terça-feira, 9 de abril de 2024

O brunil

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Hoje em dia, o burro é, em Portugal, um animal em perigo de extinção. No entanto era, ainda há pouco tempo, o mais precioso auxiliar dos camponeses e pequenos proprietários rurais, já que desempenhava quase todas as funções em que, entretanto, foi substituído pelas bicicletas, motorizadas e automóveis e atrelados de motocultivadores e mini-tractores.
De facto, o burro era meio de transporte de pessoas e bens e tanto servia para levar o dono ao mercado como, equipado com cangalhas ou seirões, ou atrelado ao carro, transportar toda a casta de bens.
Ao que parece, originário da África do norte, o burro está domesticado há cerca de 5.000 anos e espalhou-se por toda a bacia mediterrânica e, levado por portugueses e espanhóis, pelas Américas.

Oatman, antiga cidade mineira do Arizona, nos Estados Unidos da América, será, aliás, o único lugar do mundo onde os burros não correm riscos de extinção: Interrompida abruptamente a exploração mineira de prata, Oatman foi abandonada pelos seus habitantes e, os burros dos mineiros foram, igualmente, abandonados.
Os animais, assilvestrados, fazendo juz à resistência e frugalidade da espécie, conseguiram sobreviver naqueles difíceis terrenos semi-desérticos e vagueiam, às dezenas, pelos campos e pelas ruas e, gozando de adequada protecção legal,  tornaram-se uma atracção turística para os muitos viajantes da velha Route 66. (pode ver no Youtube vários vídeos sobre os burros de Oatman).

Mas, por cá, estão mesmo em risco de extinção e, na Ataíja de Cima, sobram dedos da mão para contar os que subsistem.

Daí, a minha dificuldade em um brunil para fotografar, o que só há alguns dias consegui:



Brunil s.m. - O colar, em forma de ferradura, feito de couro, com enchimento de palha, que se coloca no cachaço (pescoço) do burro para, sobre ele, assentar a canga do carro.


Notas:
A palavra brunil, com a qual, na Ataíja de Cima, designamos esta peça, não consta de nenhum dos dicionários consultados - DPLP, Houaiss ou José Pedro Machado.
Em S. Brás de Alportel ouvi chamar-lhe bolim mas essa é palavra que os dicionários Priberam e José Pedro Machado também não reconhecem. O Houaiss reconhece bolim mas dá-lhe significado muito diferente. É, diz, a bola menor no jogo da bocha, sendo bocha um jogo de lançar bolas contra outra mais pequena, à semelhança da laranjinha ou da petanca.
Palavra parecida é molim, que o Priberam diz que é o nome que no Alentejo e no Algarve se dá a uma "espécie de almofada ou chumaço em que assenta a canga dos bois ou o cangalho dos cavalos".
Para J. P. Machado molim é, sem mais, "almofada em que assenta a canga".

Estou muito curioso de saber como tal objecto, o brunil, se designará noutros lugares de Portugal.
Haverá um leitor bondoso que nos queira ajudar?

PS: Este texto foi inicialmente publicado em 09-04-2012,  revisitando-o agora, em 2024, confirmo que, poucos anos depois de publicado o texto inicial, desapareceu o último burro de quatro patas que houve na Ataíja de Cima.

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terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Alcunhas Ataíjenses - O Maçarico

 

As alcunhas nascem, em geral, da necessidade de distinguir uma certa pessoa das demais do mesmo nome, ou profissão ou que, por qualquer outra razão, possam ser confundidas.

As alcunhas mais vulgares podem referir-se  à família do nomeado (ex. Manuel Augusto, Zé da Ilda), ao local de origem ou de residência ( Maria da Serra, Nuno do Cadoiço), a uma profissão ou característica física (Serrador, Mouço, Russo, Maneta) um comportamento (Tunante),  uma habilidade ou, até, um facto (Tranca Ruas).

Em alguns casos, é difícil saber  ou sequer imaginar a razão de uma certa alcunha. É o que se passa com o nosso Maçarico.

Maçarico porquê, se o maçarico é uma ave de arribação, de porte médio e pernas e bico longos, que em Portugal ocorre durante as migrações ou como invernante, vive em zonas ribeirinhas, ou alagadiças, não existe na Ataíja e nada nos seus hábitos ou comportamentos pode ser comparado ao nomeado? 

Igualmente, não parece aplicável ao caso qualquer dos outros significados de maçarico, seja o de aparelho a gás usado pelos soldadores, seja o de novato, inexperiente, como também eram, no meu tempo, chamados os jovens recrutas no serviço militar.

Seja por que for, a alcunha pegou e era mesmo universal, já que toda a gente conhecia o José Carvalho Quitério – n. 1942, f. 2023 - (Quitério porque tínhamos um bisavô comum), por Maçarico ou Zé Maçarico.

