terça-feira, 31 de dezembro de 2013

O Gadanho

O gadanho é, segundo o DPLP[i], uma “espécie de ancinho com grandes dentes de ferro”.

Gadanho é, também, garra das aves de rapina e, em linguagem informal, mão, ou unha (de que dá como exemplo a frase: se te deito o gadanho…).

Na Ataíja de Cima usa-se mais, nestes dias frios de Inverno, o respectivo plural quando lamentosamente nos queixamos de que: estou sem gadanhos!
(Para não ataijenses, esclarece-se que tal significa que, em virtude do muito frio, estamos sem força nos dedos, sem capacidade para agarrar e segurar os objectos).

Curiosamente, aquele dicionário dá gadanho e ancinho como sinónimos de engaço (a parte lenhosa dos cachos das uvas), já que, pelos vistos, também há quem chame engaço a um “instrumento agrícola em forma de pente, usado para limpar ou aplanar terras agrícolas ou ajardinadas”.

Vem tudo isto a propósito de um gadanho que, também ele, tem uma relação estreita com os engaços, seja, com a parte lenhosa dos cachos das uvas.

O gadanho é este:



Trata-se um velho gadanho, já com muitas dezenas de anos e que sempre conheci tal como aqui se apresenta sem, sequer, vestígios de alguma vez ter tido cabo de madeira que, julgo, nunca teve.

É, agora, meu, depois de ter sido do meu pai e, antes, do meu avô e (pelo menos nos últimos sessenta anos) nunca serviu para outra coisa que não, uma vez por ano, ser cravado no pé da prensa do vinho, para o desfazer, no final da lagaragem.

Acho que um destes dias o vou limpar cuidadosamente e dar-lhe o uso que sempre foi o seu, o uso que lhe deram o meu pai e o meu avô:

Ajudar, no final da lagaragem, a desfazer o pé da prensa.





[i] Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/gadanho [consultado em 31-12-2013].

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Uma tragédia na Ataíja de Cima - O surto de Tifo de 1832



Em 1832, no ano anterior à epidemia de cólera a que nos referimos AQUI, já na Ataíja de Cima se tinham verificado 10 falecimentos, um número invulgarmente alto face à média normal de três mortos por ano. Esse acréscimo de mortalidade há-de explicar-se, vista a sua concentração nos meses de Março e Abril, por razões não naturais, talvez uma qualquer doença infecciosa.

Entre os dias 10 de Março e 21 de Abril, ocorreram a maioria das mortes do ano: 6 pessoas.
Destes, o falecimento em 20 de Março de uma inocente sem nome, nascida nesse mesmo dia, filha de Custódia Maria, a qual “foi batizada em casa por necessidade por Paulo dos Santos a quem examinei pelo dito batismo”, conforme se escreve no respectivo assento de óbito, é, talvez, um caso diferente, um problema sobrevindo durante o parto, como era vulgar na época e não doença infecciosa. Note-se, aliás, que a mãe sobreviveu, aparentemente sem sequelas.

Dos 10 falecidos no ano, 1 era viúvo, 2 casados e 7 solteiros, 3 dos quais “inocentes” e um “menor”. Dos solteiros, 3 eram expostos do Real Hospital da Cidade de Lisboa que se encontravam a ser criados por amas locais.

Dos 4 falecimentos ocorridos fora do período crítico que se desenrolou entre 10 de Março e 21 de Abril, dois foram de crianças, de 4 e 11 anos e, os outros dois, de pessoas idosas:
Um destes foi Veríssimo Amado, uma pessoa de quem ainda havemos de voltar a falar e que, nesse tempo, tinha um filho já com 45 anos de idade. Tratava-se, pois, de uma pessoa de idade avançada para a época, pelo que se há-de admitir que a morte se deveu a causas naturais.
O outro foi a viúva Micaela dos Santos, de quem já aqui falámos, a propósito do seu TESTAMENTO. A Micalela já era casada em 1790 (42 anos antes) e, em 1832, era, seguramente, pessoa de avançada idade para a época, pelo que também a sua morte há-de ser tida como devendo-se a causas naturais.

