segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Casamentos na Ataíja de Cima, na década de 1870 a 1879





Na década de 1870 a 1879, realizaram-se na Ataíja de Cima 15 casamentos.

Todos os noivos eram solteiros, com idade média de 32,4 anos, sendo que o mais novo tinha 22 e o mais velho 55 anos.
Das noivas, por sua vez, 12 eram solteiras e 3 (20% do total) viúvas, com idades compreendidas entre os 20 e os 48 anos, o que dá a média de 31,9 anos. Se considerarmos apenas as solteiras, a idade média desce para os 29,2 anos.
E, com isto se desfaz a idéia de que "antigamente" as pessoas casavam mais cedo.

Em um terço dos casos (5 casamentos) a noiva era mais velha do que o noivo (respectivamente, 7, 3, 11, 5 e 4 anos).
E, com isto se desfaz mais uma ideia feita: a de que a mulher tem de ser, sempre, mais nova que o marido.





O casal mais velho era constituído por António de Moura, de 55 anos, solteiro, e Maria dos Santos, de 44, exposta de Lisboa, viúva de Ângelo da Silva, falecido há, exactamente, um ano e uma semana.
Hoje em dia seria, talvez, objecto de fortes críticas a viúva (ou o viúvo) que voltasse a casar apenas um ano e uma semana depois do falecimento do primeiro cônjuge. Mas, quando estudamos factos acontecidos há tanto tempo (138 anos), é importante perceber que, naquela época, numa pequena aldeia rural, e sem apoios familiares (recorde-se que a Maria dos Santos era enjeitada e, assim, não tinha pai, mãe ou irmãos de sangue que, eventualmente, a pudessem auxiliar), era praticamente impossível a sobrevivência de uma mulher viúva, com filhos menores (Maria dos Santos era mãe de 4 filhos: Joaquim, de 21 anos, Luisa, de 19 e Cristina, de 13 e, ainda de Matias Ângelo, nascido a 20 de Novembro de 1859 e que viria a ser, no início do Séc. XX, o homem mais rico da Ataíja de Cima ).

O segundo casal mais velho, era constituído por Matias Coelho e Maria Felizarda, ambos solteiros, ele de 50 e ela de 44 anos de idade.

No acto do casamento, o Matias Coelho reconheceu a paternidade do filho Joaquim, então com dez anos de idade.
O que terá levado um homem de quase quarenta anos a conceber um filho numa mulher de quase trinta e quatro e, quando ambos estavam em boa idade de casar, a não casar nem reconhecer o filho, mantendo-se, durante dez anos a vê-lo crescer sem poder, ou querer, dar-lhe os carinhos e os ensinamentos de pai, enquanto era, certamente, objecto de falatórios de toda a aldeia, que havia de ser sabedora da progenitura e, só depois de tantos anos, finalmente, assumir a paternidade e o casamento?
Estas são perguntas cujas respostas só muito dificilmente viremos a conhecer. Mas, formulá-las serve para recordar que a vida é mais complexa do que, às vezes, parece.
Estes Matias Coelho e Maria Felizarda vieram a ser avós de António, Manuel e Joaquim Matias e, portanto, ascendentes de uma numerosa prole que constitue, hoje em dia, uma das grandes famílias da Ataíja de Cima e, esse, é o fim feliz da história do casal.


Nota: Este texto foi, originalmente, publicado neste Blog em 29-01-2014

terça-feira, 29 de novembro de 2016

O Poço do Moura



Quando eu era pequeno, no início da segunda metade do século passado, a casa da ti’ Maria Rosa, no sítio da Pedra Branca, era a última da Rua dos Arneiros.
Depois disso eram, apenas, campos de cultivo, quase todos plantados de oliveiras e só mesmo na Ataíja de Baixo voltávamos a ver casas. A primeira, a chegar à Senhora dos Enfermos, era a de Joaquim Pio que foi casado com uma nossa conterrânea, filha de António Orelha e Joaquina Porfíria (curiosamente, também, era de uma outra filha do mesmo casal a primeira casa que encontraríamos se, ali ao Casal da Ordem, seguíssemos para o caminho que vai pela esquerda, para a Lagoa Cova).

A casa da ti´ Maria Rosa estava ali, quase sozinha, tendo por vizinhos mais próximos o ti’ António Catarino, onde agora é uma oficina de lareiras, o ti’ Francisco Faxia, onde o Zé da Ilda faz garagem e, em frente a esta, a casa agora inteiramente arruinada que foi de António Orelha (filho).
Na Rua dos Arneiros encontrávamos mais, as casas de José Lourenço, António da Graça, Joaquina da Piedade, António da Piedade, António Guilhermino, José Dionísio, a do meu pai João Lourenço Quitério, Francisco Dionísio, João Salgueiro, Joaquina Cordeira, Toni, Augusto Ribeiro, António Ângelo (Rospiço) e José Veríssimo e, estávamos no Outeiro.
Na Rua da Pedra Branca, estava, além da referida de António Catarino, a casa de José da Graça.
Na Rua das Covas, havia cinco habitações: a de José Guilhermino, a de Guilhermina Vigário , a de António Lourenço, a do Quintal da Rosalia, então habitada pela família de José Rebolão e a do meu tio António Coelho Quitério (Sapatada)
A Rua do Martins não tinha casas e a Travessa dos Arneiros não existia ou seja, havia em todos os Arneiros um total de vinte e quatro casas habitadas.[i]

Junto à casa da ti’ Maria Rosa há um poço a que todos chamam (ou, melhor, todos naquele tempo chamavam que, hoje, os poços já não têm nome) o poço do Moura.
O que sempre me fez alguma confusão.
Quem seria esse tal Moura que tinha dado o nome ao poço se, na Ataíja daquele tempo, nem sequer havia nenhum Moura?
Certezas, não tenho. O que descobri parece, no entanto, ter alguma lógica. Talvez eu tenha descoberto quem era esse Moura que deu o nome ao poço.

