sábado, 10 de março de 2018

Francisco Veríssimo

(um quase padre na Ataíja de Cima do Séc. XIX ou, as incongruências da memória)

(assento do primeiro casamento de Francisco Veríssimo)

Desde criança que me lembro de ouvir a história:

Francisco Veríssimo estava prestes a terminar os estudos para padre quando, numa mesma semana, lhe faleceram pai e mãe, em consequência do que abandonou os estudos.
Dizem uns que por desgosto, dizem outros que por necessidade de tomar conta da sua “Casa”.
Veio a casar uma primeira vez e, tendo viuvado, casou de novo, tinha então 72 anos e a mulher 25.
Deste segundo casamento nasceram dois filhos e faleceram, ambos os cônjuges, com a idade de 98 anos.

A última vez que ouvi a história, de boca autorizada, foi ao seu neto João Veríssimo que para tanto o interpelei, não muito antes do seu falecimento ocorrido em 2013.
Nessa conversa o ti João Veríssimo confirmou a história, ponto por ponto, tal como sempre a ouvi e acima transcrevo.

O assento do óbito de Francisco Veríssimo, ocorrido em 11.11.1894, diz que ele faleceu no estado de casado com Joaquina Coelho, sendo filho de Veríssimo Amado e de Ana Lopes e tendo a idade de 98 anos, o que parece confirmar a tradição.


Mas, este é um dos casos em que não só a memória não é confirmada pelos factos, como se verifica que apenas um documento não chega para certificar a verdade.
É o que, adiante, se verá.

Os factos históricos comprovados são os seguintes:

Veríssimo Amado, lavrador, filho de Manuel Amado Rebelo e de Luísa Pereira, já era casado com Ana Maria em 1787, quando foram pais de João, baptizado em 30 de Maio desse ano. Podemos, assim, admitir que o Veríssimo Amado terá nascido cerca de trinta anos antes, o que nos leva para os anos de 1755 a 1760, seja, a época do terramoto.

O apelido Amado já existia na Ataíja desde há mais de cento e cinquenta anos antes e aí chegara vindo de Aljubarrota, através de António Amado, filho de Pedro Anes Amado, este, descendente de D. João II, fidalgo com Carta de Brasão de Armas de 17.06.1545.
Nos cerca de noventa anos que vão de 1721 até, 1807, vésperas das Invasões Francesas, o apelido Amado aparece-nos sempre intimamente ligado às elites locais[i].
De facto, nesse período, encontramos José Gomes Anes Amado de Azambuja, nascido em Aljubarrota, fidalgo de Cota de Armas, por Carta de 5.10.1721; Joaquim de Sousa Amado, Capitão de Ordenanças da Vila de Aljubarrota, por Carta patente de 24.10.1785; José Tavares Amado e Azambuja, nomeado capitão da Companhia de Ordenanças de São Vicente de Aljubarrota em 21-04-1790 (por morte do Capitão Veríssimo de Sousa Henriques) e, em 1804 e 1807, há notícias de um alferes José Tavares ou José Tavares Amado, de Aljubarrota.

O nome próprio do nosso Veríssimo Amado, esse, bem que poderia ser uma homenagem ao mártir[ii] mas, é nossa convicção de que a razão estará mais próxima, já que o vamos encontrar em Veríssimo de Sousa Henriques, capitão da Companhia de Ordenanças de São Vicente de Aljubarrota, falecido, como já vimos, antes de 21.04.1790.

Talvez não seja, assim, demasiado temerário pensar que o Manuel Amado Rebelo pertencia à mesma família dos demais Amados que, naquela época, encontramos em Aljubarrota desempenhando importantes cargos e que dessa importância social resultaram as relações que terão levado o Capitão Veríssimo de Sousa Henriques a apadrinhar a criança que tomou o nome de Veríssimo Amado.[iii]

Consultando os assentos de baptismo, da freguesia de São Vicente de Aljubarrota, encontram-se registos de Veríssimo Amado ter tido 5 filhos: João, nascido em 1787; Joaquim, nascido em 1793; Maria, nascida em 1796; Luís, nascido em 1799 e Francisco, nascido em 1806.
Destes, por enquanto e para além do Francisco que é objecto deste texto, apenas sabemos que o Joaquim viveu até aos 67 anos, vindo a falecer em 21.12.1860, no estado de viúvo de Joaquina Marques e não teve filhos.
Parece ter havido uma sexta filha, Joaquina, de que não encontrei o assento de baptismo mas, encontrei o assento de casamento com Luís Dias (em 5.11.1826) e os assentos de baptismo (em 1827, 1830 e 1842) de três filhos seus e onde é identificada como Joaquina Mónica ou Joaquina Veríssimo, filha de Veríssimo Amado e de Ana Maria.

