quinta-feira, 16 de outubro de 2014

de Trás-da-Serra


Vista do outro lado, de “trás-da-serra”, era assim a Serra dos Candeeiros, em 6 de Abril de 1758, segundo o relatório do Pároco da freguesia de Serro Ventosos, o Cura Manoel Martins Vasconcelos, incluído nas chamadas Memórias Paroquiais (transcrevemos, com a devida vénia, do livro “Porto de Mós – Colectânea Histórica e Documental, Séculos XII a XIX”, do professor Saul António Gomes, editado em 2005 pelo Município de Porto de Mós, no âmbito das comemorações dos 700 anos de foral da Vila dado em 1305- pág. 908, Doc. 481):

(Optámos por manter a grafia original, tal como consta do livro de que a transcrevemos, certos de que a generalidade dos leitores não terá qualquer dificuldade em compreender a totalidade do texto.)

“Quanto a Serra que fica pera a parte do poente.
He um braço de serra que principia junto da villa de Porto de Mos a acaba junto a Rio Mayor. Tem quatro pera cinco legoas de comprido e quazi huma legoa de largura na distancia de duas legoas. Nam asiste[i] pessoa alguma em sima na Serra. Algumas terras tem que se coltivam. Os frutos que dam sam semente, milho e feygois, algum linho e tem por nome a Serra da Figueyra[ii], no destrito de tres legoas. Nam sey que nasça rio della, nem tem fonte ou lagoa, antes hé muito falta de agoa. Nesta vam pastar muntos gados de varias freguezias e algumas egoas de codelaria. Há nella muntas canteyras[iii] de pedra branca. Há também muitos fojos[iv] com grandes bocas alguns e muito fundos. Hé do mesmo temperamento que a outra Serra[v]. Há nella alguns lobos, muitas rapozas e senam foram as montarias que nella se fazem cada anno, ninguém poderia habitar nestas Serras. E huma que se fez o primeyro deste mês de Abril em que se mataram dous lobos e huma loba que tinha sette na barriga e quatro rapozas. Há também nesta Serra bastante alecrim, lingoa servina, munta arrodinha, munta erva alcar e alguma abertonica, algumas perdizes, poucas porquanto sam muntas as áves de rapina que as apanham que se criam nos pinhascos destas Serras, o que eu tenho visto muntas vezes.”

Para além dos mais aspectos curiosos do texto, designadamente as circunstanciadas referências à fauna selvagem, interessa-nos, agora, uma especial atenção às plantas medicinais existentes. Tenha-se presente que, em meados do Séc. XVIII, a medicina era muito insipiente e a maioria dos remédios eram bebidas, unguentos ou emplastros, obtidos por processos simples, a partir de plantas da flora local.
Daí, também, a importância que no texto adquire a descrição das, aos olhos do padre, mais importantes plantas medicinais existentes.

Vejamos, então, que plantas eram essas e quais as suas utilizações:

Alecrim - Alecrim - Planta de usos culinário, medicinal e religioso. Muito abundante na encosta ocidental da serra, tem vindo a regredir por força dos sucessivos incêndios e a ceder espaço ao carrasco.
O seu néctar dá ao mel um sabor característico e muito apreciado, pelo que é costume cultivá-lo perto das colmeias. Na Ataíja da minha infância não lhe conheci usos culinários nem medicinais. Apenas, se usava em defumadoiros e para queimar nas fogueiras dos santos populares.

Lingua servina - Língua-cervina, ou escolopendra. Trata-se de uma espécie de feto que era utilizada em infusões, como remédio para a diarreia e infecções intestinais.

Arrudinha – Arruda - Julgo que se trata da arruda (Ruta graveolens), cujas folhas eram usadas para fazer um chá calmante. Parece que também servia para combater os piolhos e tinha efeitos fortemente emenagogos quer dizer, capazes de restabelecer ou provocar a menstruação, podendo ser altamente perigosa quando usada com intenções abortivas. São-lhe, ainda, atribuídas uma série de qualidade mágicas sendo, designadamente, famosa pelos seus “poderes” contra o mau-olhado.
Um texto fácil e interessante sobre as “qualidades” da arruda pode ser lido em:

Erva alcar - Erva-alcar – Também chamada, apenas, alcar, ou alcária, é uma planta nativa do mediterrâneo, também chamada erva-das-sete-sangrias ou sargaço-híspido, erva-das-túberas e sargacinha. Tradicionalmente usada no tratamento de inflamações e úlceras.