O homem mais rico da Ataija de Cima nos inícios do Séc. XX era Matias Ângelo, o qual é geralmente conhecido por, em 1918 e como já falamos em mais de um texto neste blog, ter comprado ao burguês de Alcobaça Olímpio Trindade Jorge, o Olival dos Frades.
Ora, o Matias Ângelo era filho de Ângelo da Silva, natural dos Covões e de Maria dos Santos, exposta da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa a qual, tendo ficado viúva e com quatro filhos a cargo, veio a casar, em segundas núpcias dela, no dia 21 de Fevereiro de 1876, tinha então quarenta e quatro anos, com António de Moura, solteiro, de 55 anos de idade.
Eis aqui como, com alta probabilidade, o poço do Moura (do António de Moura?) veio à posse de Maria de Matos Ângelo, que todos conhecemos por Maria Rosa e é bisneta da dita Maria dos Santos.
O António de Moura, esse, foi baptizado em 02.07.1821 e era o filho mais velho de Bernardo de Moura e Úrsula dos Santos (também enjeitada e ama de enjeitados)[ii].
Sendo que, Bernardo de Moura foi baptizado em 23.11.1792 e era filho de João de Moura da Ataíja de Baixo e de Maria Guitéria da Ataíja de Cima, falecida esta em 6.6.1827 e ele em data desconhecida mas, antes disso.
João de Moura, por sua vez, era filho de Luiz de Moura e de Caterina Antunes, ambos da Ataíja de Baixo

E, assim, chegamos a gente que foi contemporânea do Marquês de Pombal e do grande terramoto de 1755

O poço, esse, é um dos poucos exemplares sobrantes do tipo mais comum de poço ataijense. Aberto em terreno de barro naturalmente impermeabilizante em cuja escavação, quase sempre, se encontrava pedra em quantidade suficiente para construir a parede, tecida em seco, sem qualquer argamassa. Acima da terra a parede subia para suportar um telhado de uma água sobre estrutura de madeira, com o beirado do lado oposto ao do acesso, lançando as águas para um valado que recolhia não só essas mas também as águas que caiam no terreno em redor e que, a partir daí, por infiltração e através da parede – de pedra seca como se disse – eram conduzidas para dentro do poço.
O poço do Moura apresenta a parede acima do solo rebocada exteriormente e caiada e, a porta de acesso, fechada na metade inferior por um parapeito feito de uma grande laje aparelhada, mostra um requintado acabamento, com a parte superior em arco, ao invés da normal, simples, verga feita de laje toscamente aparelhada.
Ao lado direito da porta, a parede é atravessada por uma grande pedra aparelhada que, do lado de dentro do poço se abre numa pia para a qual é despejada a água do balde que, daí e através de um furo longitudinal, chega a uma bela torneira de latão[iii], sob a qual se colocava o cântaro.
O objectivo era não perder uma única gota de água potável, bem precioso que, aqui nesta borda da serra, durante séculos e até ao ano de 1993, apenas em poços como este se encontrava e, por isso, era parcimoniosamente racionada, em regra limitada a um cântaro por dia e por família[iv] e, também por isso, naqueles tempos as portas das casas ficavam no trinco mas, os poços eram fechados à chave.









[i] E, duas desabitadas: A que tinha sido do Combasteiro e já naquele tempo era um casebre velho, utilizado como palheiro, e ficava onde está a Casa do Ramiro e a que tinha sido de João Maurício, onde agora é a de seu neto João Pérídes.
[ii] Ver, neste blog “Amas de Expostos”, in http://ataijadecima.blogspot.pt/search?q=Amas+de+expostos
[iii] A torneira é, certamente, um acrescento tardio.
[iv] Nem todas as casas possuíam poço pelo que era comum  abastecer-se do mesmo poço mais de uma família, fosse por razões de parentesco, fosse por contrato.

sábado, 12 de novembro de 2016

O sino de ouro da Casa do Monge Lagareiro


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Nas noites longas de inverno, a minha avó Maria Lourenço contava-me histórias.

Uma delas, falava sobre um sino de ouro que haveria no lagar dos frades e estes enterraram para o esconder dos franceses, durante as invasões de há duzentos anos.
Como é evidente, tal sino nunca existiu e a lenda não tem qualquer fundamento.
Em primeiro lugar, não existem nem nunca ninguém os vislumbrou, quaisquer vestígios de capela e, o frade que ocupava a Casa do Monge Lagareiro, rezaria, certamente, frente a um simples oratório móvel (a ausência de vestígio ou notícia de capela levou-nos, inicialmente, a duvidar da presença permanente de frade(s) mas, no Verão de 1799, “Fr. Luis da Purificação, Professo Bernardo, rezidente na quinta do Lagar da dita Ataija”, foi padrinho de duas crianças do lugar).

De qualquer modo, capela que houvesse, nunca justificaria um sino de ouro.
O local era, apenas, uma fábrica de azeite. E, numa fábrica de azeite, não são precisos, nem adequados, outros tesouros que não o próprio azeite.
Talvez houvesse por lá uma pequena sineta, de bronze ou de latão fundido, para avisar que alguém chegara ao portão, ou marcar o ritmo dos trabalhos e das orações mas, não mais do que isso.

Apesar disso, a história do sino de ouro terá feito os seus estragos:
Joaquim Marques Silvério (Joaquim Albino, Joaquim Alvino) era, nos anos de 1940, proprietário do lagar, quando este se desmoronou ou foi deliberadamente arrasado e se encontrava em desuso e degradação há, talvez, dez a vinte anos

As opiniões dividem-se:
Uns, dizem que o lagar foi arrasado para reaproveitamento de materiais e, nessa ocasião, derrubado o portão de acesso à quinta para facilitar o acesso de veículos.
Outros, dizem que o Silvério procurava o mítico sino de ouro que, naturalmente, não encontrou.

Algumas das vigas do telhado foram compradas por José Francisco Veríssimo que, contava este, vendo-as ao abandono, foi lá com uma enxó e, verificando que a madeira estava em bom estado e era de qualidade, as comprou e mandou serrar em tábuas, de que se fez uma mesa, uma cama e um louceiro (cantareira) que ainda existem, agora na posse dos seus descendentes.
Curiosamente, ou não, a serração era do próprio Alvino, o dono do lagar que, inicialmente, se terá recusado a serrar as tais vigas. Como contava, ainda, o José Veríssimo, o Alvino receava que eventuais pregos que se encontrassem nas vigas, dessem cabo das serras. O José Veríssimo ter-se-á prontificado a pagar o prejuízo, se o houvesse e, afinal, veio a ser encontrado um único prego que não terá causado dano apreciável.

Passou-se isto pouco depois (ou, talvez, um pouco antes) de o José Veríssimo se ter casado, o que aconteceu em finais de 1942.
Em qualquer caso, nunca nos inícios do Séc. XX, ao contrário do que se lê no Sistema de Informação para o Património Arquitectónico,
in http://www.monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=3336, (consultado em 1 de abril de 2012).  

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terça-feira, 8 de novembro de 2016

Sopa de abóbora porqueira, com feijão maduro e carnes de porco




Carnes do focinho, faceira, orelha e chispe de porco
Enchidos variados e de boa qualidade:
     Chouriço de carne
     Farinheira
     Morcela de arroz
Abóbora porqueira
Batata
Feijão maduro

De véspera, salgam-se as carnes
No dia, abre-se uma abóbora porqueira (É importante que se use abóbora porqueira, já que outras espécies tendem a ser demasiado doces), a que se retiram cuidadosamente as tripas e pevides, descasca-se e corta-se em cubos pequenos (2 cm) e lavam-se as carnes para tirar o sal em excesso.
Numa panela com água suficiente para as sopas do número previsto de comensais levam-se a cozer as carnes e os enchidos,  picando-se as farinheiras para não rebentarem e uma parte (1/4) dos cubos de abóbora.
Quando as carnes e os enchidos estiverem cozidos, retiram-se com uma escumadeira e reservam-se. Retiram-se para uma taça os cubos de abóbora, esmagam-se toscamente com um garfo  e voltam a juntar-se na água onde cozeram (se preferir, pode evitar retirá-los da água, esmagando-os com a varinha mágica).  Acrescentam-se as batatas cortadas em cubos pequenos, os restantes cubos de abóbora e o feijão maduro (feijão maduro ou feijão de descascar é o feijão já plenamente desenvolvido que é colhido logo que inicia o processo de secagem).

