quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

A Rua dos Arneiros em Meados do Século XX




A Rua dos Arneiros que, a partir do Outeiro, liga à Ataíja de Baixo, é um caso curioso já que, por um lado, aparenta ser um caminho, digamos, recente, uma vez que não aparece representado no Mapa elaborado em 1791 para a construção da estrada de Rio Maior a Leiria, a Estrada de D. Maria Pia e, por outro lado, foi o primeiro caminho desta borda da serra a ser classificado como Estrada Municipal, o que aconteceu, como já disse no texto O Caminho do Concelho, pelo Decreto de 28 de Julho de 1894.

Se a classificação de 1894 se compreende no âmbito de um processo de criação de ligações radiais das povoações à sede do concelho, (na mesma data foram criadas as estradas para Chequeda e Molianos e Maiorga, Casalinho, Fanhais[i] e Pataias, entre outras) a ausência do mapa de 1891 significará que, muito provavelmente, não existia naquela data, o que implicaria que as relações entre as Ataíjas eram de baixa intensidade, talvez por um efeito barreira criado pelo olival dos frades que as separava. 

Arneiro, dizem os dicionários, é um lugar areento e estéril. Aqui, não me parece que seja especialmente areento, antes, argiloso o que, aliás, não é incompatível. E, estéril não é mas é pouco produtivo. Isso, deve-se sobretudo à pouca espessura do solo arável, sendo comum encontrar pedra a pouca profundidade (o meu pai intentou, há menos de quarenta anos, plantar uma vinha no Serrado. Além de, numa parte do terreno, ter encontrado uma grande quantidade de pedra, a vinha foi sempre muito fraca, tendo durado, apenas, cerca de vinte anos. De modo semelhante, já na Figueira Pedral, a Aire Mármores construiu recentemente um parque de estacionamento e aí se viu bem que o solo arável tinha menos de trinta centímetros de espessura, e assentava sobre uma cama contínua de pedra).

No texto A Rua das Seixeiras em Meados do Século XX, já deixei uma descrição de como era a Rua dos Arneiros naquele tempo. Vejamos agora como ela era habitada, pouco depois de eu nascer:

Começando pelo Outeiro, a primeira casa que ali existia, e ainda existe, era a de José Veríssimo e Maria da Graça (Maria da Serra), agora desabitada. Ali moravam os proprietários e dois filhos, estando os mais novos ainda por nascer.
Até ali, nenhumas construções existiam senão o pátio e eira da casa de António Matias e, do lado da serra, agora nos cómodos do José Planeta, um poço, propriedade de José Ribeiro.

Desse lado da serra, seguia-se a casa onde viviam os irmãos António e Manuel Ângelo, o primeiro conhecido pela alcunha de Rospiço, alcunha essa que é, aparentemente, corruptela de Respício, que já encontrámos como nome próprio feminino (Respícia dos Santos) e apelido. O dicionário online Priberam diz que respício significa criança magra e enfezada.
O que inicialmente era para mim uma estranha alcunha terá, assim, algo a ver com o aspecto físico da criança que foi António Ângelo.
O irmão Manuel, esse, foi conhecido por o Piquete.

Após um curto intervalo de terra agrícola, seguia-se e segue-se a casa agora de António Salgueiro e, então, de Augusto Ribeiro. Logo, colada, a casa de Maria Jorge e de seu marido António Constantino, o Toni. Ela, sobrinha do Augusto.
Em frente, um antigo lagar de vinho, propriedade do Augusto, o único lagar de vara que conheci na Ataíja de Cima. Já não trabalhava, mas ainda lá estava tudo: o lagar, a vara, o fuso e o peso.
Era uma construção ampla tendo, quer do lado do caminho quer do terreno, portões largos, por onde cabia um carro de burro e se fazia a serventia de uns terrenos encravados que ali havia, entre eles um que era propriedade de José Henrique que foi conhecido por José Neto e José Diabo.
Quando o José Diabo se resolveu a casar, era aquele o único terreno que possuía onde pudesse construir uma casa.
O Augusto já tinha falecido, a sua viúva, Maria Adelaide regressara ao Casal Pardo de onde era natural e o proprietário do lagar era agora José Veríssimo que recusou a pretensão do Diabo de fazer passar os materiais para a construção pelo seu terreno, ao lado do lagar. Que não. Que passasse por onde sempre se tinha passado. Que a serventia era pelo lagar e não lhe dava outra.
O caso só se resolveu quando o Tribunal mandou que se mudasse a construção uns metros para o lado, como ainda lá está, pagando o Diabo as despesas.