Abertonica - Também chamada betónia-bastarda, cidreira-bastarda, etc., é uma planta que se encontra um pouco por toda a Europa, da Inglaterra à Turquia e é tradicionalmente usada para as dores de barriga, facilita a menstruação e alivia as dores menstruais e é indicada na cicatrização de feridas e no alívio da dor de contusões e inflamações


De facto, as aplicações medicinais tradicionais destas plantas são bem mais vastas do que as aqui referidas. Quem tiver muita curiosidade sobre o assunto pode procurar na internet onde existe muita informação (nem sempre de boa qualidade) designadamente, sobre plantas medicinais das serras de Aire e Candeeiros.






[i] Vive.
[ii] Como já referimos em outro post, a serra era conhecida por uma grande diversidade de nomes, sendo que o nome de serra dos Candeeiros não se encontra antes do Séc. XIX.
[iii] Pedreiras.
[iv] Covas, cavernas, algares.
[v] A outra serra a que o padre se refere e a que chamou Serra do Patelo e, actualmente, chamamos de Serra de Santo António é, diz ele, de temperamento demasiado frio, de tal sorte que no tempo frio congela a água.

sábado, 4 de outubro de 2014

Morcelas de Arroz



A morcela de arroz traz-me à memória os tempos da matança que, tal como eu me lembro dela em casa dos meus pais e nas de outros familiares e já referi em “A matança do porco”, era a grande festa familiar.

A matança do porco praticamente desapareceu e, nos casos em que ainda subsiste na nossa região é, hoje em dia, mero divertimento. Quero dizer, hoje já não se mata o porco com o fito de obter alimento para durar um ano, nem se faz a festa da matança como modo de consumir todas as partes do animal que se não conseguia conservar e paga aos familiares colaboradores da função que era muito exigente de trabalho. Hoje, quando há matança, o divertimento é o mote e, precisamente ao contrário de outros tempos, as únicas partes que se guardam são as que se não conseguem comer.

Em aparente paradoxo, nunca foi tão fácil comer morcela de arroz como hoje; Há-as todo o ano em abundância, fabricadas em salsicharias mais ou menos artesanais ou, mesmo, industriais, com qualidade bem apreciável e origens várias.

Normalmente, as morcelas de arroz são referidas como um produto típico da alta estremadura ou da região de Leiria e, em defesa dessa origem e da qualidade do produto, foram criadas a Confraria da Morcela de Arroz da Alta Estremadura, a Associação de Produtores da Morcela de Arroz de Leiria e, os problemas associados à sua conservação[i] são, agora, objecto de teses de mestrado.
A verdade, no entanto é que há (ou havia) produção caseira de morcelas de arroz em toda a faixa que vai desde o Valado dos Frades e Alcobaça, até à Batalha, a Ourém, Tomar, Ferreira do Zêzere, Oleiros e Fundão.
As da Batalha e as do Fundão tornaram-se já produtos de salsicharia industrial e são vulgares nos principais supermercados, onde também já vi morcela de arroz de Lamego que, aliás, nunca provei.


Também em Espanha se fabricam morcelas de arroz e são famosas as de Burgos[ii] que se fazem com sangue e banha de porco, cebola, arroz, pimentão e sal. E, ali ao lado, por todo o Aragão, faz-se uma morcela parecida que também leva arroz e variados ingredientes como anis, avelãs e pinhões. [iii]
Até ao Séc. XVIII, quando passou a incorporar-se o arroz na morcela de Burgos o recheio original era de miolo de pão.