O Zé Maçarico, quando jovem pré-adolescente e adolescente, era pequeno e ágil como um gato, mestre em correr e saltar, subir às árvores e descobrir ninhos em lugares recônditos. Irrequieto e ladino, era capaz de acrobacias e esfolagates, de caminhar sobre andas, ou de fazer rolar uma barrica equilibrando-se nela, como um artista de circo. E, quase não havia dia em que não fosse autor de uma qualquer pequena proeza, em geral, com desagrado dos adultos.

Era um pinante, que é nome de gente capaz de fazer o pino e de cometer outras proezas acrobáticas.

Ou, talvez não fosse tanto assim. É que, nestas coisas, vale o ditado que ouvi à minha avó: ganha fama e deita-te a dormir.

Da ligeireza todos fomos testemunhas. Lembro-me de quando, ele adolescente, houve um domingo primaveril em que, depois da missa em Aljubarrota, o trabalho colectivo foi retirar do telhado da Capela os ninhos de pardal que o infestavam. O telhado da Capela estava então em muito mau estado. Ainda coberto de telhas de canudo, algumas partidas e muitas deslocadas, debaixo delas achavam-se dezenas, se não centenas, de ninhos de pardais, pássaros que naquele tempo se viam pela Ataíja em grandes bandos e, fazendo jus ao seu nome completo de pardal-do-telhado, tinham carregado para a cobertura da capela grandes massas de palha, pequenos troncos, cabelos e crinas e pelos, de gente, de burros e de cães, bolas de lã que as ovelhas tinham deixado agarradas aos arbustos, pedaços de tecido e o mais que acharam para fazer os seus toscos e grandes ninhos, enormes para os pequenos habitantes e mais ou menos informes salvo o centro onde são depositados os ovos e criados os filhotes, única parte desses ninhos que mostra evidentes cuidados de construção.

Já chovia dentro da Capela e era, por isso, necessário remover os ninhos e repor as telhas em devida posição e lá foi o Maçarico para cima do telhado da igreja, onde convinha gente equilibrista e leve que fizesse o trabalho e não partisse mais telhas.

A coisa saldou-se por uma enorme quantidade de palha, muitos ovos e algumas pequenas crias espalhados em redor da igreja. Hoje, já não se cultivam cereais na Ataíja de Cima e a população de pardais diminuiu drasticamente.

Mas, as proezas do jovem Maçarico passaram muito por moer o juízo ao meu avô Agostinho que era dono da fazenda, o Cerrado, que fica mesmo em frente da casa onde nasceu.

Talvez encorajada pela irrequietude do Maçarico, uma sua irmã subiu um dia pelo portão do pátio e, de pé, sobre o pequeno pedaço de parede que o ladeia, separando-o da casa, levantou a saia, fez força e lançou uma mijareta que atravessou o então estreito caminho, onde não cabia mais do que um carro de vacas. O pobre do meu avô ficou embaçado com a proeza e não conseguiu calar-se, pelo que o feito andou de boca em boca.

O Maçarico fazia outras judiarias.

De uma vez, munido de uma bomba de foguete introduziu-a num buraco que havia num dos esteios que ladeavam o porto por onde os peões acediam ao Cerrado, onde a fez explodir estilhaçando a pedra. Mais uma irritação, das grandes, para o meu avô e sorte para o Maçarico que, com a brincadeira podia ter ficado sem alguns dedos, como aconteceu ao João Pardal.

De uma outra vez, trepou, só porque sim, a um pinheiro que o meu avô lá tinha, um grande e solitário pinheiro, como então se via nas margens de terrenos de cultivo, aguardando a necessidade do proprietário de o transformar em tábuas.

Quando se preparava para descer, o Maçarico apercebeu-se que o meu avô estava mesmo ali.

- Anda cá meu malandro, desce daí que eu já te coço!
- Não desço nada! – E, em vez disso, viu-se obrigado a subir mais um pouco, para se livrar de uma pequena vara que ameaçava chegar-lhe aos fundilhos.

No meio da propriedade, a mais de cinquenta metros de distância, havia, como era comum em propriedades de certa dimensão e mais afastadas do centro da aldeia ou da casa do proprietário, uma pequena construção que servia para abrigo ou guarda temporária de produtos da terra ou utensílios.  Esta tinha anexa, como aliás também era relativamente comum, uma pequena eira onde o meu avô debulhava cereais e legumes.

- Desce daí, malandro!
- Não desço nada!

Depois de algum tempo passado naquele desce não desço,  diz-lhe o meu avô:

- Ah! Não desces? Vou ali à casa buscar uma machada, corto o pinheiro e já vês se desces ou não desces! E virou costas, fingindo iniciar o caminho para ir pela machada.

O malandrim, por receoso de que o homem viesse mesmo de lá com a machada, ou por a ocasião lhe ter parecido boa para se livrar daquele imbróglio, deixou-se escorregar pelo pinheiro e correu a refugiar-se no quintal paterno.

- Quando cheguei cá abaixo não tinha botão nenhum!

Contou ele, entre gargalhadas de ambos, quando, aqui já há uns bons anos, tivemos oportunidade de recordar tropelias de juventude. 


(Johann Friedrich Naumann - Naturgeschichte der Vögel Mitteleuropas 1905, or earlier works., Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=67082)