terça-feira, 22 de dezembro de 2015

17º Almoço Anual do Salão Cultural Ataíjense

Corria o ano de 1999 e o Salão Cultural Ataíjense, com a sede inacabada e as portas fechadas, sem qualquer actividade, atravessava uma época difícil.

Foi então que, se bem me lembro nos inícios de Outubro, numa reunião a que compareceram cerca de 20 pessoas se decidiu que era preciso trazer a população da Ataíja de Cima para o Salão. E, foi nessa reunião que se descobriu a fórmula mágica: convidar toda a população a participar num almoço o qual havia de servir, além do mais, para discutir o futuro da instituição.

O almoço realizou-se no terceiro domingo do Janeiro de 2000 e, o entusiasmo que se foi levantando à volta da sua organização foi tal que, nesse dia, com as instalações absolutamente lotadas, foi possível apresentar um projecto para ampliação e melhoramento das instalações do Salão.

Melhor de tudo, nesse dia foi acordado que no futuro, todos os anos, o terceiro domingo de Janeiro seria dia de almoço no Salão.

Assim se gerou uma dinâmica que, passados que estão quinze anos e depois de várias campanhas de obras de ampliação e melhoramento do Salão, se mantém bem viva e faz do Salão Cultural Ataíjense o centro efectivo da vida cívica da aldeia.

É por isso que eu e a minha família e, estou certo, a grande maioria dos naturais e residentes da Ataíja de Cima e seus amigos, estaremos presentes no


17º Almoço Anual do Salão


3º Domingo de Janeiro


17 de janeiro de 2016

Inscrições no Salão até 7 de janeiro.
Mais informações em https://www.facebook.com/SalaoCulturalAtaijense/?fref=photo
e https://www.facebook.com/events/457235637799989/



segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Um ataíjense no Tribunal do Santo Ofício




O Tribunal do Santo Ofício, também chamado a Santa Inquisição ou a Inquisição, ficou tristemente célebre pela perseguição que moveu aos acusados de judaísmo e pelo método de execução – a fogueira - que era usado para sentenciar aqueles que condenava à morte.
 
Muito há, ainda, a investigar sobre a actuação da Inquisição nos coutos de Alcobaça mas, sobre a perseguição a judeus (ou, melhor, a cristãos-novos acusados de praticarem o judaísmo às escondidas), sugiro aos leitores a consulta do blog “Alfeizerão” (alfeizerense.blogspot.pt) onde José Eduardo Lopes vem publicando uma série de excelentes textos sobre o assunto. A ele, José Eduardo Lopes, devo, aliás, a descoberta e informação da existência do processo de Manoel Francisco, de que hoje nos ocupamos.
Também por isso, lhe manifesto a minha gratidão.


Ao contrário do que alguns julgam, a Inquisição não se ocupava, apenas, de “crimes” de heresia mas, também, de pravidade e apostasia, o que abrangia um vasto leque de outros “crimes”, designadamente os relativos aos comportamentos sexuais.
O Manuel Francisco irá cair nas malhas da Inquisição precisamente, pela prática do único desses comportamentos que, actualmente, continua a ser crime: a bigamia[i]

Corria o ano de 1670[ii] quando Manuel Francisco, cristão-velho, de 44 anos de idade, pastor, residente em Salvaterra de Magos, natural das Ataíjas, termo da Vila de Aljubarrota, filho de Francisco Fernandes Alvarianes lavrador e de Ascença Fernandes e neto paterno de Francisco Fernandes Alvarianes lavrador e Eufémia Francisca, todos eles do dito lugar das Ataíjas[iii], foi preso, no Aljube[iv] de Santarém, por ter sido denunciado pelo crime de bigamia.

O Manoel Francisco foi denunciado ao Doutor Vigário Geral da colegiada de Santarém por António de Carvalhal, homem nobre, proprietário de uma quinta em Alcanhões, localidade onde o Manuel Francisco[v] tinha, anteriormente, morado alguns anos, “à soldada”[vi].

É que, para se poder casar uma segunda vez, como chegou a casar, com Águeda Luís, tendo o casamento sido celebrado, em vinte e sete de novembro de mil seiscentos e sessenta e nove, na igreja Paroquial de Salvaterra de Magos, o Manoel Francisco forjou nome, filiação e naturalidade e disse-se solteiro.

Disse, então, chamar-se Francisco João, ser de Alcanhões e filho de Vicente João e Isabel João.