No que à nossa região (para este efeito, a Alta Estremadura) diz respeito, a morcela de arroz é confeccionada, com ligeiras variações locais, conforme a receita registada por MAPONE (Manuel Poças Neves) e que é a apresentada nos sites da Região de Turismo de Leiria-Fátima e da Câmara Municipal da Batalha,[iv] como segue:

Morcela de Arroz da Batalha
Ingredientes:
2 kgs de carne magra de porco (convém carne entremeada da ponta da costela); 1 pedaço do lenço ou do riçol[v]; 3 cebolas grandes; 1 ramo grande de salsa; 1 litro +/- de sangue; sal, 50g de cominhos, 25g de cravo, colorau q.b.; pimenta ou piripiri em pó a gosto; 1kg de arroz de boa qualidade.
Preparação:
Miga-se a carne miúda para dentro de um alguidar, um bocado de lenço de preferência ou do riçol.
Junta-se o sangue, o sal e os temperos.
Com pouca água põe-se ao lume num tacho e quando levantar fervura põe-se o arroz, a salsa e as cebolas picadas o mais fino possível. Quando o arroz estiver meio cozido tira-se do lume e deita-se no alguidar. Junta-se também um pouco de água. Mistura-se tudo muito bem, com a mão mexendo sempre e prova-se. Se necessário rectificam-se os temperos. Enchem-se as tripas, atam-se com uma guita e vão a cozer numa panela com bastante água.
Quando estiverem meias cozidas tiram-se e picam-se com uma agulha ou alfinete. Voltam a acabar de cozer.
Nota: as tripas de porco foram previamente lavadas, areadas com sal, laranjas e cebolas cortadas aos bocados

Na verdade, a confecção das morcelas de arroz tem alguns pontos críticos que importa realçar:
O sangue: A matança começa com a morte do animal e, aí, é o momento de recolher o sangue com que hão-de ser feitas as morcelas. Quando o sangue começa a correr, já no fundo do vaso onde se recolhe há-de haver vinho tinto para o diluir e evitar que oxide e coalhe.
As tripas: Morto e lavado o porco,[vi] retiram-se as tripas que, imediatamente, vão a lavar. Esta é uma operação morosa e meticulosa que exige água corrente[vii] para a retirada de todas as fezes e depois, a raspagem, viragem e intensa lavagem com laranja, limão, pedaços de cebola e sal[viii].
A cozedura: A cozedura das morcelas que deve ser feita em água abundante, temperada com sal, louro e cebola[ix], é um problema delicado; uma vez que o arroz aumenta muito de volume com a cozedura, é necessário prevenir esse facto e, há que não encher totalmente as tripas, deixando espaço suficiente para acomodar aquela dilatação[x].
Quanto ao modo como se deve preparar o arroz, há grandes divergências entre os anotadores: O arroz deve ser previamente meio-cozido, dizem uns. O arroz deve ser cozido à parte, escorrido e só depois adicionado ao preparado do sangue, dizem outros. O que eu vi fazer, com bons resultados em matéria de rebentamento dos enchidos, foi o prévio demolhar do arroz em água a escaldar, onde ficou algumas horas, até ao enchimento das tripas. Mas, também já vi escrito que três quartos de hora de demolha são suficientes.
Consensual é a indicação de que, a meio da cozedura, é necessário picar as morcelas, com o que se evita que rebentem e, por outro lado, sabe-se que estão cozidas quando já não sai sangue.


O texto já vai longo pelo que é altura de terminar, não sem, antes, deixar os leitores com mais duas receitas de morcelas de arroz:

(Uma Receita da Morcela de Arroz de Leiria por Laura Esperança, presidente da Junta de Freguesia de Leiria):[xi]