E, foi assim que nasceu a Travessa dos Arneiros.

Ao tal lagar seguia-se, menos de um metro depois (deixando apenas uma estreita passagem até à cisterna que ainda lá está, embora muito arruinada) a casa de Luís Barra e Ana Dionísio, (Denísia, dizíamos), agora em irreversível ruína.
Seguia-se, onde o meu primo João Porfírio teve o palheiro do burro, a casa onde vivia a, então, ainda jovem viúva Joaquina Cordeiro e, depois, a casa, agora também devoluta, de João da Graça Salgueiro e de sua mulher Ana Lourenço da Silva que todos conhecemos por Ana Patoixa, que aí viviam com os dois filhos. Num dos seus anexos funciona, actualmente, a Escola de Concertinas Aldeias de Alcobaça.
Seguiam-se a casa e os cómodos dos pais da Ana, Francisco Dionísio e Joaquina Lourenço e, depois, a casa onde eu nasci.

A Rua do Martins era, então, a Azinhaga do Martins, um caminho estreito, onde só cabia um carro de vacas entre paredes de pedra solta, e não tinha casas. Apenas olivais. O olival da Burra, o olival do Guincho, o Olival do Brilhante. Uma parte deste, onde os Faxia têm agora as suas casas era, naquele tempo, propriedade de uma irmã do meu avô Quitério que morava em Valbom e era tão cerrado que o sol quase não chegava ao chão.
Voltando à Rua dos Arneiros, passada a Azinhaga do Martins havia a casa de José Dionísio e de sua mulher Joaquina Nazaré (Joaquina, filha da Nazaré) e, logo a seguir a que tinha sido do pai dela, João Maurício, sobre a qual o Pérides, neto dele, mais tarde construiu a sua.

Voltando um pouco atrás e ao lado de Aljubarrota, a casa dos meus pais, construída em 1946, tinha (e tem) uma parede comum com a adega do meu avô, adega essa que, por sua vez, tinha sido construída, em finais do Século XIX, por um irmão da minha avó que dela queria fazer residência. Nunca o chegou a ser porque ele veio a falecer na tropa. Dizia minha avó, que de desgosto.

Seguia-se o quintal de António Lourenço, onde pontificava uma já então velha figueira que ainda lá está hoje e, estávamos na entrada da Rua das Covas.
Na esquina do lado sul, já lá estava, desde 1945, a casa de José Coelho Vigário, o José Guilhermino (o José da Guilhermina) e, dentro do seu pátio, a casa de alpendre onde ainda vivia a sua mãe, Guilhermina Vigário então já viúva do meu tio-avô António Quitério, o Mal-das-Vinhas.
Tendo falecido recentemente (05-02-2019) a ti’ Maria Marques, viúva de José Guilhermino, esta é mais uma casa inabitada.

Continuando na Rua das Covas, seguia-se o Quintal da Rosalia onde havia a única casa com o chão ainda em terra que conheci habitada na Ataíja. Aí morava então, de empréstimo, José Maurício que foi conhecido por José Rebolão, a sua mulher Emília Mariano, natural do Cadoiço e a filha mais velha, nascida no mesmo dia que eu.

Do outro lado da rua a casa de António Lourenço, o Ária e de sua mulher, Maria Quitério, minha tia-avó.
Ele também era parente, em grau que ainda não apurei, pelo lado da minha avó paterna mas, mais do que isso tinha a fama e, parece, o proveito, de ter dinheiro, fruto, talvez, dos tempos em que trabalhou como capataz ou feitor para o Raposo de Magalhães na sua quinta dos Ganilhos ou do Mirante (da estrada ainda se consegue ver, no meio do campo, por detrás de uma urbanização recente, uma pequena torre ameada, o Mirante, que servia para o capataz, lá de cima, vigiar terras, culturas e servos).
Certo é que o meu pai, quando quis fugir da vida sem horizontes da aldeia que lhe não permitia alimentar decentemente três filhos pequenos, pensou comprar uma venda de leite em Lisboa e pediu dez contos ao Ária, que lhos emprestou com dez por cento de juro a serem pagos, anualmente, em dia de Todos-os-Santos.
A minha mãe não gostava dele porque, um certo dia, falando do lado de lá da pequena parede que separava ambos os quintais, ele lhe terá dito que aquilo ainda havia de ser tudo dele, porque o João dela não ia conseguir pagar o que lhe devia.