Cortam-se as carnes em pedaços e os enchidos às rodelas.
Leva-se a sopa à mesa na panela e as carnes e enchidos em travessas
O talher será completo (faca, garfo e colher), de modo a cada um poder servir-se das carnes a gosto, cortando-as no seu prato e deitando sobre elas a sopa.

Come-se à colher.

Este é um prato de convívio e, para garantir uma adequada variedade de carnes e enchidos, deve ser confecionado para um mínimo de dez pessoas.
Na verdade, não estamos propriamente perante uma sopa, ao menos no sentido de um “alimento que consiste num caldo, geralmente à base de legumes, que se serve no começo das duas principais refeições”, que é como o dicionário Priberam define sopa.
Antes, esta sopa de abóbora porqueira com feijão maduro e carne de porco, é o prato principal e único da refeição.


O que fica, a sopa de abóbora porqueira com feijão maduro e carne de porco, é um prato sazonal, de fim de Verão, (quando abóbora e feijão estão maduros, mas isso não é problema hoje em dia porque quer o feijão quer a abóbora se conservam muito bem, preparados e congelados). É, também, um prato típico que só vi na Ataíja de Cima, simples e delicioso, bem digno de integrar um cardápio ataijense.
Apresento-a tal como a minha mãe a confecionava e servia, sempre para um grande grupo familiar, em geral, entre as quinze e as vinte pessoas e, se agora me lembrei de aqui trazer esta receita foi porque, ainda no passado dia de Todos-os-Santos, tive o gosto de a saborear, confecionada agora pela minha irmã, para um animado grupo de familiares e amigos.
É claro que podiam migar-se finamente as carnes, mergulhando-as no caldo, passando este prato a ser tratado como uma verdadeira sopa, uma espécie de sopa de pedra.

Mas, isso seria outra coisa.


sexta-feira, 22 de julho de 2016

Marca Corneta



A expressão “és de marca corneta” que se usava na Ataíja de Cima da minha meninice, é um jogo de palavras que, aproveitando a fama dos instrumentos de corte (ferramentas manuais de trabalhar madeira, facas, tesouras e navalhas) da marca Corneta, brinca com a etimologia da palavra corneta que, obviamente, deriva de corno e a dureza do corno que é osso.
Ser “de marca corneta” é ser duro, teimoso, inflexível.


Lembrei-me disto a propósito de que entre o espólio do meu pai, se encontra uma velha navalha de barbear da marca Corneta.
  



A navalha em questão apresenta, gravada num dos lados da espiga, entre a lâmina e a articulação com o cabo, a  inscrição:
Gebr Weyersberg Solingen – Ohligs

Do outro lado, o símbolo da corneta e o número 2211

O cabo é feito de celuloide, imitando o marfim.

Quando terá sido fabricada esta navalha? Não sabemos mas, seguramente, não foi antes de 1896 já que esse foi o ano em que a marca foi registada nem, sequer, antes de 1909 porque só neste ano a fábrica dos irmãos Weyersberg se mudou para Solingen – Ohligs.[i]

A navalha, acusando embora claras marcas de intenso uso, chegou-me às mãos bem tratada e cuidadosamente guardada numa caixa apropriada que, no entanto, é de diferente marca.
Num dos lados dessa caixa temos a identificação do produto:

Navalha Bismarck / Producto Allemão / Marca Registrada

No outro lado, dois textos longos, um elogiando as qualidades do produto (a navalha de barbear Bismarck) e o outro dando indicações pormenorizadas sobre o uso e conservação da navalha (escritos em português, estes textos demonstram os cuidados da marca em se adaptar às necessidades de cada mercado específico).

O que é que faz uma navalha de barbear da marca Corneta, dentro da caixa de uma navalha de barbear da marca Bismarck, isso é mistério que não consiguirei esclarecer.

Mas, como o melhor da aposentação é não ter de fazer a barba e poder ocupar o tempo a aprender coisas inúteis, investigando, vim a saber que a marca Bismarck – BISMARCK, RAZOR WORKS, SOLINGEN – GERMANY - foi fundada em 1892 por August Müller e subsistiu até 1957 quando foi adquirida pela Fritz Bracht (DOVO) Company, a qual, actualmente, ainda usa a marca Bismarck para algumas das navalhas de barbear que continua a fabricar.

De facto, a indústria das navalhas de barba que esteve à beira do desaparecimento em meados do Século XX[ii], em resultado da generalização do uso da máquina de barbear eléctrica e, sobretudo, das lâminas descartáveis inventadas pelo Sr. Gillette, recebeu o golpe fatal com o surgimento de doenças modernas como a SIDA que, devido aos riscos de infecção, levaram ao abandono do seu uso pelos profissionais. Apesar disso continua a existir um nicho de mercado que justifica que se continuem a fabricar e, entretanto, os profissionais passaram a usar uma versão em que a tradicional lâmina forjada foi substituída por um suporte para lâminas descartáveis.

De acordo com o site http://www.barbearclassico.com, a DOVO (de Solingen, http://www.dovo.com/, fundada em 1906) é, como referido, uma das marcas que continuam, ainda hoje, a fabricar boas navalhas de barbear, a par com THIERS ISSARD (francesa, http://www.thiers-issard.fr/, fundada em 1884), BOKER, (de Solingen, https://www.boker.de/, fundada em 1869 mas, com antecedentes familiares no ramo que remontam ao Séc. XVII), HENCKELS (fundada em 1895 em Solingen, http://www.j-a-henckels.com/ e, actualmente, integrada no grupo ZWILLING, sendo que a marca Zwilling, por sua vez, existe desde 1731) e REVISOR, (fundada em 1919 em Solingen, http://www.revisor-solingen.de/.

Os leitores já terão notado duas coisas: que se fala aqui muito de Solingen e que as marcas acima mencionadas têm todas mais de 100 anos.

Solingen é uma cidade alemã, no Estado da Renânia do Norte – Vestefália, não longe de Colónia, conhecida por a “cidade das lâminas” e famosa desde a Idade Média por se ter especializado na metalurgia do aço, especialmente na fabricação de espadas e outros instrumentos de corte. 
Ainda hoje, a grande maioria das ferramentas de corte e talheres da Alemanha é fabricada em Solingen, por marcas famosas como Wüsthof, J. A .Henckels, Bokar, Villeroy & Boch e também aí são fabricadas as lâminas de barbear Wilkinson Sword. 