“Quando de manhã bem cedo se matava o porco, entre o Natal e o Carnaval, aproveitava-se o sangue 
da matança do porco, proveniente do coração, recolhia-se o sangue num alguidar contendo sal, mexendo sempre, com uma colher de pau, para não “coalhar”, isto é, coagular.
Na altura de se retirarem as “tripas” (intestinos), e às vezes o bucho, para um alguidar, retirava-se também o véu que envolve e une as tripas, e o rissol, e cortavam-se estas gorduras muito miudinhas. As tripas eram lavadas, de preferência em água corrente, e esfregadas em sal grosso, limão e laranja com casca, que nesta altura eram bastante azedas.
Nesse mesmo dia, ao final da tarde, faziam-se as morcelas de arroz que se confeccionavam da seguinte maneira; num alguidar, colocavam-se então a gordura, muita cebola e a salsa picada, mexia-se e temperava-se com cravinho, cominhos moídos e sal.
Deitava-se, de seguida, o sangue sobre o preparado anterior e dava-se mais uma mexidela.
Nesta altura já fervia, numa panela de ferro grande ou de cobre, parte das “arreigadas”, ou “bofes” (pulmões, traqueia e outras vísceras), cebola e sal, que temperavam a água que escaldava o arroz e onde se iam cozer as morcelas.
Adicionava-se por último o arroz carolino, semi-cozido (escaldado), pouco a pouco, mexendo sempre.
Na altura as mulheres presentes e com experiência, com a ajuda de um funil, ou somente com a mão em concha, enchiam as tripas. O meu cargo era quase sempre cortar a guita, o “Fio de Norte”, e ajudar a atar as tripas. As tripas não podiam ficar muito cheias para não rebentarem ao cozer, dado que o arroz com a cozedura aumenta de volume.
Por último, coziam-se então em lume brando, iam-se mexendo e picando com um alfinete de dama, com muito cuidado. As morcelas estavam cozidas, se ao serem picadas, a água da cozedura ficasse clara e não ensanguentadas.
Comiam-se quentes, depois de saírem da panela, ou frias, conforme o gosto.
O caldo da morcela também se comia como sopa, onde depois de se retirarem todas as morcelas, se coziam os nabos (cabeças) cortados aos bocadinhos e às vezes couve branca, onde se colocavam também umas rodelas grossas de morcela ou apareciam alguns bocados de alguma morcela que se tivesse rebentado, os bocadinhos de “bofes” e um pouco de pão e umas folhinhas de hortelã.”


(Morcela de arroz do Fundão ou, morcela de arroz da Beira Baixa):[xii]
As tripas:
Cruas, lavadas e esfregadas com sal grosso, limão, laranja e cebola.
O arroz:
Tem que ser Carolino e demolhado durante ¾ hora.
A sanguínea:
Sal
PimentaColorauPiri-piriCominhosCebola, alho e salsa picados
Mistura-se a sanguínea num alguidar, acrescenta-se o arroz e enchem-se as tripas com a molhanga, coando com os dedos.

Vinho tinto (do BOM)
Sangue do porco
Modo:
Atam-se as pontas e pronto.
Cozem-se as morcelas com uma cebola e um ramo de salsa.


Bom Apetite!







[i] Lembremo-nos que a morcela de arroz é um produto perecível por excelência e, por isso mesmo, era tradicionalmente comida apenas no dia da matança ou, caso sobrasse, logo nos dias seguintes.
[ii] En el año 2.000 se calculaba que en la provincia de Burgos existían más de 50 fabricantes de morcillas que, de forma artesanal, pero con toda las garantías sanitarias lanzan al mercado algo más de tres millones de kilos. De ellos, muchos son los que se consumen en la ciudad y provincia, pero también se envían grandes cantidades a los más extraños puntos de destino.
[iii] Embora mais conhecida como morcela de Burgos, a morcela de arroz é, também, típica da região de Valladolid e, os de Teruel afirmam que “as morcelas de arroz são um clássico da gastronomia tradicional de Teruel” e, pelos vistos, o mesmo podem afirmar os de Cáceres, os de Alcântara e os de Palência.
[v] Riçol é o mesmo que redanho, gordura pegada aos intestinos do porco e de outros animais.
[vi] Chamuscado, barbeado e bem lavado, dependurado na escápula, aberto e sangrado
[vii] Por isso, antigamente, se fazia em Chequeda, no rio.
[viii] “… bem lavadas com água e limão e viradas de fora para dentro e bem raspadas, na época das minhas avós eram raspadas com um ramo fino de verga verde…” (in http://zelinha-july.blogspot.pt/2011/08/morcela-de-arroz.html, consultado em 17-8-2014). A raspagem via-a eu fazer com ganchos de cabelo.
[x] Há pouco tempo ouvi eu, numa aldeia do concelho de Ourém que a salsicharia local deixou de fazer morcelas de arroz porque “rebentavam”.