Que doença terá sido a principal responsável por aquele anormal número de mortes?
Ao contrário do que se passa com a Cólera-morbo de 1833, não tenho certezas mas, muito provavelmente, tal mortandade é consequência da epidemia de tifo que, nesse ano de 1832, ocorreu em Portugal, com especial incidência nas regiões de Lisboa e Ribatejo[i].

O  tifo epidémico, ou tifo exantemático ou, apenas, tifo, é uma doença epidémica transmitida por parasitas comuns no corpo humano, como piolhos. As epidemias mais graves verificaram-se em situações de grande aglomeração de pessoas e cuidados limitados de higiene, como exércitos (foi a principal causa de morte entre os soldados de Napoleão durante a campanha da Rússia), prisões e campos de concentração (matou centenas de milhares de pessoas em campos de concentração nazis, durante a segunda guerra mundial).[ii]

Uma outra forma de tifo, menos agressiva e que é, ainda, endémica em certas regiões rurais de África, da América  Central e do Sul e da Àsia é o chamado tifo murino, cujo principal vector[iii] é uma pulga que parasita os ratos e outros pequenos mamíferos.

O Tifo chegou a Portugal no final do século XV e foi evoluindo por surtos até às Invasões Francesas, a partir de quando se tornou endémico entre nós e assim se manteve até ao Séc. XX[iv] (o último grande surto de tifo, do qual resultaram cerca de 3.000 mortos, ocorreu em 1918-1919 sobrepondo-se, parcialmente, à pneumónica).

Quando se começou a compreender a relação entre o tifo e a falta de higiene, o exército francês introduziu nas medidas de disciplina a obrigatoriedade de fazer a barba e de cortar o cabelo rente, como forma de acabar com os piolhos que eram o vector da infecção.
E, de facto, as medidas de higiene capazes de erradicar ou controlar as populações de ratos e piolhos, continuam a ser estritamente necessárias para evitar o ressurgimento desta e de outras doenças infecciosas.

 Voltando ao caso da Ataíja de Cima:
10 mortos em 1832, a maioria deles em razão de um surto de tifo e,
18 mortos em 1833, a maioria deles por efeito da epidemia de cólera-morbo que assolou o país.
28 mortos em 2 anos, numa aldeia onde a média, durante todo o Século XIX, foi de 3 mortos por ano, equivale, grosso modo, ao numero de mortes que havia de ter lugar em nove ou dez anos.
É difícil imaginar a dimensão da tragédia, tanto mais que não dispomos, ainda, de estimativas seguras sobre a população que a aldeia teria naquele tempo mas, fazendo um paralelo com o Portugal actual onde, em 2012, houve cerca de 108.000 falecimentos, é como se de repente e em dois anos consecutivos morressem 346.000 e 648.000, praticamente, um milhão de pessoas. Ou seja, 10% da população (no caso da Ataíja de 1832 terá sido, deste ponto de vista, pior: talvez, cerca de 15% da população).

Conseguem imaginar a dimensão da tragédia?




O presente texto é, no que se refere à descrição e história da doença, subsidiário de:
“Tifo epidémico em Portugal: um contributo para o seu conhecimento histórico e epidemiológico”, artigo de J. A. David de Morais, publicado In Medicina Interna, Revista da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, VOL.15 | Nº 3 | JUL/SET 2008



[i] Em 1810-1813, um outro surto de tifo tinha percorrido todas as localidades mais importantes do país, provocando um tal número de mortes que há quem sustente que mais vítimas fez o tifo do que as tropas francesas.
[ii] Veja, por ex.: http://www.invivo.fiocruz.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=758&sid=8 (consultado em linha em 19-12-2013)
[iii] Vector, em medicina, é o artrópode que transmite o germe de uma doença (bactéria, vírus, ou protozoário) de um indíviduo doente a um indivíduo são. (in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], consultado em 14-12-2013).
[iv] Especialistas contam um total de dezassete surtos de tifo, em Portugal, durante o Séc. XIX.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Uma tragédia na Ataíja de Cima - A Epidemia de Cholera - Morbus de 1833



A epidemia de Cólera que, nos anos de 1832 e 1833 assolou a Europa, teve um forte impacto na Ataíja de Cima onde provocou um elevado número de mortos.