Quando os respectivos banhos[vii] foram apregoados na igreja de Alcanhões, logo o fidalgo denunciou a fraude ao Vigário.

De facto, havia em Alcanhões um Vicente João, cujos filhos foram também ouvidos como testemunhas e, naturalmente, denunciaram o logro e, ainda, que ali não existia nenhuma Isabel João.
Uma das ditas testemunhas sabia também, por o ter ouvido a “uns tanoeiros do lugar do Carvalhal, junto da Vila de Aljubarrota” que o tal era aí casado com mulher de quem tinha filhos.

Como o Manuel Francisco há-de, mais tarde, confessar perante os Inquisidores do Santo Ofício de Lisboa ele tinha, há cerca de onze anos atrás, casado na Igreja de São Vicente de Aljubarrota com Maria Guerra, natural daquela Vila, filha de Vicente Luís trabalhador e de Maria Francisca, também da Vila de Aljubarrota. E, com ela fez vida marital, por espaço de cinco ou seis anos, e tiveram quatro filhos, e depois em razão de desavenças que teve com a dita sua mulher, abandonou o lar rumando a Salvaterra de Magos (com prolongada paragem em Alcanhões, como vimos).

Na sua confissão, desculpa-se o Manuel Francisco que só se persuadiu a casar por estar convencido da que a sua primeira mulher tinha morrido, o que lhe teria sido dito por António Fernandes Cardador, natural e morador da Cidade de Évora que, vindo de Nossa Senhora da Nazaré, passara pela sua terra em tempo que falecera a sua mulher Maria Guerra e embora não tenha feito quaisquer outras diligências para saber a verdade, convenceu-se, disse, de que ela era morta.

Os Inquisidores,esses, não se convenceram e, verdade seja dita, o processo não mostra um Manuel Francisco recto e impoluto: Usou três nomes diferentes, tenta passar culpas para a segunda mulher, sugerindo que ela é que o pressionou a casar e foi a única responsável pelos banhos (e, portanto, pelas inverdades neles contidas), pretende responsabilizar um terceiro de o ter convencido da morte da sua primeira mulher.

Apesar disso, não parece que fosse um mero vigarista. O Manuel Francisco, fugido da terra, da mulher e dos filhos e, sabe-se lá mais do quê, antes parece ser um pobre diabo, pois não logra outros modos de subsistência que não como o criado que foi em Alcanhões ou o pastor que era em Salvaterra.
Quem conheceu o campo ainda há meio século, ou pouco mais, sabe que criado e pastor eram dois dos degraus mais baixos da nossa sociedade rural, donde só se podia descer para mendigo. Não há razão para pensar que, neste aspecto, as coisas fossem diferentes naquela época. E, isso conduz-nos a outra dedução: talvez o Manuel Francisco falasse verdade quando sugeria que foi a segunda mulher, a viúva Águeda Luís que o pressionou para casar. É que, naquele tempo, era praticamente impossível a vida de uma viúva que não tivesse um homem para a proteger, fosse ele marido, pai, filho, ou outro parente próximo.

O processo, cuja capa acima reproduzimos, ocupa 88 fls de papel, encontra-se arquivado na Torre do Tombo (Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 1494 - PT/TT/TSO-IL/028/01494) e decorreu entre 4-6-1670 e 19-6-1676 “contra Manoel Francisco, cristão-velho, de 44 anos de idade, pastor, residente em Salvaterra de Magos, natural das Ataíjas, termo da Vila de Aljubarrota, filho de Francisco Fernandes Alvarianes, lavrador e Ascença Fernandes.
Acusado de bigamia por ter casado duas vezes, a primeira em S. Vicente de Aljubarrota com Maria Guerra, a segunda em Salvaterra de Magos com Águeda Luís, estando viva a primeira mulher e dizendo-se Francisco João e ser natural de Alcanhões”.

Foi preso em 17-6-1670 e condenado, no auto-de-fé de 21-6-1671, em abjuração de levi, ser açoitado publicamente, degredado para as galés por sete anos, cárcere a arbítrio, penitências espirituais e pagamento das custas do processo.