domingo, 14 de setembro de 2014

FESTIVAL DAS SOPAS 2014

Há menos de hora e meia, cerca das 20H30, quando de lá saí, ainda havia muitas dezenas de pessoas, das cerca de seis centenas que estiveram presentes ao almoço, a comer sopas que, entretanto, regressaram quentinhas, carnes acabadas de grelhar e, sobretudo, a desfrutar do convívio de amigos, de familiares e de conterrâneos e, a esta hora, ainda estão no recinto e no Salão Cultural Ataijense, algumas dezenas a trabalhar, lavar, limpar, transportar e arrumar todo o imenso mobiliário e demais utensílios e materiais sem os quais não teria sido possível realizar o Festival das Sopas.

A direcção do Salão Cultural Ataíjense arriscou, apesar das previsões meteorológicas, a realização do Festival no Largo do Cabouqueiro.
É certo que, durante a manhã, muitas nuvens negras ameaçaram desfazer-se em água e, cerca do meio-dia, houve uma chuva fraca que terá sido suficiente para afastar alguns inscritos mais timoratos que acabaram por não aparecer.
Como é certo que, durante o almoço, pelo menos duas vezes e por breves momentos, vários chapéus de chuva se abriram sobre as mesas. Mas foram raros pingos, não mais de dois ou três por pessoa.
Pode, mesmo, dizer-se que o São Pedro não nos pregou uma grande molha porque não quis, preferindo, ao invés, encharcar algumas vizinhanças. Só podemos estar gratos.

O risco assumido da realização da festa ao ar livre foi, assim, prodigamente premiado e o dia passou-se sem chuva e sem vento e com temperatura muito agradável, do que resultou uma grande tarde de convívio.

O êxito da função deve-se a muita gente. Na impossibilidade de aqui mencionar todos, deixamos as fotografias das cozinheiras:
 
 
 
 
 
 
 

 E, uma vista do recinto, às 14H06:

E, às 19H19:


Obrigado a todos os que contribuíram para este dia tão agradável.

domingo, 7 de setembro de 2014

Escravos em Aljubarrota


Sabemos que a escravatura foi uma instituição que durou milénios, que existiu na Grécia e em Roma, e que foram escravos os construtores das pirâmides egípcias.
Que a redução à escravatura dos inimigos vencidos foi prática comum, um pouco por todo o mundo.
Que portugueses escravizaram mouros e que mouros escravizaram portugueses.
Que na sequência da expansão marítima dos Séc. XV e XVI, se criaram novos e largos mercados de escravos, tendo por origem a África e como destino principal as Américas (para trabalhar nas monoculturas de café, cana-de-açúcar, algodão e outras).
Sabemos tudo isso e vimos na televisão a série Raízes, a saga de uma família americana descendente de um escravo e, alguns, até leram o livro em que se baseia, da autoria de Alex Haley.
Alguns lemos a História Social dos Escravos e Libertos Negros em Portugal,[i] e, por isso, sabemos que em Évora, no início do Séc. XVI, uma em cada sete pessoas era de raça negra, entre outras razões porque qualquer pedreiro ou outro oficial de ofício tinha, em vez de ajudante, o seu escravo.
E sabemos que o poeta Luís Vaz de Camões, no final da vida, pobre e doente, vivendo de esmolas, não precisava de pedir porque tinha Jau, um escravo, para pedir por ele.
E sabemos que, nos países ocidentais ditos civilizados, a escravatura só acabou ia o Séc. XIX bem andado.
E sabemos que, ainda no início do Séc. XX, J. Leite de Vasconcelos[ii] fotografou naturais, em Alcácer do Sal e em Coruche, com evidentes traços negroides, herdados dos seus antepassados escravos.
E sabemos que as marcas da escravização estão ainda muito presentes em muitos lugares e em muitas comunidades, como o demonstra o facto de, recentemente, termos sido confrontados com o rapto de centenas de jovens raparigas cristãs na Nigéria e a ameaça do chefe dos raptores de as vender como escravas.[iii]
e que os 15 países da Comunidade do Caribe, de que um dos líderes mais activos é o primeiro-ministro de São Vicente e Granadinas, o luso-descendente Ralph Gonsalves, se preparam para pedir a países europeus, Portugal incluído, indemnizações pelos prejuízos resultantes da escravatura no tempo colonial.