O facto de as marcas de que temos vindo a falar terem, todas, mais de 100 anos, remete-nos para o funcionamento do poderoso cluster[iii] que, vindo dos confins da Idade Média, atravessou os séculos e conseguiu resistir a todas (e foram muitas) as situações adversas que se lhe depararam.


Valerá a pena fazer aqui um breve parêntesis para falar de King Camp Gillette, o americano que inventou a lâmina de barbear descartável[iv].
Gillette era caixeiro viajante de ferragens, ferramentas e maquinetas diversas (tudo o que nos EUA se chama hardware) e terá sido o seu patrão a lançar a Gillette o desafio de inventar uma coisa que pudesse ser utilizada uma única vez para que o cliente voltasse a comprar.
Ao que parece, esse patrão era William Painter inventor de outros objectos de extrema utilidade como a carica e o respectivo abridor[v]).

Mas, isto era na América.

Em Portugal as coisas corriam mais lentamente e, ainda em meados do Século XX, uma grande parte dos homens não usava a gillette, nem possuía navalha. Simplesmente e isto era absolutamente verdade no campo, fazia a barba uma vez por semana, no barbeiro[vi].

O meu pai, quando recém-casado e antes de emigrar para Lisboa, na tentativa de acrescentar alguns tostões aos magros rendimentos familiares, exerceu também, em part-time, o ofício de barbeiro, montando oficina na casa-de-fora.[vii]

Eu era muito pequeno, dois anos e menos, ou nem sequer nascido e, desta actividade do meu pai, só me lembro, por ele e a minha mãe me contarem que, a primeira das poucas palmadas que levei foi, precisamente, por ter uma birra de choro que incomodava os clientes ou, pelo menos, o barbeiro.

Lembro-me, também, de uma tesoura que sobreviveu ao fim da barbearia e a minha mãe levou para Lisboa e usou para cortar as barbatanas dos peixes, até perto dos meus quinze anos quando, finalmente, se desconjuntou. 
Contava-me o meu pai que essa tesoura lhe tinha custado, talvez aí por 1947 ou 1948, a módica quantia de 17$50. Isso, quando um homem na Ataija de Cima ganhava, a cavar de sol a sol, quando havia trabalho, 12$50.


A marca Corneta está hoje desaparecida na Alemanha onde nasceu (encerrou a produção em 1997 e foi excluída em 2005 do Registo Alemão de Marcas e Patentes, segundo leio na internet).
No entanto, subsiste no Brasil, onde foram criadas fábricas a partir do final da 1ª Guerra Mundial, para ali levada por um membro da família proprietária e onde é, como o era na Alemanha, uma prestigiada marca de ferramentas.
A história da empresa, desde o final do Séc. XVIII até aos dias de hoje pode ser vista no site do brasileiro Grupo Corneta, em http://www.corneta.com.br/br/


A minha navalha, essa, acompanhada dos acessórios que o tempo não levou, vai ficar muito bem guardada e arrumada, em memória do efémero barbeiro que foi o meu pai.











[ii] Cerca de 1950, havia em Solingen, 600 a 700 fabricantes de lâminas. Em 2009 eram, apenas, 6. As navalhas de barbear eram, na sua maioria, parcialmente produzidas para as marcas pelos trabalhadores, à peça, em suas casas. (conf. http://www.revisor-solingen.de/index.php/en/history)
[iii] O que é um cluster, como funciona, quais os seus pontos fortes e pontos fracos, são conceitos que interessam muito à Ataíja de Cima e à região, actualmente dependente do que já é o cluster das rochas ornamentais.
[iv] A fábrica começou a trabalhar em 1903 e no final de 1904 já tinha vendido mais de 12.000.000 de lâminas. Gillette usou uma estratégia comercial agressiva, hoje corrente nos produtos de consumo de massa, vendendo as máquinas com prejuízo para, assim, alargar o leque dos compradores de lâminas.
[v] William Painter patenteou cerca de 85 invenções entre as quais a carica e o sistema que lhe está associado foram as de maior utilidade e complexidade, já que o sistema para funcionar exige a “carica”, a máquina para a aplicar, o abridor e, mais complicado, que todos os gargalos das garrafas sejam idênticos. Painter teve, pois, de convencer os fabricantes de garrafas a adoptar um novo e único modelo de gargalo que suportasse as suas “caricas”.
[vi] Lembro-me, desde sempre, do ti João Pereira cortando cabelos e fazendo barbas no “salão” que montou na casa que foi do Pote Serrano.
Não havia cadeira de barbeiro, sentando-se os clientes numa comum cadeira de madeira e o fio da navalha tinha por assentador o próprio cinto das calças do barbeiro que, para isso, o usava deliberada e exageradamente comprido.
[vii] A casa-de-fora era a sala para onde se entrava pela porta principal da casa e a partir da qual se acedia directamente aos quartos e à cozinha.

terça-feira, 28 de junho de 2016

Ir à Praia





Gosto muito de carapaus secos mas conheço mal a Nazaré.

Passei lá férias uma única vez e, nestes mais de sessenta anos que, entretanto, decorreram, os dedos de uma mão são, talvez, suficientes para contar os regressos, sempre de curta duração, meras passagens diurnas.

No último desses regressos impressionou-me o imenso casario que amalgamou a Praia e a Pederneira, o Calhau e o Sítio. Tudo, bem diferente das memórias antigas que guardo dessas tais férias, as minhas primeiras férias, teria eu cinco, no máximo seis anos, menos alguns dias.

Curiosamente, julgo que ainda lá está a casa onde nos instalámos, na esquina da Avenida Vieira Guimarães com a Rua de Sub-Vila. Um pequeno prédio em cujo rés-do-chão havia uma taberna que era propriedade ou gerida por um vizinho daqui da borda da serra, o Zé Rebocho, dos Casais de Santa Teresa. No primeiro andar era a residência do comerciante e nós ocupamos o sótão.  Perto, ficavam a garagem das camionetas da carreira que não sei se eram dos Claras se dos Capristanos e o mercado que penso estar no mesmo sítio embora em edifício diferente, se é que em 1953 ou 1954 o mercado já tinha edifício.

A Rua de Sub-Vila, na parte a sul da Vieira Guimarães, era a dita taberna e pouco mais. O campo começava logo ali, o alcatrão acabava e seguia-se, entre canaviais, por um estreito caminho de areia onde apenas cabia um carro de bois.

Lá mais adiante, o caminho fazia uma curva e era, por oeste, elevado em relação ao terreno para onde eu e o Quim da Pequena descemos, (na verdade, o Quim da Pequena diz que subimos para uma elevação de areia, uma duna que havia na borda do caminho). Subindo ou descendo, certo é que, à sombra de uns caniços, resolvemos aliviar a tripa que nós éramos rapazes do campo e no campo não havia casas de banho que, portanto, ali também nos não faziam falta.