Todo o processo está digitalizado e disponível online em:




[i] Código Penal
TÍTULO I
Dos crimes contra a vida em sociedade
CAPÍTULO I
Dos crimes contra a família, os sentimentos religiosos e o respeito devido aos mortos
SECÇÃO I
Dos crimes contra a família
Artigo 247º
Bigamia
Quem:
a) Sendo casado, contrair outro casamento; ou
b) Contrair casamento com pessoa casada;
é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
[ii] A Guerra da Restauração que, desde 1 de Dezembro de 1640, vinha opondo Portugal e Espanha, tinha terminado pela assinatura do Tratado de Paz de 13 de Fevereiro de 1668 e o Rei D. Afonso VI (em cujo reinado houve importantes obras em Alcobaça) tinha perdido para o irmão o Trono e o leito.
[iii] Apesar de em todo o processo se referir correntemente “as Ataijas” como o local de origem do Manuel Francisco, os seus pais são identificados, a fls 30v., como “moradores no lugar de Ataíja de Sima”.
[iv] Aljube é palavra que provém do árabe, significando prisão escura, cárcere, caverna, poço ou cisterna. É a mesma raiz etimológica de onde, segundo alguns pretendem, provém a palavra Aljubarrota.
[v] Que dizia, nessa época, chamar-se Francisco Fernandez.
[vi] Soldada era designação para o salário dos criados.
[vii] Banhos. Os anúncios que se faziam nas Igrejas antes dos casamentos, para se averiguar a existência de algum impedimento à sua realização.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Festival das Sopas da Ataíja de Cima – 2015



Decorreu no passado domingo, dia 6 de Setembro, o Festival das sopas da Ataíja de Cima – 2015.
Resultado exclusivo do trabalho de cerca de cem voluntários, reunidos em torno do Salão Cultural Ataijense, o festival contou, este ano, com uma participação record de mais de setecentas pessoas e afirmou-se, mais uma vez, como o maior evento gastronómico da região.

Foi bom participar, provar algumas deliciosas sopas de entre a dúzia e meia que existia à disposição dos participantes, conviver com amigos e conterrâneos, ver alegria e satisfação em todos os rostos e muita gente vinda de diversos lugares, de Lisboa à Marinha Grande, um animado grupo de ingleses, e franceses como a minha amiga Annick que, para o final, só me perguntava quantos habitantes tinha a aldeia e como é que nós tínhamos conseguido fazer tudo e, claramente contente com as sopas e o ambiente, dizia que era bom ver uma aldeia assim, capaz de se unir e criar um convívio tão agradável.


Às 12H20 tudo estava preparado para receber os convivas:

Que eram muitos, como se vê:

E se atiraram, com gosto e vontade, a estas sopas e a mais uma dúzia delas:

e às carnes grelhadas

E aos doces:


Com a mesma vontade com que se fez o necessário para a realização do evento, acabado este, foi tempo de arrumar tudo.
Este, era o aspecto do recinto no dia 7, às 11h30.
Foi aqui que teve lugar o festival das sopas?:



Obrigado às cozinheiras e a todos os que colaboraram e tornaram possível este dia. 




segunda-feira, 24 de agosto de 2015

FESTIVAL das SOPAS 2015


É já no próximo dia 6 de Setembro, Domingo, que terá lugar o FESTIVAL das SOPAS da ATAÍJA DE CIMA.

As inscrições estão abertas e podem ser feitas no Salão Cultural Ataíjense até ao dia 30 de Agosto.

Instruções completas podem ser consultadas no Facebook, na página do evento: 
https://www.facebook.com/events/507669276064432/

Haverá, claro, sopa de chícharos

 e, pelo menos, mais 17 sopas diferentes. Cozinhadas por outras tantas voluntárias

Se você for daquelas pessoas a quem uma sopinha, ou dezoito que sejam, não chegam para a saciar, então, haverá muitas febras e entremeadas grelhadas. 
Temos um grupo largo e experiente de assadores que hão-de tratar com esmero desta questão dos grelhados.
 Eis aqui alguns deles, em plena função, durante o FESTIVAL das SOPAS 2013


E, porque muita gente come muito pão, já estão mobilizados treze fornos e outras tantas ataijenses que, generosamente, se voluntariaram para cozer as dezenas de quilos de pão caseiro com que havemos de acompanhar as sopas e os grelhados. 


No próximo dia 6 de Setembro, à vista da serra dos Candeeiros e em redor da imponente estátua de homenagem aos homens que extraem a pedra, muitas centenas de pessoas, ataijenses e amigos, vão, mais uma vez, encher o Largo do Cabouqueiro, para uma grande jornada de convívio, só possível com o trabalho voluntário de muitas dezenas.