Embora sabendo tudo isso, foi para mim um choque descobrir que, em Aljubarrota, ainda no ano de 1801 havia, pelo menos, dois escravos:[iv]





[i] A. C. Saunders, História Social dos Escravos e Libertos Negros em Portugal, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1994.
[ii] J. Leite de Vasconcelos (1858-1941) foi uma figura maior da cultura portuguesa, destacando-se como linguísta, filólogo, etnógrafo e arqueólogo.
[iii] É ainda hoje, aliás, desconhecido o destino da maioria delas.
[iv] A excelente caligrafia do Cura Tomás de Aquino da Costa, dispensa a transcrição do assento de óbito do escravo Sebastião de Oliveira Baena. Leia-se com atenção e veja-se a menção na margem esquerda: Preto.
O falecido era casado com Laureana Maria, escrava como ele.
O proprietário de ambos era um tal Francisco Viegas Machado.
O apelido do escravo falecido é prova da sua ligação ao Dr. Oliveira Baena que foi figura importante em Aljubarrota na segunda metade do Séc. XVIII.


sábado, 30 de agosto de 2014

Padre Fábio Bernardino - Uma Iconografia

  
Homem atento aos tempos que correm, o Padre Fábio Bernardino convidou os amigos para as cerimónias da Ordenação Diaconal, da Ordenação Sacerdotal e da Missa Nova também através do Facebook, criando “eventos” e ilustrando os convites para as cerimónias (usando como fotos de capa dos respectivos eventos, como se diz no linguajar facebookiano) com a reprodução de pinturas de temática religiosa católica como, aliás, era mister.

As três imagens que assinalaram outros tantos momentos importantes da sua vida religiosa, constituem como que uma iconografia pessoal e ilustram um coerente e permanente desenvolvimento do percurso religioso do jovem padre, nosso conterrâneo, desde a religiosidade inicial, fruto da vivência familiar e estreitamente ligada à comunidade de origem, até à actualidade de uma religiosidade adulta, consciente e profunda que se aventura pelos complexos (ao menos para os leigos) caminhos de exigente Teologia.

Vale a pena, por isso, tentar conhecer e compreender melhor as pinturas em causa.


Para a sua Ordenação Diaconal, ocorrida em 24 de Novembro de 2013, o Fábio Bernardino escolheu uma reprodução da “Glorificação de São Vicente”, ou "Aparição de Cristo a São Vicente", pintura a óleo, sobre tela, datada de 1781, da autoria do pintor português Pedro Alexandrino de Carvalho e existente na Capela de São Vicente da Sé Catedral de Santa Maria Maior (Sé de Lisboa)[i].

Glorificação de São Vicente.
Cristo parece ordenar a São Vicente para se erguer, enquanto ostenta na mão esquerda a palma do martírio que, sem dúvida, irá entregar ao Santo. Atrás deste, um anjo prepara-se para lhe colocar uma coroa de rosas.

Pedro Alexandrino de Carvalho foi o mais importante pintor português da segunda metade do Séc. XVIII e, dele, é conhecida uma vasta obra que pode ser admirada, sobretudo, em numerosas igrejas da região de Lisboa.

São Vicente é o santo patrono da paróquia de São Vicente de Aljubarrota onde nasceu o Padre Fábio Bernardino e essa é, certamente, a razão da escolha.
São Vicente de Saragoça ou São Vicente Mártir, viveu no início do Séc. IV e, no tempo do Imperador Diocleciano, sofreu o martírio em Saragoça, Espanha, às ordens do delegado imperial Daciano que, nesse tempo, moveu uma cerrada perseguição aos cristãos da Península Ibérica.
Vicente recusou oferecer sacrifícios aos deuses romanos, pelo que foi martirizado até à morte que terá ocorrido no ano de 304.
É representado umas vezes com palma e evangeliário, outras com uma barca e um ou dois corvos porque, segundo a lenda, quando por ordem de D. Afonso Henriques se traziam as suas relíquias do Cabo de São Vicente para Lisboa, dois corvos nunca abandonaram a barca que o transportou. Daí, que o brasão da cidade de Lisboa (de que São Vicente é padroeiro) seja uma barca com dois corvos.