Eis que do lado da Praia surge um carro de bois com seu abegão e, nele, empoleirado entre taipais, vinha um maganão de pé descalço, calça dobrada pelo meio da canela, camisa de flanela aos quadrados, cinta e barrete, como um bilhete postal.

Olhando lá para baixo (ou para cima?), para a sombra dos caniços, o dito descobriu-nos de calças na mão e, resolvendo chuchar com os dois turistas, trocou umas breves palavras com o condutor da junta e saltou do carro de vara na mão.

O meu primo já havia de andar pelos seus dez anos e foi rápido. Correu pelo talude desaparecendo num instante e só voltei a vê-lo já muito perto da taberna. Eu, tomado de um valente susto, lá consegui chegar ao caminho e correr, acabando também por me safar, perseguido pela risota dos pexins.

Imagino-me, neste dia ou num outro, rapazito do campo que de peixe tinha visto o pouco que chegava à Ataíja: umas sardinhas frescas para assar ou, as mais das vezes, já escaladas, salgadas e de barriga amarela que se comiam cozidas com batatas, uns carapaus que sempre se comiam fritos e chicharros que se vendiam ao par e a minha avó cortava em postas fininhas, um centímetro ou pouco mais, fritava, regava com molho de escabeche e guardava perto do pão, na buraca com porta de rede que havia na cozinha. Imagino-me dizia eu, de olhos esbugalhados ao ver a pexineira que na rua apregoava dois peixe-espadas, bichos enormes como eu nunca tinha visto, rabos a arrastar pelo chão, monstros que ela transportava erguendo ao alto os braços e enfiando-lhe nas guelras os dedos indicadores.

Não tenho dúvidas de que, perante tal visão, os meus olhos hão-de ter ficado tão surpresos como, um ano ou dois antes, tinham ficado na Senhora dos Enfermos perante o fotógrafo à lá minuta.

Esqueci-me de vos dizer que tudo se passava em Setembro, quando os camponeses iam à praia aproveitando (os poucos que podiam aproveitar) os escassos dias em que as terras não reclamavam presença, antes do São Mateus que era tempo de semear nabos e de preparar a adega, antes de começarem as vindimas que nesse tempo se faziam pelo final do mês e primeiros dias de Outubro.

Então, como agora, as festas em honra de Nossa Senhora da Nazaré agitavam o Sítio e, um dos momentos grandes da parte profana dos festejos era a tourada no dia 8 de Setembro. Lá fomos todos, subindo no elevador, para assistir à função.

Foi a minha primeira tourada. Lembro-me vagamente das cortesias e não terei desgostado do brilho dos trajes, da música, da animação da assistência e das habilidades dos cavalos. Da tourada nada vi ou nada me lembro salvo que, assustado com o rompante do touro, a esquiva do cavalo e os berros do cavaleiro, enfiei o nariz no colo da minha avó e de lá não saí até final do espectáculo. 

Curiosamente, quase não tenho memórias de nós na areia. Talvez lá não passássemos muito tempo. Afinal, nenhum tinha fato de banho e duvido que algum tivesse, sequer, molhado os pés no mar. Lembro-me, apenas, de andar por lá a vagabundear e, disso não duvido, sempre de olhos bem abertos, tentando saber e entender tudo, como ainda hoje gosto.

Seja como for, em certo dia de mar bravo, coisa não rara nos princípios de Setembro, a maioria dos barcos ficou na areia mas pelo menos uma traineira, mais destemida ou apenas incauta, fez-se ao mar, lançou o cerco da rede e, preso nela o peixe, empreendeu a manobra de regresso. Como quase sempre naquele tempo, o grande problema era passar a rebentação e conseguir varar na areia em segurança.
O mestre gritou ordens que permitiram apontar a proa à praia. Esperou a onda propícia e, agora a compasso, gritou gritos de ânimo aos remadores. O barco elevou a proa na onda e quando parecia que ia dobrar a espinha de água e chegar à praia foi de novo empurrado para o largo. Isto, uma vez, duas, três. Com as juntas de bois a postos, a areia ia-se enchendo de companheiros, amigos e familiares dos pescadores em perigo. Camponeses curiosos e de coração apertado ficaram um pouco afastados, ignorantes do que fazer, muitos fazendo coro com as mulheres vestidas de negro pelos maridos, filhos e pais sepultados naquele mar, as quais no meio de grande gritaria, invocavam Nossa Senhora da Nazaré e toda a corte celestial implorando a livrança dos infelizes.

Finalmente, um dos pescadores conseguiu saltar da traineira e chegar a terra arrastando uma corda que todos puxaram, bois e homens e mulheres, gentes da praia e do campo, até o barco varar na areia sem outros prejuízos que não o susto geral.

Nalgum canto da minha memória está gravada a visão de uma mulher de negro agachada na areia que, afastada da multidão e aparentemente alheia à aflição geral, recriminava:

É bem feito! Queriam o peixe todo!



Nota: Decidi passar a escrito estas memórias quando, há poucos dias, sobre a porta do prédio com o nº 161 da Rua de Campo de Ourique, em Lisboa, deparei com a representação do milagre da Nazaré que acompanha este texto.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Amonites


As amonites eram animais marinhos (moluscos), cefalópodes[i], com olhos laterais e tentáculos e possuíam uma concha encaracolada com câmaras. O animal vivia na 1ª câmara, servindo as demais como flutuadores.
Estes animais terão surgido há cerca de 400 milhões de anos, ainda na era paleozóica[ii], muito antes de quaisquer vertebrados. Assistiram ao aparecimento dos dinossauros, há cerca de 230 milhões de anos e desaparecem, uns e outros, há 65 milhões de anos.   
Actualmente, como último representante desta classe de animais, sobrevive ainda na zona sudoeste do Oceano Pacífico o náutilo, de que dois exemplares foram recentemente filmados nos mares da Papua-Nova-Guiné.

As amonites evoluíram rapidamente (enfim, em termos geológicos) e espalharam-se por todos os mares, de tal modo que, um pouco por todo o lado e um pouco por todos os estratos[iii] do Mesozóico, é possível encontrar fósseis de amonites e, porque há muitos tipos diferentes de amonites, sendo que cada tipo tende a apresentar-se distribuído por um estrato diferente, isso torna-as excelentes indicadores da idade geológica, permitindo datar rochas com grande precisão (inferior a um milhão de anos).