Até lá!

https://www.facebook.com/events/507669276064432/

https://www.facebook.com/SalaoCulturalAtaijense?fref=ts


terça-feira, 4 de agosto de 2015

O Chafariz de Cacilhas


Cacilhas sempre foi pouco mais do que um cais onde acostam os barcos que transportam os passageiros (e, antes da ponte, também transportavam as mercadorias) que circulam entre Lisboa e a margem sul na parte mais estreita do estuário do Tejo.
Almada, lá no alto, é terra antiga que teve foral de D. Sancho I mas, a sua história tem tanto de longa quanto de discreta.
É, assim com todas as povoações das margens sul. De costas para o sol, estão lá apenas como ponto de apoio às cidades grandes que na sua frente de desenvolvem do outro lado do rio.
E, nem a inauguração, em 17 de Maio de 1959, da gigantesca estátua do Cristo-Rei[i], mudou grandemente as coisas.

Embora desde meados do Séc. XIX se verifique no concelho de Almada um crescimento populacional constante, o grande salto, económico e demográfico[ii], só é dado a partir de 1966 quando, no dia 6 de Agosto, foi inaugurada a ponte sobre o Tejo, logo seguida da inauguração do estaleiro da Margueira[iii] em 1967[iv].

Cacilhas era (é) uma pequena faixa, uma praia, encaixada entre o rio e a colina onde se ergue Almada. Pequena povoação justificada pela existência do cais, de que há memória desde os Fenícios e os Romanos, foi, sempre, terra de pescadores, marítimos, carregadores e almocreves que, em meados do Séc. XVIII, já eram em número suficiente para justificar a construção da Igreja Paroquial de Nossa Senhora do Bom Sucesso.

Ali, na estreita praia, tudo se concentra: o cais dos “cacilheiros” e a correspondente estação de autocarros, a Igreja a alguns metros, as docas do desactivado estaleiro da H. Parry & Son, Lda e, um niquinho mais para sul, as gigantescas e também desactivadas docas do estaleiro da Margueira da Lisnave. Para o lado direito de quem chega de barco há becos e está o Ginjal onde pontificam restaurantes, antigas tascas e magníficas vistas para o rio e Lisboa.

Tudo chega e tudo parte do Largo de Cacilhas onde, em 1874, a Câmara Municipal de Almada mandou erguer um chafariz que ficou colocado à entrada da Rua Direita[v], por onde se chegava à sede do concelho.
Pode ter-se uma noção da importância e notoriedade pública do acontecimento vendo o destaque que lhe foi dado na primeira página do “Diário Ilustrado” de 1 de Novembro de 1874:



Depois de ter servido a população durante mais de setenta anos, por razões aparentemente desconhecidas e em data incerta, algures pelos anos de 1940 ou princípios de 1950, o chafariz desapareceu, quando a má qualidade da água já não permitia o uso humano[vi].

Aguadeiros, Cacilhas, [s.d.].
José Arthur Leitão Barcia, in archivo photographico da C.M.L.

De então para cá, o Largo de Cacilhas mudou de nome e, várias vezes, de configuração, esta, tentando a cada vez uma melhor adaptação às necessidades decorrentes do serviço do cais e da articulação entre “cacilheiros” e transportes rodoviários e, essa terá sido a razão próxima para a o desaparecimento do chafariz.

Mas, se desapareceu o chafariz não desapareceu a memória da sua importância, o que levou a Câmara Municipal de Almada a decidir, no âmbito de obras para revitalização do centro histórico de Cacilhas, levantar no mesmo local do primitivo chafariz uma réplica, cuja inauguração teve lugar, no meio de grande festa, em 13 de Julho de 2012.


E, o que é que a Ataíja de Cima tem a ver com tudo isto?

O caso é que a dita réplica, uma cópia perfeita, colocada no local onde existiu o chafariz original, local esse que hoje como então é o coração da vida de Cacilhas, o que faz com que o chafariz seja visto, diariamente, por milhares de pessoas, essa réplica, é obra da empresa ataíjense Vigário & Machado. Lda[vii]

