse, a situação era, na realidade, bastante pior “… ao lado dos médicos saídos da única Faculdade do País, a da Universidade de Coimbra, … havia …os cirurgiões mata-sanos ou inchacorvos, os barbeiros sangradores, os curandeiros idiotas, os algebristas, os boticários, as parteiras, os oculistas, os dentistas…”[iii]

No final do século XVIII já há notícias da existência de, pelo menos, dois cirurgiões no concelho de Aljubarrota. Um no Carvalhal, identificado num assento de 1785 como Manuel Vicente, provavelmente o mesmo Manuel a que este assento se refere e, outro, o cirurgião do partido, quer dizer, o cirurgião contratado pela Câmara do Concelho, também com o encargo de assistir gratuitamente aos mais pobres, o qual foi identificado em 1784 como João da Silva e em 1788 como José da Silva, tratando-se, certamente, da mesma pessoa. Em 1803, há notícia de um outro cirurgião no concelho de Aljubarrota e freguesia de S. Vicente: António Ribeiro, nos Chãos.

O ensino da Cirurgia era, naquele tempo, inteiramente distinto do ensino da Medicina que se ensinava na Universidade de Coimbra e conferia o grau e as vantagens de Doutor, enquanto a cirurgia só ganhará foros universitários com a criação da escolas médico-cirúrgicas de Lisboa e Porto, pelo governo presidido por Passos Manuel, em 1836.

O ensino da cirurgia fazia-se em ambiente hospitalar, em especial no Hospital Real de Todos-os-Santos e, depois do terramoto, no Hospital de São José, em Lisboa.

Para a admissão no respectivo curso exigia-se, além do mais, que os candidatos a cirurgiões soubessem ler e escrever português. Esta exigência não é de somenos. O ensino universitário fazia-se, então, em latim[iv]. O ensino da cirurgia, que era essencialmente um ensino prático, era feito nas línguas nacionais. Os estudantes de medicina eram gente das classes abastadas que tinha podido dedicar-se à aprendizagem prévia do latim. Os cirurgiões eram, na generalidade, pessoas de origem popular, barbeiros, como o francês Ambroise Paré[v] ou o português Manuel Constâncio[vi]


E, o nosso padre continua com as explicações:

“... que o dito defunto não tinha necessidade de Sacramentos porque a moléstia não era de perigo e por certificar isto a dita sua mulher e filhos, que querião sacramentare elles me não vierão chamar para lhe ministrar os Sacramentos, e sem embargo de tudo isto da dita moléstia morreo ...”

Infelizmente e ao contrário do que acontece noutros casos, desta vez o padre não dá qualquer indicação sobre a natureza da moléstia de que sofria e de que morreu o falecido. Ficamos, apenas, a saber que o seu estado de saúde se agravou repentinamente.

Finalmente, o padre conclue:

“... e informando-me com pessoas de fé achei não haver culpa em nenhum dos sobreditos”

Ou seja, não assaca responsabilidades ao cirurgião pelo óbvio erro de diagnóstico e do mesmo passo inocenta os familiares, livrando-os da responsabilidade de não terem chamado o padre, por confiarem no cirurgião. 
É que a lei previa multas para os familiares responsáveis pelo não chamamento atempado do padre para administração dos Sacramentos ao moribundo e, em caso de negligência ou culpa, essas multas eram efectivamente cominadas. Foi o que aconteceu, por ex., a Rosa Maria, mulher de Manuel de Sousa Tomásio, dos Casais de Santa Teresa, falecido em 22-7-1804, a qual foi condenada porque "não chamou a tempo em que ele estava em seo juízo para eu lhos hir administrar"

Neste caso, como em geral em todos que contenham matérias que envolvam terceiros, as declarações do padre são abonadas por testemunhas:

“Testemunhas: Miguel Francisco e António Vicente da dita Ataija ...”



[i] Salvador Dias Arnaut, citado in José Manuel Vasconcelos, “Antecedentes da Escola Médico-Cirúrgica do Porto. A caminho da fusão da Medicina com a Cirurgia. Etapas da afirmação institucional de uma profissão” História. Revista da FLUP Porto, IV Série, vol. 4 - 2014, pp 241-269, PDF disponível online em http://ojs.letras.up.pt/index.php/historia (consultado em 26-06-2020)
[ii] Ribeiro Sanches, citado in José Manuel Vasconcelos, loc. cit.
[iii] Idem, idem.
[iv] O que permitia que professores, alunos e todo o conhecimento universitário, circulassem facilmente pela Europa. Curiosamente, na actualidade caminhamos para situação semelhante, com cada vez mais cursos universitários a serem ministrados em inglês, o latim do nosso tempo.
[v] Fiolhais, Carlos “Sobre o início da cirurgia no mundo e em Portugal” conferência, Revista Portuguesa de Cirurgia, n.º 29, Lisboa jun. 2014, disponível online em http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1646-69182014000200009
(consultado em 1-7-2020)
[vi] Graça, L. – Valorização Técnica e Social da Cirurgia no Antigo Regime – disponível online em https://www.ensp.unl.pt/luis.graca/textos69.html (consultado em 1-7-2020)