A Ataíja de Cima situa-se na margem oeste do Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros (PNSAC) e do Maciço Calcário Estremenho, o qual se terá começado a formar há cerca de 200 milhões de anos e se caracteriza por constituir a maior formação calcária de Portugal.
As suas rochas pertencem, na generalidade, ao período Jurássico designadamente ao Jurássico Médio, ou seja, ao período popularizado pelo cinema como o tempo dos dinossauros.
Por tal razão é fácil encontrar fosseis variados[iv] designadamente de amonites e, também se encontraram pegadas de dinossauro[v]. Estas pegadas, descobertas durante os trabalhos numa pedreira, têm cerca de 175 milhões de anos e são constituídas por diversos trilhos, entre os quais um com cerca de 147 metros de comprimento o que o torna o mais longo do mundo até agora conhecido.
E, se o trilho dos dinossáurios foi descoberto ao desmontar-se uma bancada (uma camada, um estrato) na “pedreira do Galinha”, no caso das amonites, em vários lugares do Maciço[vi], elas estão ali, à vista de toda a gente, embora seja nas pedreiras que mais facilmente se encontram. De facto, “Muitos dos locais privilegiados para observações de índole geológica correspondem a frentes de exploração em pedreiras que atualmente se encontram em atividade.”[vii]

As fotos seguintes mostram três amonites recentemente encontradas em pedreiras da região (concelhos de Alcobaça e Porto de Mós).

Esta amonite, com cerca de 50 cm de diâmetro, surgiu durante a movimentação do bloco que se partiu deixando ver o fóssil que se encontrava no seu interior.

Esta amonite, com cerca de 30 cm de diâmetro, surgiu numa situação semelhante à anterior sendo que, aqui, toda a amonite se soltou do bloco quando ele se fracturou.

Neste caso, o bloco não apresentava quaisquer sinais de conter a amonite que tem cerca de 30 cm de diâmetro. Apenas em fábrica e depois da serragem, se verificou que a serra tinha cortado longitudinalmente a amonite, praticamente pelo plano médio da concha, deixando cada metade numa chapa diferente.






[i] Classe a que pertencem os chocos, as lulas e os polvos. Cefalópode significa, literalmente, “com os pés na cabeça”
[ii] Uma escala do tempo geológico pode ser vista, por ex., no artigo com o mesmo título na Wikipédia: (https://pt.wikipedia.org/wiki/Escala_de_tempo_geol%C3%B3gico)
[iii] Como é fácil notar, nomeadamente nas arribas e nas pedreiras, os solos sedimentares são formados por camadas, estratos.
[iv] Na freguesia de Alcaria, Porto de mós, ocorre uma formação rochosa com tal quantidade de fósseis que é conhecida por “pedra-bicho”.
[v] O Monumento Nacional das Pegadas de Dinossáurio, fica situado na estrada de Ourém a Torres Novas, no extremo oriental do Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros. (ver: http://www.icnf.pt/portal/ap/nac/mon-nat-peg-dino-ourem-torres)
[vi] Em particular na zona da Fórnea, onde os geocachers já definiram um percurso a que chamam o “trilho das amonites” (ver: https://www.geocaching.com/seek/log.aspx?LUID=ca58a651-d0c7-4349-a466-538721e92fef&IID=c08fb6b3-d935-435d-be0b-c9f7793b6e3d)  
[vii] INEG, “Maciço Calcário Estremenho Caracterização da Situação de Referência” - Relatório Interno - Jorge M. F. Carvalho, Carla Midões, Susana Machado, José Sampaio, Augusto Costa e Vítor Lisboa, 2011, consultado em linha em 5-5-2016

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Dionísia dos Santos



Conforme o Livro de Matrícula de expostos Fêmeas, do ano de 1863 (Lvº 91, fl. 363, nº 494) que se conserva no Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, deu entrada no Hospital dos Expostos de Lisboa em 2 de Dezembro de 1863 e foi baptizada nesse mesmo dia (Lvº Baptismos do anno de 1863, fl. 404, nº 2420), uma criança do sexo feminino a que foi posto o nome de Dionyzia ou Dionisia

No dia seguinte, 3 de Dezembro de 1863, foi a dita menor entregue a Joaquina Coelha, solteira, moradora no Andaínho, freguesia de São Miguel do Juncal, concelho de Porto de Moz, recebendo pelo encargo a quantia de 1$600 (mil e seiscentos réis) mensais, durante 12 meses, no total de 19$200 (dezanove mil e duzentos réis). Recebeu, ainda, para as despesas da jornada, a quantia de 2$000, tudo somando 21$200.

Um ano depois, foi acordado entre o Hospital dos Expostos de Lisboa e a Joaquina Coelho que esta continuasse a criar a Dyonizia por mais 24 meses, a contar do dia 3 de Dezembro de 1864, recebendo, agora, a quantia de 1$000 por mês, seja, o total de 24$000.

Por razões que os livros consultados não esclarecem este contrato não foi executado na sua totalidade tendo a Dionísia sido entregue, em 6 de Abril de 1866, a Joaquina Bárbara, casada com José Coelho, carpinteiro, moradores no logar de Ataíja de Cima, Freguesia de São Vicente de Aljubarrota, concelho de Alcobaça. O contrato então celebrado estipulava que a Joaquina Bárbara receberia pelo encargo a quantia mensal de $800 réis, pelo período de 8 meses quer dizer, até Dezembro desse ano, até ao tempo que seria o do fim normal do contrato celebrado com a Joaquina Coelha.

O contrato cumpriu-se efectivamente nos termos acordados e por ele recebeu a Joaquina Bárbara a quantia de 6$400 e celebrou-se novo contrato, agora pelo valor mensal de $500 e pelo período de 48 meses, contados a partir de 19 de Novembro de 1866, somando o total de 24$000, a que se seguiu novo contrato, pelo período de três anos que terminaram em 18 de Novembro de 1873.
Neste último período a Joaquina Bárbara foi remunerada à razão de $300 mensais, no total, portanto, de 10$800

Quinze dias depois, em 02 de Dezembro de 1873, a Dionisia completou dez anos de idade e, portanto e de acordo com as regras vigentes nesse tempo, cessaram os pagamentos feitos à ama.

Ou seja, naquele tempo, uma criança de dez anos havia de ser capaz de se sustentar a si própria. Porque assim era, este era um momento muitas vezes dramático na vida dos enjeitados: se calhavam estar ao cuidado de alguém que procurava apenas o rendimento dos pagamentos pela criação ou se, por qualquer outra razão não tinha logrado integrar-se na família da ama a criança era entregue ao cuidado de outra pessoa que a quisesse e muitos, aproveitavam a circunstância e fugiam.

Felizmente, neste caso como na generalidade dos casos que estudei de crianças enjeitadas criadas na Ataíja de Cima, o que se passou foi uma total integração da criança na família de acolhimento de tal modo que, a Dionísia foi entregue (sem remuneração, recorde-se), à mesma Joaquina Bárbara pelo tempo de oito anos

O respectivo Termo consta dos chamados Livros de Vestir (Lvº 1 V, fl 115v) e está escrito em letra pré-impressa e completado em cursivo bem legível, pelo que aqui o reproduzimos deixando ao leitor mais curioso o encargo de o ler com cuidado, que bem o merece, por estes autos serem clara explicação de um certo entendimento do mundo e das coisas.