A doença era conhecida há longo tempo, por ser endémica na Índia aonde, no entanto, se manteve circunscrita até à década de 1820 quando atingiu a Rússia e continuou a progredir para ocidente.

A cólera chegou a Portugal “trazida a bordo de um navio que, de Ostende[i], transportava soldados para ajudarem D. Pedro no cerco do Porto”[ii], quando já tinha atacadocom grande virulência em Paris, no mês de Abril desse ano de 1832.

Pela primeira vez, foi antecipada a propagação de uma epidemia e a sua evolução sistematicamente acompanhada e, por toda a Europa, foram publicados numerosos livros e folhetos contendo quer instruções sobre os comportamentos a adoptar face à, ou para evitar a doença, quer relatórios médicos descrevendo as observações aos doentes, incluindo numerosas autópsias, ou relatando os efeitos dos medicamentos[iii] experimentados, seja, fazendo a história médica da epidemia[iv].

Exemplo de medida “preventiva” é o Aviso de D. Miguel I[v] ao Cardeal Patriarca de Lisboa que a seguir se transcreve:

TENDO apparecido em algumas Nações, e ultimamente mais proximo a nós, em a França, huma enfermidade nova, que se está conhecendo com o nome de Cholera-morbo Asiatica, e cujos terríveis estragos são talvez hum castigo, com que a Divina Omnipotência quer punir, e reprimir esse espirito de perversidade, e de impiedade, que desgraçadamente tem chegado a tamanho gráo no Século, em que vivemos, deve, em taes circumstancias, hum Povo Catholico, e que tanto se préza de o ser, como o Povo Portuguez, acudir, e reunir-se junto aos Altares a implorar a Clemencia do Omnipotente, e a adorar a Sua Alta Providencia, mesmo quando assim se mostra severa, e justiceira: He por tanto da vontade de Sua Magestade que Vossa Eminência ordene que, para o sobredito fim, hajão Preces públicas em todo o Patriarchado. Sua Magestade Manda lembrar a Vossa Eminência que he necessário que nessa ocasião os Ecclesiasticos, a quem isso competir, usando do importante Ministerio da palavra, que lhes incumbe, fação conhecer aos Povos que não basta a Oração para se applacar a Justiça Divina ofiendida, mas que são precisas as boas obras, affastando elles com especialidade, e repelindo firmemente para longe de si as idéas de corrupção, e de impiedade, que os máos, para seus fins perversos, tanto tem procurado espalhar; e tambem que lhes fação vêr os muitos motivos , que temos para esperar, e confiar na Misericordia de Deos, que sempre se tem mostrado propicio aos Portuguezes , e cujos Beneficios , ainda nestes passados tempos tão visivelmente acabamos de experimentar, livrando-nos por duas vezes da Facção revolucionaria, que dominava, e que pertendia destruir o Throno , e a Religião, e causar a total ruina de Portugal. O que de Ordem do Mesmo Senhor communico a Vossa Eminência para sua intelligencia, e para que assim se execute,  = Déos guarde a Vossa Eminência. Çamora Corrêa em 28 de Maio dé 1832. = Eminentíssimo e Reverendíssimo Senhor Cardeal Patriarcha. = Luiz de Paula Furtado de Castro do Rio de Mendoça.

Depois do Porto, em cuja região terá matado cerca de 13.000 pessoas, a Cólera alastrou a Lisboa e outras regiões e terá feito, no país, um total de cerca de 40.000 mortos até desaparecer no final de 1833[vi].

À Ataija de Cima a cólera terá chegado em Junho de 1833 provocando o que há-de ter sido uma hecatombe social, com a morte, num espaço de quarenta dias, de um total de 16 pessoas (9 em Junho, 7 em Julho)[vii].