 Foto de Marco Balsinha, in http://www.panoramio.com/photo/76206415



[i] O Cristo-Rei não foi concebido em atenção a Almada, foi concebido para ser visto a partir de Lisboa.
Nesse tempo não existia a Diocese de Setúbal, criada em 1975. A área pertencia ao Patriarcado de Lisboa onde, aliás, o Cristo-Rei se manteve, apenas transitando para a Diocese de Setúbal em 1999.
[ii] O concelho de Almada que em 1960 tinha pouco mais de 70.000 habitantes, passou em 1980 para cerca do dobro e, actualmente, terá cerca de 174.000 residentes.
[iii] Com capacidade para receber os maiores navios então existentes, o estaleiro beneficiou largamente do encerramento do Canal do Suez, ocorrido no ano da sua inauguração, em 1967 e que se manteve até 1975.
[iv] Ainda não tinha passado um ano sobre a data de 5 de Maio de 1966 quando, primeira vez, um navio transportando contentores descarregou num porto europeu (Roterdão, na Holanda). A contentorização das cargas havia de, nos anos seguintes, revolucionar completamente os transportes em geral e o transporte marítimo em particular.
[v] Actual Rua Cândido dos Reis a qual foi, até à década de 1960, o principal acesso de Cacilhas a Almada.
[vi] Em meados dos anos de 1940, quando começava a verificar-se crescimento urbano de Almada, foi resolvido o problema crónico do abastecimento de água a Cacilhas, com a entrada em serviço da rede de abastecimento domiciliário e, daí, a desnecessidade e o consequente desaparecimento do chafariz.
[vii] Vigário & Machado, Lda, Rua dos Arneiros, 5, 2460-713 Ataíja de Cima. Tel. 262508146, https://www.facebook.com/vigariomachado.lda/

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Sobre a corrupção



É com enorme facilidade que, hoje em dia, se atiram acusações de corrupção[i] sobre tudo e todos e, vem crescendo a idéia de que todos os políticos são corruptos e, pior do que isso, ganham espaço as alegações de que tal é fruto da democracia.
Ora isso, simplesmente, não é verdade.

A corrupção existe em toda a parte e, tudo o indica, é especialmente presente e perniciosa nos países menos desenvolvidos, aqueles onde é maior a desigualdade entre as classes sociais. Tende também a prosperar, não nas democracias como alguns nos querem convencer mas, antes, nos regimes autoritários onde cada funcionário é um pequeno rei e onde as queixas e as críticas têm de ser bem ponderadas, sob pena de poderem acarretar grandes aborrecimentos e prejuízos para o queixoso.

Quem, como eu, tem mais de sessenta anos há-de lembrar-se do tempo em que um pobre não ía ao médico, a uma repartição pública ou a casa de alguém “importante”, fosse pedir que favor ou direito fosse, que não levasse algo para ofertar ao interlocutor. Ele era uma galinha ou uma dúzia de ovos, uma saquinha de nozes, um garrafão de azeite. Na época própria, um cestinho de figos ou de pêssegos, frutas muito apreciadas pelas pessoas de bem.

Ilustrativo do que digo, é a correspondência trocada entre os nossos conterrâneos, Joaquina Rosalia e o  seu marido José Coelho que estava a trabalhar na zona do Areeiro, em Lisboa, enquanto ela ficara na aldeia, cuidando dos filhos, dos pais que já não eram novos e das magras terras familiares.

As cartas, que se transcrevem na íntegra (o / indica a mudança de linha no original), incluindo os erros ortográficos que denunciam uma fraca escolarização, dão conta das dificuladades da vida, do amor familiar e da cumplicidade entre os cônjuges que tratam quase em código os assuntos que querem que fique entre eles, mostram como se pagam algumas dívidas e se foge de despesas (o assunto de que o António da Silvina quer novas é o do convite para o seu casamento).
No que à corrupção diz respeito, as cartas evidenciam o modo como os camponeses pagam os favores e os capitães aproveitam. Mas, só dentro de certos limites. Pobre e submetido, às vezes submisso, sim. Parvo, não!
A recusa do José Coelho de pagar pelos “favores” mais do que eles valem, é um grito de revolta contra a exploração e a corrupção.



(Se os eventuais leitores me o permitem, um conselho: Leiam as cartas com calma e cuidado, procurando a pontuação correcta de cada frase e o significado de uma ou outra palavra que não compreendam à primeira leitura. Se o fizerem, entrarão numa viagem no tempo ao Portugal profundo de meados do séc. XX).