………………………………………………………………..

Para a sua Ordenação Sacerdotal que teve lugar no passado dia 11 de Maio, na Sé Catedral de Leiria, escolheu o diácono Fábio Bernardino uma reprodução da Última Ceia da autoria de Juan de Juanes, pintor espanhol do Séc. XVI (1523-1579).
As razões da escolha deste tema parecem-me evidentes: O encargo supremo do sacerdote é dizer missa e, esta, é, antes do mais, uma representação ritual da Última Ceia.

A obra, um óleo sobre madeira com as dimensões de 116x191cm, foi pintada cerca de 1560,[ii] tal como um conjunto de pinturas sobre a vida do patrono, para a Igreja de Santo Estêvão, em Valência e, actualmente, faz parte do acervo do Museu do Prado, em Madrid.

Trata-se, de uma das mais conhecidas representações da Última Ceia, desde logo porque estampas emolduradas com reproduções deste quadro existiam em muitas casas portuguesas, inclusive na Ataíja de Cima, em meados do século passado.

A composição é, aparentemente, baseada na famosa obra que Leonardo da Vinci pintou, em 1498, no refeitório de Santa Maria delle Grazie, em Milão, embora o modelado das figuras e a cor, dizem os peritos, remetam para Rafael[iii].

Sobre a mesa, diante da figura de Cristo, vê-se o cálice, que, ainda hoje, se conserva na Catedral de Valência a que foi oferecido, em 1424, por Afonso V. 
O jarro e a bacia em primeiro plano aludem à primeira lavagem dos pés que, como se sabe, teve lugar antes da Última Ceia.
Todos os Apóstolos levam seu nome inscrito no nimbo[iv] que paira sobre as suas cabeças, excepto Judas Iscariotes (à direita, de costas) que não tem nimbo, estando o seu nome inscrito no banco onde se senta. Segundo a tradição tem barba e cabelo vermelho, veste de amarelo, cor simbólica da inveja e esconde dos seus colegas o saco do dinheiro da traição.[v]
  




…………………………………………………………………

Também para convidar os amigos para A Missa Nova, celebrada em 18 de Maio de 2014, o Padre Fábio recorreu ao Facebook, desta vez escolhendo para “foto de capa” uma reprodução da Adoração do Cordeiro Místico, quadro que faz parte do políptico conhecido por Retábulo de Gand, uma obra de grandes dimensões (aberto, 350x461cm, fechado, 350x223cm), da autoria dos irmãos Hubert e Jan Van Eyck, pintado em 1432 e que se encontra na Catedral de São Bavão, em Gand, na actual Bélgica.

A Adoração do Cordeiro Místico é o tema central e o mais importante, quer em termos artísticos quer em termos teológicos, dos 26 quadros (14 visíveis quando o retábulo está aberto, outros 12 quando fechado) que constituem o Retábulo o qual, no seu conjunto, é unanimemente considerado uma das obras-primas da pintura ocidental[vi].
O Cordeiro Místico é o Agnus Dei, o Cordeiro de Deus ou seja, o próprio Jesus Cristo sacrificado para salvação da humanidade.

Agnus Dei, qui tollis pecatta mundi, miserere nobis.[vii]

A representação de Cristo como um cordeiro recorda o uso antigo de sacrificar animais em honra dos deuses. O sacrifício de Jesus Cristo, sendo o sacrifício maior, o maior acto de amor de Deus pelos homens, veio tornar desnecessários (absoletos), todos os demais sacrifícios.


Vejamos, então, o Retábulo:

Retábulo de Gand (fechado)
 
Em cima, da esquerda para a direita: Anjo da Anunciação[viii] e Profeta Zacarias (sobre o Anjo)[ix]; Janela com vista[x] e, sobre ela, a Sibila da Eritreia[xi]; Nicho com lavatório e, sobre ele, a Sibila de Cumas[xii]; Nossa Senhora da Anunciação[xiii] e, sobre ela, o Profeta Miqueias[xiv].
Em baixo, também da esquerda para a direita: Doador[xv]; São João Baptista; São João Evangelista, Mulher do doador[xvi].