Sabemos, assim, que o Francisco Veríssimo era o mais novo dos filhos de Veríssimo Amado, lavrador e de Ana Maria, também dita Ana Lopes ou Ana Vicente e neto paterno de Manuel Amado, ou Manuel Amado Rebelo, lavrador, da Ataíja de Cima e Luísa Pereira, esta, dos Casais de Santa Teresa onde estes avós paternos moravam e neto materno de Vicente Coelho, lavrador e de Maria Francisca, ambos da Ataíja de Cima, onde moravam.

Sabemos que o Francisco Veríssimo se casou duas vezes :
Uma primeira vez, em 25 de Novembro de 1849, com Rosa Coelho, a qual faleceu em 10-11-1860, com a idade de 53 anos e que era filha de João Coelho e Sebastiana Bernardo.
Consequentemente, trata-se da mesma Rosa, nascida nos Casais de Santa Teresa em 01-11-1807, filha de João Coelho, dos Casais de Santa Teresa e de Sebastiana Bernarda, da Ataíja de Cima, neta paterna de José Coelho da Cabeça dos Casais de Santa Teresa e de Mariana de Sousa da Ataíja de Cima e materna de Bernardo João e Maria Vicente, ambos da Ataíja de Cima.

Deste primeiro casamento não consta que tenha havido filhos.

Em segundas núpcias dele, após seis anos de viuvez, em 30-11-1866, diz-nos o respectivo assento de casamento, o Francisco Veríssimo, então com 60 anos de idade, viúvo de Rosa Coelho ligou-se a Joaquina da Costa, solteira, de 22 anos de idade, filha de Joaquim Coelho e de Maria da Costa, esta natural de Lisboa, neta paterna de Francisco Coelho, lavrador e de Rosa Vicente e materna de António da Costa, proprietário, natural de Asseiceira, Tomar e de Luísa Maria, da Ataíja de Cima.
Este assento, como verificamos, dá o Francisco Veríssimo como tendo, então, a idade de 60 anos ou seja, confirma que ele nasceu em 1806.

De acordo com o respectivo assento de óbito, em 11.11.1894, faleceu o “…Francisco Veríssimo, casado com Joaquina Coelho, trabalhador, da idade de noventa e oito anos …”
Mas, se como vimos e parece certo, o Francisco Veríssimo nasceu em 1806, então, diferentemente do que dizem o assento e a tradição, faleceu com a idade de 88 anos e não de noventa e oito anos, .

Mas, a história que a tradição oral conservou tem outras incongruências já que, de acordo com os respectivos assentos:

Em 18-07-1832 faleceu Veríssimo Amado, casado com Ana Maria.
Em 17-01-1845 faleceu Ana Lopes, viúva de Veríssimo Amado.
Ou seja, diferentemente da tradição, o pai e a mãe do Francisco Veríssimo não morreram na mesma semana, antes, com treze anos de diferença.

Parece, pois, poder concluir-se que a história de Francisco Veríssimo se terá passado de modo algo diferente:

Francisco Veríssimo, filho de Veríssimo Amado e de Ana Maria, ou Ana Lopes, andava a estudar para padre e, em 1832 quando tinha 26 anos de idade e esses estudos estavam quase concluídos, faleceu o seu pai.

Terá sido por isso e por essa altura que, levado pela tristeza e o desgosto, como diz a tradição ou, qualquer outra razão mais prosaica,abandonou os estudos e regressou à Ataíja de Cima onde, seguindo a tradição familiar, se tornou agricultor.
A hipótese de ser movido pela necessidade de tomar conta da “Casa” agrícola também precisa de melhores argumentos já que, nesse tempo, estaria na casa, ainda solteiro, o seu irmão Joaquim, então com cerca de trinta e nove anos de idade. Porque razão não tomou este o encargo? Tanto mais que a destinação de um filho a Padre, pressupunha  que a direcção da casa agrícola estava destinada a outro, ou outros dos irmãos. Para intentar resolver melhor estas dúvidas precisávamos de conhecer a situação concreta de cada um deles. 

Seja como for, o que os registos paroquiais mostram é que o Francisco Veríssimo casou pela primeira vez com Rosa Coelho, ou Rosa Vicente, nascida nos Casais de Santa Teresa, a qual veio a falecer com a idade de 53 anos, em 1860.
O casamento foi celebrado, sob licença do Vigário paroquial, o ataijense Luis João de Sousa, pelo Reverendo Rufino José da Fonseca, da Vila, na capela de Nossa Senhora da Graça, da Ataíja de Cima, em 25 de Novembro de 1849 tinha então o Francisco a idade de 43 anos e a noiva a idade de 42 anos.
Não se conhecem filhos deste casamento.