Ataija de Cima 21 – 4 – 1949
Meu querido e saudoso marido / muito estimo que esta minha carta  /  te vá encuntrar de saude que / eu e os nossos meninos / ficamos bem graças a Deus. / assim como touda a nossa familia / José cá ressebi a tua carta no dia 19 a cual te agradeço muito / já estava anciosa para saber nu- / ticias tuas vi que estavas de / saude foi o que mais dezijei / saber ficaste então no arieiro / não encontrates coiza mais a teu / geito mas vê sempre se encontras / porque eu gostava mais que teves- / ses outro emprêgo que estares nesse / trabalho. /
José eu já falei com o Joaquim do Álvaro[ii] por causa da revista[iii] mas / el não me deu muito boas aguas / disseme que não conhecia o capitão / que já outras lhe tinhão pedido / mas que não pasava ninhoma este / ano eu pedilhe e disse que lhe / pagava ele disse-me que is saber cem / era o capitão e depois que falavamos / eide falar outra vez com ele / mas já me falou em 5 litros de / azeite para o capitão disme o que eide fazer / José as nossas siaras já animem mais já cá chuveu ontem e ohje já todas / tem outra graça já trusse o relo- / jio que tem trabalhado bem / o Joaquim Mindrico[iv] já me deu / o dinheiro pedi o résto ao pai e deio a Senhora D. Ana[v]. / José os nossos filhinhos estão / bonzinhos graças a Deus a menina esta muito gorducha e o Américo / continua na sua conversa que / nunca me deixa estar calada / pregunta-me muitas vezes por / ti dogolhe que foste para Lisboa / e ele desme que foste para a missa / esta a escrever tembem e disme se eu já escrevi tembem /
José o Antonio da Silvina[vi] / veio perguntar-me com respeito[vii] / se tu me tinhas deixado algumas / ordens eu disselhe que não ele / perguntoume a tua dirécão e / se aí for ter alguma coisa já estas / provenido tive carta da Luiza[viii] manda-te / saudades e agradessete muito os ditalhos do / Américo já perguntei pelo teu chapéu / ao José Matias[ix] mas não o vio se mais / saudades dos nossos vizinhos da mãi e / da Joaquina do pai da mãi da maria / beijinhos dos nossos meninos do nosso / américo tambem estes risquinhos (ricos a lápis) desta / tua mulher aseita vivas saudades / desta que do fundo do coração te sauda /
Joaquina Rosalia de Sosua
E, na margem superior:
José não te mando nada porque como sabes eu cá tembem tenho de comprar tudo[x]



Lisboa, 1 de Maio de 1949
Minha querida mulher /
muito estimo que esta minha carta / te vá encontar de saude junto / dos nossos querido filhinhos e de tôda / a familia que eu fico bem de saude / graças a Deus. /
Joaquina descolpa em eu não ter / escrito a mai tempo arazão é que / eu queria mandar-te o mais dinheiro[xi] / que eu pudece que bem sei que te deve / ter sido pressiso. Joaquina com respei- / to á revista não te encomodes / encomodes que eu antes quero / pagar a multa por que são só / 25$00[xii] e os 5 litros de azeite são / Mais caros: Agora tu da o dinheiro / o pai e o outro e para ti a quelo / que te fôr presiso e compra pão de trigo[xiii] para ti e para os nossos / filhinhos e dá papinha á nossa / minina e ó nosso Americozinho / dá li muitos beijinhos que eu / tenho tantas saudades dos meus meninos mandame dezer se / tens muito Coelho e como estão / as novidades[xiv] e se tens ouvido dezer alguma coiza a respeito / das oliveiras do Rebôxo.[xv] /
Joaquina esto cá esta mão e o ordenádo / é a 22 e a 23 e o mais alto e 23 / manda dezer se o basselo esta pegado /
Joaquina eu mando-te 400$00: / e se a seváda da cova da / santa esta bonita: e as batatas / da Ratinha: se for ai o bacenador[xvi] manda bacenar a pôrca / e vai com ela a porco que / comessa a ficar tarde. / escreveme a sim que póssas / saudades áo pai e a mai e / a Mai e a Joaquina / e muitos beijinhos os nossos / querido filhinhos muito beijinhos / e tu a seita as mais vivas saudades deste teu / Marido muito amigo e /
dedicado José Sabino de Sousa