Quem morreu?
2 eram viúvos, 6 casados e 8 solteiros, dos quais, 3 eram inocentes e um menor.
Dos inocentes, 2 eram expostos do Real Hospital da Cidade de Lisboa, que estavam a ser criados na aldeia.
João Machado que, no final do ano anterior tinha assistido à morte de uma filha verá, em Junho deste ano morrerem, no mesmo dia, a mulher e uma outra filha.
Bernardo de Moira verá desaparecerem-lhe, no espaço de 3 dias, um filho inocente e um menor.
A Custódia Maria, morreram o marido e um exposto que criava.
Luis Machado e a mulher também morreram no espaço de três dias.

A dimensão da tragédia fica mais nítida se nos lembrarmos de que, a média de falecimentos na aldeia, durante todo o Século XIX, é de 3 por ano.



NOTAS:

[i] CORREIA, Fernando da Silva - Portugal Sanitário (Subsídios para o seu estudo. Lisboa: Ministério do Interior ; Direcção Geral de Saúde, 1938, p. 465.)
Citado em: Portugal e as Conferências Sanitárias Internacionais (Em torno das epidemias oitocentistas de cholera-morbus), por Maria Rita Lino Garnel.
Ostende situa-se na actual Bélgica que, por esse tempo, alcançava a independência.
[ii] O cerco do Porto teve início em finais de Julho de 1832. Os "soldados" em causa eram, certamente, mercenários que tinham combatido nas lutas pela independência da Bélgica, iniciadas em 1830.
[iii] Melhor seria dizer mezinhas.
[iv] No caso de Portugal, por exemplo, o livro: Um fragmento da història da epidemia que, sob o nome de Còlera-morbus asiàtico, havendo percorrido a Àsia e a maiòr parte da Europa, chegou a Portugal no corrente anno de 1833, pêlo Dr. Lima Leitão.
Para o caso de França, por exemplo: RELATION sur le CHOLERA–MORBUS OBSERVÉ A PARIS , DANS LE MOIS d'AVRIL l832, SUIVIE D’UN RAPPORT SUR L’ÉPIDÉMIE CHOLÉRIQUE QUI A RÉGNÉ DANS l'arrondissement DE BERNAY (EURE), DEPUIS LE 29 AVRIL jusqu'au 27 SEPTEMBRE l832, PAR M. NEUVILLE,

[v] Estavamos em plena Guerra Civil que opunha os absolutistas chefiados por D. Miguel, aos liberais fiéis a D. Pedro IV. As posições de cada uma das partes em conflito perante a epidemia é um aspecto que acrescenta interesse ao estudo do tema. 
O Aviso transcrito é um claro exemplo demonstrativo do extremismo político e religioso de D. Miguel.
[vi] Havia de voltar várias vezes durante as décadas seguintes e, com particular virulência, em 1853-1856.
[vii] Nesse ano houve, na aldeia, mais duas mortes que, no entanto, não terão sido provocadas pela cólera.

Todas as publicações citadas estão acessíveis online.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Diácono Fábio Bernardino

No passado dia 24 de Novembro teve lugar, na Sé Catedral de Leiria, a ordenação diaconal de Fábio Bernardino.

Quase setenta anos depois, a Ataija de Cima prepara-se para ver, de novo, um dos seus naturais a chegar a padre. (o último foi o Padre Manuel Tomás de Sousa que, como já AQUI dissémos, foi ordenado presbítero em 1947).

Com os desejos de que o Fábio seja muito feliz no caminho que escolheu, fica aqui uma fotografia da cerimónia, retirada do site da Diocese de Leiria-Fátima
Com a devida vénia ao autor, Luis Manuel Ferraz.


 ©2013 LMFerraz | Presente Leiria-Fátima





PS: Na consulta ao site da Diocese de Leiria-Fátima  fiquei a saber de uma notícia velha: O semanário A Voz do Domingo já se não publica.
Há talvez dezenas de anos que o não lia. Mas, para mim leitor inveterado de jornais, terá sempre um significado especial: Foi o primeiro jornal que li