Retábulo de Gand (aberto)
Em cima, da esquerda para a direita: Adão; Caim e Abel (sobre Adão); Anjos cantores; Virgem Maria; Cristo-Rei; São João Baptista; Anjos músicos; Eva; Morte de Abel (sobre Eva).
Em baixo, também da esquerda para a direita: Os justos Juízes; Os Cavaleiros de Cristo; A Adoração do Cordeiro Místico; Os Santos Eremitas; Os Peregrinos.[xvii]


Adoração do Cordeiro Místico
A composição pictórica da Adoração do Cordeiro Místico parece ser inspirada no Apocalipse de São João: 
Depois disto, vi uma multidão imensa, 
que ninguém podia contar,
de todas as nações, tribos, povos e línguas.
Estavam de pé, diante do trono e na presença do Cordeiro,
vestidos com túnicas brancas e de palmas na mão.”







[i] Identificar esta pintura foi, para mim, trabalho árduo – ou seja, não conheço a Sé de Lisboa tão bem quanto devia - e, aliás, só conseguido com o precioso auxílio de Rui Almeida, do Secretariado Nacional para os Bens Culturais da Igreja a quem, penhoradamente, agradecemos.
Aos interessados, informa-se que este serviço da Conferência Episcopal Portuguesa tem sede na Quinta do Cabeço, Porta D, 1885-076 Moscavide e os seguintes contactos: t. 218 855 481 | f. 218 855 461 | info@bensculturais.com, www.bensculturais.com / LOJA ONLINE /  Página do Facebook  
[iii] Rafael Sanzio ou, apenas, Rafael, foi um pintor italiano que viveu entre 1483 e 1520 e é, a par com Leonardo da Vinci e Miguel Ângelo, um dos grandes mestres da chamada Alta Renascença.
[iv] Nimbo, é círculo luminoso, auréola. No site do Museu do Prado (https://www.museodelprado.es) é possível ampliar a imagem até se conseguir ler com nitidez o nome de cada apóstolo, bem como apreciar, com grande pormenor, todos os aspectos do quadro.
[v] Para a descrição do quadro socorremo-nos de https://www.museodelprado.es (consultado em 5-8-2014).
[vi] Pode ver, com grande pormenor, explicação das personagens (em inglês) e qualidade gráfica, a reprodução da totalidade do Retábulo em Web Gallery of Art: http://www.wga.hu/index1.html, (consultado em 20-5-2014).
[vii] Cordeiro de Deus que tirais os pecados do Mundo, tende piedade de nós.
[viii] O Anjo da Anunciação foi, como sabemos, o Arcanjo São Gabriel.
[ix] Zacarias, um dos profetas menores, anunciou, repetidamente, a vinda do Messias.
[x] Este quadro, Janela com Vista e o seguinte, Nicho com Lavatório, são meramente funcionais servindo para completar o cenário da sala onde o Arcanjo Gabriel anuncia à Virgem a sua maternidade. A continuidade das vigas do tecto, transforma as molduras dos quatro quadros deste plano em molduras dos vidros de uma larga janela através da qual podemos contemplar toda a cena da Anunciação.
[xi] As sibilas eram figuras da mitologia greco-romana que se acreditavam terem poderes proféticos. A sibila da Eritreia era tida como tendo anunciado a vinda de Cristo).
[xii] Também tida como anunciadora da vinda de Cristo.
[xiii] Note-se sobre a sua cabeça, o Espírito Santo em forma de pomba.
[xiv] Um dos doze profetas menores, também anunciador da vinda do Messias.
[xv] Vijd Jacodus.
[xvi] Lysbette Borluut.
[xvii] Repare-se como, neste plano e quanto ao cenário, foi utilizada uma solução pictórica semelhante à que vimos acima (ver Nota [x]), para a cena da Anunciação. Também aqui, os cinco quadros partilham diferentes partes da mesma paisagem.