À do Ária seguia-se a casa que tinha sido do meu bisavô e ao lado da qual um neto, o meu tio António Sapatada, tinha construído a sua, servindo agora a do avô para arrumos e como casa do ofício de sapateiro de onde lhe vinha a alcunha.

Voltando à Rua dos Arneiros, do lado da serra, depois da casa de João Maurício havia apenas um poço, o poço do Fialho. A rua onde agora são as casas do Rogério Sabino e do Carlos da Ilda e uma outra de um cidadão estrangeiro, não existia. Era uma mera serventia agrícola.
Reparei agora que, apesar de habitada, esta rua ainda não tem nome, ou pelo menos placa. Mas, bem lhe ficaria o nome de Rua do Serrado, porque por Serrado eram conhecidos aqueles terrenos.

Seguia-se a casa que ainda lá está mas também já desabitada,  de António da Graça  e Ilda Lourenço, que a construíram para  o seu casamento, celebrado em 29-10-1949.
Logo depois, havia uma antiga casa, então há muito desabitada, que tinha sido propriedade do Combasteiro e, então, já era propriedade do seu sobrinho José Lourenço, pai da Ilda.
Seguia-se, na esquina da Rua das Pedras Brancas, a casa de Francisco Machado e Luísa Gomes, ele conhecido por O Faxia e, em frente, na esquina oposta, escondida dentro de um pátio, a casa de António Catarino e Joaquina Cordeiro, conhecida por Joaquina Benta (julgo que por ser filha de um Bento), que aí viviam com os seis filhos então, ainda, todos solteiros.
No quintal do Faxia, já em plena Rua das Pedras Brancas, estava a construir-se a casa onde a filha dele, felizmente ainda viva e de boa saúde iria, logo em 1951 formar um casal com José da Graça.

Do lado de Aljubarrota, à casa de José Guilhermino seguia-se uma sequência de 3 casas: a de António Guilhermino que aí criou dez filhos, a do seu primo António Quitério que foi conhecido por António Piedade (António, filho da Piedade) e a de seus pais, a dita Piedade e o meu tio-avô José Quitério.
Nesse tempo, esta última casa era habitada pela filha solteira do casal, Joaquina, de alcunha Joaquina Piedade ou Baguinho de Milho. Posteriomente, no início da exploração do Vidraço de Ataíja, num anexo, aí morou e teve a sua forja um emigrante que exercia a profissão de ferreiro, então insdispensável, além do mais, para afiar ponteiros e picões.
Mais adiante, era a casa de José Lourenço e Ana Caseira, uma casa à maneira tradicional, oferecendo a empena à rua e à serra e com os vãos abertos a sul.  O pátio desenvolvia-se em frente à fachada principal, esta protegida por um pequeno telheiro e separada do pátio por um patim a que se acedia directamente da rua.

A seguir, ainda se vê o que resta das ruínas da casa que foi de uma sua filha que ali viveu casada com António Orelha (filho) e morreu nova. Mas, em 1950 eles ainda eram solteiros e quem ali vivia era uma irmã dele, casada com um tal Henrique, ao que parece oriundo da zona do Vimeiro. Tendo ela morrido nova, o viúvo saiu da aldeia e a casa passou a propriedade do irmão dela.

Por fim, uns cinquenta metros depois, estava e ainda está O Poço do Moura  e, junto dele, acabada de construir, no ano de 1949, como atesta a pedra da era sobre a porta de entrada, a casa onde moraram António Maurício, conhecido por António da Silvina e Maria de Matos Ângelo, conhecida por Maria Rosa.


Dali até à Ataíja de Baixo mais nenhuma construção existia.


Ou seja, cerca de 1950, havia na Rua dos Arneiros (e nas Rua das Covas) um total de vinte e três casas habitadas e uns oitenta e cinco habitantes.


A casa que foi de António Lourenço, numa foto de 2010. A porta em primeiro plano é a da adega. A casa, construída nos últimos anos do séc. XIX, não tem janelas. A única janela é da adega, está sobre o lagar e a pedra cravada na parede (poial) serve para apoiar o pé da pessoa que faz a trasfega das uvas, da tina para o lagar.







[i] No Decreto de 28 de Julho de 1894 diz-se Fanhões. É lapso. Trata-se, sem dúvida, de Fanhais que então pertencia ao concelho de Alcobaça.