Cópia do Termo de Vestir de Dionísia, gentilmente cedida pelo
 Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa


O processo da Dionísia contém, ainda, um despacho interessante por esclarecer o procedimento em caso de doença do menor:

Por despacho da Exma Mesa de 12 de Janeiro de 1874 foi concedida a gratificação mensal de 1$200 enquanto mostrar por atestado do facultativo que a exposta continua no mesmo estado de doença, sendo a contar desta data.
a)      Caldeira
Sem efeito mas sim o que se acha a fls. 366

Fls. 366:
Por despacho de 12 de Janeiro de 1874 foi concedida a gratificação mensal de 1$200 enquanto continuar no mesmo estado de doença.
a)      Caldeira
1874 Maio 19 Pago três mil cento e vinte réis


Depois disto, só voltamos a ter notícias da Dionísia quando ela já era, inequivocamente, uma ataijense como as demais. É o que prova o facto de, em 2-4-1880, ter nascido na Ataíja de Cima uma criança a que foi posto o nome de Dionísia, filha de Manuel Joaquim e Maria Custódia.
Foi madrinha Dionísia dos Santos, solteira (a criança veio a falecer em 15-4-1885)

A FAMÍLIA

Em 9 de Agosto de 1885 nasceu uma criança a que foi posto o nome de Maria, filha de pai incógnito e de Dionísia de Jesus, solteira, doméstica, exposta da SCML.
Em 16 de Agosto de 1888 casaram-me Manuel da Silva Vigário, de 24 anos de idade, filho de José Vigário e de Ana Lourenço e Dionísia dos Santos, solteira, de 24 anos de idade, exposta SCML.
No acto do casamento, o nubente reconheceu uma filha comum, Maria, nascida em 15.4.1885.
Em 15 de Fevereiro de 1891 nasceu uma criança a que foi posto o nome de Francisco, filho legítimo de Manuel da Silva Vigário e de Dionísia dos Santos, ela exposta da SCML
Em 20 de Dezembro de 1892 nasceu uma criança a que foi posto o nome de Ana, filha legítima de Manuel da Silva Vigário e de Dionísia dos Santos, ela exposta da SCML
Em 15 de Abril de 1899 nasceu uma criança a que foi posto o nome de José, filho legítimo de Manuel da Silva Vigário e de Dionísia dos Santos, ela exposta da SCML

Destas crianças apenas não sabemos o destino do José que presumimos tenha falecido jovem.

A Ana que todos conheciam por Ana Denísia, casou-se na Ataíja com Luís Dias que também usava Luís Dias Vigário, foi conhecido por Luís Barra e era, certamente, seu parente pelo lado paterno.
O Luís Dias foi um dos ataijenses que integrou o Corpo Expedicionário Português que nos campos do Noroeste de França participou na 1ª Guerra Mundial de onde, diziam, tinha vindo gaseado.
Conheci-os bem a ambos.
Moravam numa casa na Rua dos Arneiros que tem anexa uma original cisterna e, entretanto, perdeu o patim que a protegia do movimento da rua, foi transformada em oficina e, depois de anos ao abandono, iniciou no passado inverno um processo de derrocada irreversível.

Também conheci o irmão Francisco, a quem chamávamos Francisco Denísio e casou com Joaquina Lourenço, instalando-se na mesma Rua dos Arneiros em casa que ainda existe, embora transformada e há vários anos sem função, salvo o que eram, no meu tempo de miúdo, a eira e o curral das vacas, agora transformados no Café-Concerto a Casa do Maltês.

Da Maria Dionízio sabemos, graças a um leitor deste blog, o seu neto materno Sr. José Almeida, que casou e foi viver para a Boieira.
Anos depois, um seu filho, que foi conhecido por Manuel Lérias, regressou à origem, casando na Ataíja de Cima com Joaquina Machado.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

A minha avó e o Marquês de Pombal




Pode estabelecer-se uma ligação entre Sebastião José de Carvalho e Melo, o todo-poderoso Ministro de D. José I, Conde Oeiras e Marquês de Pombal e a Ataíja de Cima porquanto, no âmbito da sua política de modernização do sistema produtivo em Portugal, não descurou a agricultura sendo no seu tempo que, sob a direcção do então abade geral da Ordem de Cister, aliás seu sobrinho,  Frei Manuel de Mendonça[i], foi mandado plantar um extenso olival e construído um moderno (para o tempo) lagar de azeite de que hoje sobram ruínas conhecidas por a Casa do Monge Lagareiro.

Pombal quis, à viva força, tornar Portugal um país moderno pelo que, entre os seus poderosos inimigos estavam todos os avessos à mudança: a Nobreza que perdeu privilégios ou foi mesmo sentenciada e perdeu tudo (caso dos Távora), o povo do Douro que se amotinou contra a criação da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, os Jesuítas e outros clérigos.

Após a morte de D. José I, o velho Marquês caiu em desgraça e foi remetido para Pombal e regressaram ao poder as velhas forças conservadoras que tanto tinha afrontado.
Rejubilando com a queda e o exílio do velho leão e julgando que os velhos tempos tinham regressado (e, os velhos tempos nunca regressam) fizeram reviver por uma vez a Inquisição e, nesse ano de 1781, em autos-de-fé realizados em Coimbra e Évora foram queimadas vivas 25 pessoas.
Terá sido por esse tempo que o Marquês, a caminho do exílio em Pombal , terá passado por aqui perto uma última vez.  

O que tem a minha avó a ver com isto, perguntarão?
Tem que, também as estórias que vos vou contar revelam esse carácter muito português que é a capacidade de conjugar a fé com o anticlericalismo, pecado que o Marquês parece ter cometido e, vejo agora, talvez, também, a minha avó.

A minha avó, mulher de fé que nunca iniciava uma refeição sem orar em agradecimento, nem  se deitava sem encomendar as almas dos familiares falecidos, que ia à missa aos Domingos e dias Santos e me ensinou os Mandamentos que rigorosamente toda a vida cumpriu, gostava do Marquês e não gostava de Jesuítas.
Nas longas noites de Inverno, vão lá sessenta anos ou quase, depois da ceia, sentavam-se o menino e a velha ao aconchego da lareira e, era então que, como já o sabem os leitores deste blog, a minha avó me contava histórias.

