quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Maria Mulata

 

 As pesquisas nos assentos paroquiais, em busca da história das pessoas comuns, levam-nos a tropeçar, frequentemente, em pessoas e situações incomuns.

É o caso de Maria, criança mulata, baptizada em vinte e sete de Março de 1786 e enterrada em 20 de Outubro do ano seguinte, em S. Vicente de Aljubarrota.

Vejamos o que dizem os assentos dos seus baptismo e óbito:

Villa

Maria

Aos vinte e sete dias do Mes de Março de mil sete centos outenta e seis; Baptizei e pus os Santos Oleos a Maria filha de Juliana escrava de João Maria Baiana desta villa, e de Pai incógnito. Tocou como Padrinho o Douttor Francisco Correia desta villa e Nossa Sra do Carmo. Tocou com prenda da mesma Theodósio Maria Solteiro desta villa, de que fiz este assento dia mes e anno ut supra

O Cura José dos Santos Rino

Villa

Maria Molla-

ta crioula

Aos vinte dias do Mes de outubro de Mil Sete Centos outenta e outto faleceu dentro desta Parochial Igreija de S. Vicente foi sepultado o Corpo de Maria Mollata Innocente que criava Juliana escrava de Francisco Correia Triaga desta villa teria de idade quinze mezes de que fiz este assento dia mes e anno ut supra

O Cura José dos Santos Rino

 

Há factos em que não podemos deixar de reparar:

Por um lado, na presença de escravos negros em Aljubarrota no final do século XVIII, facto que, aliás, já tínhamos referido anteriormente, noutras postagens.

Por outro, as várias discrepâncias ou ambiguidades que podemos surpreender nos assentos, a começar pela progenitura e a terminar na idade da criança.

No baptismo diz o padre Rino que se trata de uma filha da escrava Juliana que era – o padre não o diz mas tal deduz-se sem esforço – de raça negra, no óbito já não diz que era filha da escrava mas, apenas ou diferentemente, que era criada pela escrava (“que criava Juliana”).

A paternidade, que no assento de baptismo era atribuída a pai incógnito (e de raça branca- o que também não é dito, mas, igualmente, se deduz sem esforço face à alcunha/apelido “molata” (mulata) e, ainda, à anotação na margem relativa à raça: crioula), é no óbito inteiramente omitida o que, aliás, só a ambiguidade do “que criava Juliana” possibilita.

Quanto à idade, declara o padre no assento de óbito que a falecida “teria de idade quinze mezes”. Na verdade, e admitindo que a criança foi baptizada logo nos primeiros dias de vida, como era costume, a sua idade à data do falecimento era de dezanove meses.

Ora, numa freguesia onde em cada um dos anos em causa (1786 e 1787) foram baptizadas apenas 16 crianças, das quais uma única era de diferente raça e filha de escrava, não é crível que o padre possa razoavelmente ter esquecido tais factos ou a sua data. Assim, temos de concluir que o padre mentiu deliberadamente quando disse que a criança falecida teria de idade quinze meses, quando sabia muito bem que tinha dezanove (e, dúvidas tivesse, sempre poderia ter ido ao livro dos assentos de baptismo conferir), como mentiu ao usar a fórmula ambígua “que criava Juliana”, quando bem sabia que a criança era filha da escrava e, certamente, de quem mais. Vejamos:

Diz-se no baptismo que a Juliana é escrava de João Maria Baiana. Não sabemos quem era este João Maria Baiana mas temos por certo que, onde se diz Baiana, bem se podia dizer Baena, apelido que, ao contrário daquele, nos aparece com frequência quando investigamos a Aljubarrota do final do século XVIII, onde João Baptista de Oliveira Baena foi Doutor, Cavaleiro Professo na Ordem de Cristo e “serviu a Sua Majestade nos Lugares de Letras”, Manuel do Rosário de Oliveira Baena foi capitão da Ordenança da vila, e o Teodósio Maria, que no baptismo da Maria Mulata tocou com prenda de Nossa Senhora do Carmo, era também um Oliveira Baena.
Entretanto, a escrava mudou de dono e, enquanto no baptismo era do João Maria Baiana, no falecimento da filha já era de Francisco Correia Triaga o qual, aliás, era o mesmo Doutor Francisco Correia, de seu nome completo Francisco Correia Triaga de Mendonça, que tinha apadrinhado a Maria e era familiar do Doutor Silvestre Torres Correia Triaga e do Capitão Joaquim Bernardes (ou Bernardo) Correia Triaga.

 

Talvez não seja especular demasiado se concluirmos que os erros, omissões e imprecisões do padre, foram uma contribuição deliberada para desvanecer o que, à luz do pensamento e preconceitos da época, foi o infeliz resultado do envolvimento de um membro de uma das mais importantes famílias locais com uma escrava negra.

 

 

Nota:
Sobre as elites locais de Aljubarrota no final do século XVIII podem ver-se neste blog, entre outros, os textos:
Inquirições Sobre a Pureza do Sangue do Reverendo Francisco Xavier da Veiga, in https://ataijadecima.blogspot.com/search?q=Inquiri%C3%A7%C3%B5es+da+pureza+do+sangue
e Capitães de Aljubarrota, in: https://ataijadecima.blogspot.com/2014/03/capitaes-de-aljubarrota.html