Na data em que se realizou este primeiro casamento do Francisco Veríssimo, já o seu pai havia falecido há dezassete anos e a mãe há quase cinco anos.

Após 6 anos de viuvez, em 1866, o Francisco Veríssimo, então com a idade de 60 anos casou, em segundas núpcias dele, com Joaquina da Costa ou Joaquina Coelho, solteira de 22 anos de idade.

Deste casamento nasceram, pelo menos, dois filhos:
- José, falecido em 15.9.1883, com 14 anos de idade;
- João o qual veio a casar com Maria Ribeiro, dos Casais de Santa Teresa, filha de Joaquim d'Horta Moura e de Maria Ribeira e foram pais de, pelo menos, quatro filhos:
- Maria nascida em 1906;
- Teresa (Teresa Ribeiro), falecida solteira nos anos de 1960, tendo então 50 e alguns anos de idade;
- José;
- João, este falecido muito recentemente, em 2013.
Os dois últimos deixaram descendência.

A sua mulher, Joaquina da Costa, ou Joaquina Coelho essa, talvez tenha falecido com a idade de 98 anos, (portanto, cerca de 1942) como diz a tradição, já que o ti’João Veríssimo me contava que faleceu quando ele era jovem.


Duas notas, para terminar:

A casa, no início da Rua das Hortas, onde terá vivido Veríssimo Amado e seguramente viveram Francisco Veríssimo, o seu filho e o seu neto e, agora, vive um bisneto e é, sem dúvida uma das mais antigas casas da Ataíja de Cima é, talvez, a mesma onde a partir de meados do Séc. XVII, já viveram os seus antepassados Manuel Coelho e sua mulher Antónia Amado, esta, filha de António Amado, o Moço, filho de António Amado, filho de Pedro Anes Amado, fidalgo da Casa Real, filho de Brites Anes Baracho, filha de Brites Anes de Santarém, filha de Brites Anes, a Boa Dona e do Senhor Dom João II, Rei de Portugal.

Desconheço as razões que terão levado o Francisco Veríssimo a abandonar o apelido familiar Amado e a adoptar como apelido o nome próprio do pai (como era prática comum entre os camponeses[iv]), tanto mais que o apelido Amado, cuja ascendência conduzia directamente ao Senhor Dom João II, tinha notável peso na sociedade local no Antigo Regime e desse peso haviam de beneficiar, também, ainda que menos intensamente, aqueles ramos da família que se tinham tornados lavradores. 
Facto é que o falecimento de Veríssimo Amado e o presumível abandono do Seminário pelo Francisco Veríssimo acontecem em pleno fim de regime, quando decorre o cerco do Porto, durante a guerra civil entre Miguelistas e Liberais e, talvez estes acontecimentos políticos não sejam alheios ao abandono do velho apelido Amado e ao nascimento do novo apelido Veríssimo.
Certo é que quando morre, em 1894, já não é um Amado, nem sequer um lavrador. Apenas, a acreditar no assento de óbito, Francisco Veríssimo, trabalhador.


Nota: Este texto foi publicado, inicialmente, neste blog em 31 de Outubro de 2014. É agora republicado (10-03-2018), actualizado com novos elementos relativos ao primeiro casamento do Francisco Veríssimo.


[i] Ver, neste blog, o texto Capitães de Aljubarrota.
[ii] Segundo a tradição São Veríssimo, Santa Máxima e Santa Júlia ou, simplesmente, Veríssimo. Máxima e Júlia, os Mártires de Lisboa, alcançaram a santidade pelo martírio no dia 1 de outubro do ano de 303 ou 304, por ocasião de uma perseguição aos cristãos pelo Imperador romano Diocleciano (compare-se com o que, neste blog, a propósito de São Vicente, dissemos no texto Padre Fábio Bernardino - Uma Iconografia.
[iii] Tenha-se presente que, naquela época, as crianças eram baptizadas, em regra, apenas com um nome próprio. O apelido, esse, só o passavam a usar em adulto (esta é uma matéria que será desenvolvida num outro texto).
[iv] Veja-se, neste blog, o texto ""Nomes Próprios na Ataíja de Cima, nos anos de 1785 a 1910"

quarta-feira, 7 de março de 2018

A Guerra Civil (1832-1834) na nossa região



Durante grande parte da primeira metade do século XIX a nossa região foi palco de sucessivas movimentações militares.

Primeiro, as invasões francesas. Há documentos relatando a presença dos exércitos, quer franceses quer ingleses, desde Agosto de 1808 e, quase sem interrupções, até, pelo menos, Março de 1811.

Tinham passado pouco mais de vinte anos sobre as guerras e os sofrimentos provocados pelas Invasões Francesas quando, de novo, por aqui andaram as botas cardadas dos militares. Agora, era a Guerra Civil travada entre os dois irmãos D. Pedro e D. Miguel, na verdade, a guerra entre o Antigo Regime agonizante e a sociedade moderna que emergia.