Contava-me ela, deliciada, como o Marquês tinha enganado o Embaixador espanhol ao levá-lo, perante as ameaças de invasão, para a varanda dos Paços do Concelho de Lisboa, na pequena e fechada Praça do Município, a fim de assistirem a uma parada militar.
Sendo os efectivos do exército português diminutos[ii], o astuto marquês pôs os militares a andar em círculo e a mudar de fardamentos quando se encontravam nas traseiras dos edifícios.
Depois de três ou quatro passagens, estando o embaixador já intimamente convencido de que seria perigosa aventura enfrentar tão grande exército, o Marquês colocou-lhe paternalmente a mão sobre o ombro e segredou-lhe ao ouvido:

E saiba mais Vossa Excelência que, cada um em sua casa pode tanto que, mesmo depois de morto, são preciso quatro para o tirarem de lá![iii] 

Hoje, lendo um pouco de história de Portugal, percebo que a estória tem fundamento nas movimentações diplomáticas que antecederam a chamada Guerra Fantástica[iv].
Os leitores interessados poderão procurar na internet por este interessantíssimo episódio das sempre atribuladas relações luso-espanholas[v].

Numa segunda estória de louvor ao Marquês e à sua suprema inteligência, contava a minha avó que, estando ele desterrado e sujeito a uma sentença que o condenava a, até à morte, não pisar outra terra que a de Pombal, matutou de ir a Lisboa.
Mais esperto que todos, o velho marquês mandou forrar uma carroça de terra pombalense e sentando-se sobre ela, lá foi até Lisboa e Oeiras, onde se passeou sem infracção e tratou dos seus negócios, para grande desespero e impotência dos seus inimigos.

De facto, falecido D. José I em 1777 e substituído no trono pela filha, a qual veio a ser a primeira mulher rainha de Portugal sob o Título de D. Maria I e o cognome de D. Maria Pia que bem lhe assentou vista a sua encarniçada devoção, a fortuna de Pombal sofreu um sério revez:
Eram os seus inimigos que agora estavam no poder e, logo em 4 de Março, foi o Marquês demitido das suas funções.
E, em 1779 foi acusado de abuso do poder, corrupção e fraudes.
Em 1781 foi julgado e, considerado culpado, condenado ao desterro, devendo manter-se a, pelo menos, vinte léguas da Corte, não lhe sendo aplicada outra pena vista a sua avançada idade e estado de saúde que, aliás, o havia de levar a falecer no ano seguinte sem, certamente, ter tido a ideia que a minha avó louvava nem, muito menos, saúde para a pôr em prática.
Nesse ano de 1781, a Inquisição a quem ele tinha tirado o terrível poder, como que escarnecendo do velho leão, condenou 25 pessoas à fogueira e, no que foram os últimos autos-de-fé realizados em Coimbra e em Évora foram queimadas vivas, respectivamente, 17 e 8 pessoas.

E, quanto aos Jesuítas, contava a minha avó, também com evidente satisfação, que o Marquês os tinha enfiado num barco que mandou afundar ao largo de Lisboa.
Não me recordo de que tenha dado explicação plausível ou indicado facto concreto que justificasse tão drástico castigo.
Tanto quanto me lembro, era razoavelmente confusa a lista de críticas aos Jesuítas que, isso era fora de dúvida, eram maus cristãos. 
O Marquês, esse, teria feito, apenas, o que devia ser feito.
Fosse como fosse, os Jesuítas tornaram-se, para mim, durante longos anos, gente pouco recomendável.

Claro que a estória de o Marquês ter afundado os frades da Companhia não tem fundamento histórico.
O que se passou foi que o Marquês, que tinha ideias próprias sobre como desenvolver o Brasil a bem da Coroa, chocou com opiniões diferentes dos missionários Jesuítas ali presentes e de onde, em 1759, acabou por os expulsar. Os confrontos entre o Ministro e a Companhia, já vinham, pelo menos, desde 1757 quando lhe retirou o papel de confessores, (que concedeu a padres mais colaborantes, designadamente, oratorianos) e de 1758, quando os acusou de cumplicidade no atentado ao Monarca.
A persistente luta contra a Companhia prosseguiu em 1766, com a organização da aliança das monarquias católicas contra a Companhia de Jesus, até 1772 quando reformou a Universidade de Coimbra subtraindo-a ao poder dos Jesuitas que aí haviam pontificado durante quase 200 anos.
Tudo culminou em 1773[vi] quando, por Breve do Papa Clemente XIV «Dominus Ac Redeptor Noster», foi extinta a Companhia de Jesus.


O mistério que subsiste é: 
Qual a razão porque uma mulher analfabeta, na Ataíja de Cima dos anos 50 do Séc. XX, mantinha uma tal admiração pelo Marquês e um tal desafecto pelos Jesuítas?


Brazão da Ordem de Cister na Casa do Monge Lagareiro, na Ataíja de Cima (foto de cerca de 1940). 
Anexa a um lagar de azeite do Séc. XVIII que foi destruído na década de 1940, a Casa do Monge Lagareiro, apesar de edifício classificado, encontra-se actualmente em estado de degradação muito avançado





[i] Veja-se Mota, Salvador Magalhães, “A Acção de Frei Manuel de Mendonça à frente dos destinos da Congregação de Sta Maria de Alcobaça da Ordem de São Bernardo (1768-1777)”, in Estudos em Homenagem a Luís António de Oliveira Ramos, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004, (p. 771-779), disponível online em http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/5011.pdf, consultado em linha em 2-2-2016.
[ii] Uma reforma do exército conduzida pelo Marquês tinha, em 1754, reduzido fortemente os efectivos militares.
[iii] Verdade que todos os exércitos modernos aprenderam amargamente, mostrando-se incapazes de vencer guerras onde exista um forte envolvimento da população local.
[iv] Também chamada Guerra do Mirandum ou, Guerra do Pacto de Família. Corresponde aos episódios portugueses da Guerra dos 7 Anos a qual, por sua vez, foi a primeira guerra a ter âmbito mundial, com batalhas na Europa, nas Américas do Norte e do Sul (Portugal perdeu a Colónia de Sacramento) e na Ásia.
[v] Nos curtos seis meses que esta guerra durou, entre Maio e Novembro de 1762, os exércitos franco-espanhóis invadiram Portugal, tomando Miranda do Douro, Chaves e Bragança e numa segunda invasão, Almeida e Castelo Branco. Houve, ainda, batalhas e escaramuças no Douro, em Valencia de Alcântara (Espanha) Vila Velha de Ródão, Montalegre, Marvão e Ouguela. Em Miranda do Douro a explosão de um paiol provocou mais de quatrocentos mortos e determinou a decadência irreversível da cidade.
Os invasores, por sua vez, tiveram perdas terríveis que se calculam num total de cerca de 25.000 homens, entre mortos, feridos, prisioneiros e desertores.
[vi] A generalidade das referências cronológicas à disputa entre o Ministro de D. José I e a Companhia de Jesus foi colhida em: Camões, Revista de letras e Culturas Lusófonas, número 15 – 16, Janeiro – Junho de 2003, Cronologia Marquês de Pombal (1699 – 1782), por Patrícia Cardoso Correia. Consultada, online em http://www.instituto-camoes.pt/revista/revista15s.htm, em 01-02-2016.