[i] A definição de corrupção à luz da lei penal actual pode ser vista, por ex., no site da Direcção-Geral de Política de Justiça, Ministério da Justiça, em: http://www.dgpj.mj.pt/sections/informacao-e-eventos/prevenir-e-combater-a/anexos/definicao-de-corrupcao/ (consultado em linha em 14-7-2015)
[ii] Joaquim do Álvaro tinha uma taberna e oficina de sapateiro no actual Largo da Padeira, em Aljubarrota, onde hoje é o café e restaurante O Torcato. O Torcato é, aliás, seu filho. Era, ainda, agente dos Capristanos (e dos Claras?), fazendo o despacho dos cestos e cabazes que, em roda-viva, circulavam de e para Lisboa, ao ritmo da emigração sazonal dos homens serranos. Para a sua loja telefonava-se de Lisboa, com o pedido de mandar recado à Ataíja para que, à hora marcada, lá estivesse a pessoa com quem se queria falar, o que ele fazia, aproveitando um passante ou mandando um estafeta. A pessoa vinha da Ataíja e, à hora combinada, fazia-se novo telefonema para então se falar com quem se queria falar. Estas múltiplas funções, a que juntava outras como a de mediador referida nesta carta, davam ao Joaquim do Álvaro uma enorme importância social e económica.
[iii] Apresentação anual aos serviços do Exército a que estavam obrigados todos os que haviam prestado o serviço militar obrigatório e se encontravam, até certa idade, na disponibilidade, quer dizer, estavam disponíveis, podendo ser chamados, de novo, ao serviço militar.
[iv] Minderico (natural de Minde), alcunha que herdou de um avô. Era filho de José Constantino e foi casado com Luísa da Graça, prima da autora.
[v] Residia em Leiria, como se vê de outras cartas. Desconheço os laços que a ligavam a José Coelho e Joaquina Rosalia e a levavam a emprestar-lhes dinheiro.
[vi] Assim chamado por ser filho de uma Silvina. Esta Silvina era natural do Lorvão e foi casada na Ataíja de Cima com Manuel Maurício, tendo servido de parteira a muitos ataíjenses (estou, agora, na dúvida se quem me ajudou a vir ao mundo foi a ti'Silvina ou a ti'Felismina).
[vii] Com respeito, a propósito de, relativamente a.
[viii] A Luísa era uma das irmãs freiras da autora.
[ix] Filho de Matias Ângelo. Casou com uma prima de meu pai e foi morar para a Quinta de Sampaio, nos Olheiros e, por isso, era também conhecido como José Matias de Sampaio.
[x] Sobrariam na despensa alguns legumes secos (chícharos) da colheita do ano anterior e couves-galegas no quintal e estariam a chegar as favas novas que, por aqui, eram as primícias da Primavera.
[xi] “o mais dinheiro”, quer dizer, a maior quantidade de dinheiro.
[xii] Vinte e cinco escudos, hoje cerca de 12 cêntimos mas, naquele tempo, mais do que a jorna de um homem.
[xiii] O pão de trigo era um luxo que se reservava aos doentes e aos domingos e dias santos. As colheitas eram de muito fraca produtividade e, na maioria das famílias, muito pequenas (em 1948 a Joaquina Rosalia tinha escrito a seu marido dando conta de ter colhido, apenas, 8 alqueires de trigo de má qualidade (“só jelhas”).
[xiv] As novidades a que o autor se refere são as culturas de primavera que, agora, estão em pleno desenvolvimento.
[xv] Dos Casais de Santa Teresa.
[xvi] Vacinador. 

quinta-feira, 11 de junho de 2015

O Capitão Brasileiro de Chiqueda




A decifração da lápide reproduzida na fotografia, a qual se encontra na capela de Nossa Senhora do Carmo, em Chiqueda, foi proposta pela Associação Azenhas de Chiqueda aos leitores da sua página no Facebook (AQUI), em 20 de Abril p. p. sem que até agora, 11-6-2015, haja notícia de a lápide ter sido decifrada.

Como já dissemos mais de uma vez, embora este blog se dedique (exclusivamente, afirma-se no título) à divulgação da Ataíja de Cima, a verdade é que a Ataíja não é uma ilha e, quando se procura sobre o seu passado, sempre, inevitavelmente, surgem factos relativos a aldeias vizinhas. É o que agora acontece e, se decidimos elaborar este texto, foi porque “o caso da lápide” contém todos os ingredientes que nos motivam nas nossas “investigações”.

Vamos, então, tentar dar um pequeno contributo para a decifração da dita lápide.

Antes do mais, é preciso ter presente que uma lápide, se destina a assinalar um facto e o seu autor ou protagonista.
Na maior parte das vezes o que mais exactamente se pretende, é homenagear, engrandecer, glorificar, perpetuar o autor ou protagonista ou a sua memória e, por isso, se não poupa na descrição desse homenageado, enumerando nome, naturalidade, profissão e honras, morada, feitos, etc., cabendo ao facto assinalado servir de “prova” do merecimento da homenagem, engrandecimento, glória e memória de tal pessoa.
Termina-se, - todas as lápides terminam -, com a data. Porque uma lápide é, essencialmente, uma luta contra o tempo, uma ambição de eternidade.