Passados pouco mais de três anos sobre o fim da guerra civil, novas incursões militares pela nossa terra. Agora, a chamada Revolta dos Marechais, reacção ao Setembrismo encabeçada pelos mesmos Saldanha e Terceira que tinham vencido a Guerra Civil.
Um dos mais importantes, embora inconclusivo, dos combates havidos durante a Revolta dos Marechais ocorreu no Chão da Feira, praticamente no mesmo local onde 452 anos antes se tinha travado a Batalha de Aljubarrota. 

Mais tarde, em 1846 e 1847, a Revolta da Maria da Fonte e a Guerra da Patuleia haviam de trazer novos e sucessivos movimentos de tropas a toda a nossa região.

Mas, do que queremos falar hoje é da Guerra Civil.

Depois das Cortes de 1828 onde D. Miguel se fez proclamar Rei absoluto, os liberais foram perseguidos e presos aos milhares, muitos foram mortos e grande número foi forçado a exilar-se. D. Pedro abdica então do trono brasileiro e em 1831 desembarca nos Açores para, a partir daí, organizar um exército que desembarcou nos arredores do Porto em Julho de 1832, aí ficando sitiado pelos miguelistas durante longos 13 meses, até Agosto de 1833.

No início desse ano de 1833, os liberais contrataram para comandar as suas forças navais um oficial da marinha inglesa, Charles Napier[i] o qual escreveu um pormenorizado relato da sua participação nesta guerra, relato esse que, sob o título An Account of the War in Portugal, foi publicado em Londres em 1836 e, traduzido com o título Guerra da Sucessão em Portugal, foi publicado em Lisboa em 1841.

Apesar de a tomada de Lisboa pelos liberais e o fim do Cerco do Porto terem ocorrido em meados de 1833 (Julho e Agosto, respectivamente), a guerra continuou e só veio a terminar em Maio de 1834 com a assinatura da Convenção de Évora Monte.

Nesses longos meses, as operações militares tiveram particular incidência na Estremadura onde Leiria permanecia fiel a D. Miguel e no Ribatejo,  já que o mesmo D. Miguel, tinha instalado o seu quartel-general em Santarém. O último dos grandes combates desta guerra aconteceu precisamente em Maio de 1834, na Asseiceira, perto de Tomar, apenas dez dias antes da assinatura da Convenção de Évora Monte.

A paginas 125 do Tomo II do referido Guerra Civil em Portugal, o almirante Charles Napier descreve a conquista de Leiria e os movimentos de tropas que a precederem:

No dia 12 de Janeiro[ii] tomou o Duque da Terceira o Comando do Exército e estabeleceu o seu Quartel-General no Cartaxo. Saldanha partiu no mesmo dia para Rio Maior, para onde tinha destacado uma força na tarde anterior, para formar uma junção com as tropas já estacionadas, ali e em Alcobaça, perfazendo ao todo cerca de quatrocentos a quinhentos homens.
No dia 13 a Cavalaria ocupou os Carvalhos[iii], e a Infantaria os Molianos e povoações adjacentes. O Tenente-Coronel Vasconcellos com o 1.° Regimento de Infantaria Ligeira da Rainha marchou no mesmo dia para Cós e no dia seguinte chegou à Batalha.
Uma copiosa chuva que durou quarenta e oito horas sem interrupção tinha inundado todo o terreno, mas não obstante estas dificuldades as colunas estavam empenhadas em marchar sobre Leiria e atacar aquela Cidade, antes que o inimigo tivesse tempo de se escapar. Contudo, as dificuldades de uma marcha noturna eram tão grandes que o Marechal decidiu esperar para o dia seguinte.

(E, no dia seguinte, Leiria foi tomada e, quando os últimos defensores miguelistas a abandonavam, fugindo pela estrada de Coimbra …)

A Cavalaria foi no seu alcance pelo espaço de uma légua. Matou muitos, e fez muitos prisioneiros
Os Oficiais do Estado Maior acompanharam a Cavalaria e acharam muita satisfação em tingir as suas espadas em sangue Miguelista.

Tal é a guerra civil.


Almirante Sir Charles John Napier, pintura atribuída a John Simpson [Public domain], via Wikimedia Commons



[i] O Almirante Sir Charles John Napier foi um importante e controverso militar e político, com uma carreira longa e recheada, durante a qual serviu com brilhantismo as armadas britânica e portuguesa. A sua biografia merece bem uma leitura. (v. https://pt.wikipedia.org/wiki/Charles_John_Napier)
[ii] De 1834.
[iii] O lugar que hoje chamamos Pedreiras