É isso o que, também, se passa nesta lápide. Vejamos:

As primeiras palavras referem-se ao cargo ou profissão da pessoa que a placa quer honrar: O CAM, significará, por certo, O CAPITAM, quer dizer, O Capitão.

A palavra MEL, será, ainda, relativa ao posto ou cargo ou, por outro lado, será, como parece, o nome próprio Manoel. Contra esta última hipótese temos o facto de estar separada do resto do nome por uma vírgula que não teria aqui razão (mas, sempre se dirá que também não existe qualquer justificação para a vírgula que, por ex., mais adiante, se vê entre as palavras “DESTE” e “LVGAR”).

Segue-se o que, sem dúvida, já é o nome: iOZE, isto é, IOZE, José.
FROS poderia ser Francisco não fora (ou será, apesar de?) o S final.

A transcrição do restante texto não parece oferecer grandes dúvidas. Assim:

CAVRO, - CAVALEIRO
PROFO, - PROFESSO
NAORDEM,DECHRISTO – NA ORDEM DE CRISTO
NAT.ALDESTE,LVGAR, - NATURAL DESTE LUGAR
MORNACIDE,DABA – MORADOR NA CIDADE DA BAÍA
MANDOV FAZERESTA,CAPA, - MANDOU FAZER ESTA CAPELA
PA,NASADOCARMO,ANNO1800 – PARA NOSSA SENHORA DO CARMO, ANO1800


Em conclusão do que, a minha proposta de leitura para a lápide é a seguinte:

O Capitão Manuel José Francisco, Cavaleiro Professo na Ordem de Cristo
Natural deste lugar, morador na cidade da Baía, mandou
Fazer esta Capela para Nossa Senhora do Carmo, Ano 1800


O Couseiro, em meados do Século XVII, apenas assinala a existência, em Chiqueda, de devoção a São Brás, nestes termos:
“No Pisso (poço) do Soão, outra, (ermida) da invocação de S. Brás, imagem de vulto; não tem capela, nem nicho, nem retábulo, nem sacristia, nem sino, nem é forrada.”[i]

Pelas chamadas Memórias Paroquiais[ii], ficamos a saber que, cerca de cem anos depois, em 1758, “o lugar de Chaqueda tem vinte e oito vizinhos[iii].” e, “ (uma) ermida dentro do lugar de Chaqueda de Sam Bras, a qual pertence aos moradores do mesmo lugar;”

Ou seja, até 42 anos antes da data inscrita na lápide ainda não se invocava em Chiqueda a Nossa Senhora do Carmo.

O promotor da capela e responsável pela introdução da devoção a Nossa Senhora do Carmo em Chiqueda era, como vimos, morador na cidade de São Salvador da Baía, (que era, então, a maior cidade e capital do Brasil) o que explicará a sua devoção ao Carmelo que, por essa época, gozava de grande expansão em todo o Brasil e, particularmente na dita cidade e no Recôncavo baiano[iv].


Quem seria esse capitão, nascido em Chiqueda que talvez se chamasse Manuel José Francisco, enriqueceu no Brasil e o quis mostrar aos seus conterrâneos, no ano de 1800?





[i] Couseiro ou Memórias do Bispado de Leiria, Transcrição da 2ª edição, de 1898, pág. 264, Colecção Tempos & Vidas, 16, Textiverso, Leiria, 2011.
[ii] João Cosme | José Varandas (Introdução, Transcrição e Índices), Memórias Paroquiais (1758), Volume III [Almonde – Amorim], Edição Caleidoscópio e Centro de História da Universidade de Lisboa, 2011, pág.s 10 e 13.
[iii] Talvez, cerca de 90 ou 100 pessoas.
[iv] O conjunto do Carmo (Convento, Igreja http://www.hpip.org/Default/pt/Homepage/Obra?a=1123
  e Igreja da Ordem Terceira http://www.hpip.org/Default/pt/Homepage/Obra?a=1150) constitui, um dos mais importantes monumentos coloniais de S. Salvador da Baía. No entorno é, também, muito importante, o conjunto do Carmo em Cachoeira (http://www.hpip.org/def/pt/Homepage/Obra?a=972)
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