sexta-feira, 24 de abril de 2015

Bernardino dos Santos




No Livro n.º 53, de Matrícula de Expostos Varões, do ano de 1857[i], a fl. 313, consta a matrícula n.º 1192, de uma criança do sexo masculino, entrada e baptizada (Lvº 137 dos Baptismos, fl. 309, nº 1067) nesse dia 28 de Maio de 1857 e a quem foi posto o nome de Bernardino.

No dia seguinte, 29 de Maio de 1857, foi a criança entregue à ama-de-leite Miquelina Augusta, moradora na Rua do Vale de Santo António, nº 154, freguesia de Santa Engrácia (actualmente freguesia de S. Vicente de Fora), em Lisboa[ii].

De acordo com as regras em vigor naquele tempo, a ama foi contratada por doze meses para a criação e amamentação do exposto, pagando-lhe o Hospital dos Expostos de Lisboa (que, era como que uma divisão da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa) a quantia mensal de 1$600 (mil e seiscentos réis) e total de 19$200.
Como normalmente acontecia, esse contrato foi renovado uma e duas vezes, para que a mesma ama continuasse a criação do exposto, agora alimentado a seco, sendo a primeira renovação por 12 meses de seco a 1$100, a contar de 29 de Maio de 1858, valor total – 13$200 e a segunda por 12 meses de seco a $900, a contar de 29 de Maio de 1859, valor total – 10$800.
E, temos a criança chegada à idade de três anos.
Era a altura de, reavaliadas as condições da ama e da criança, contratar a sua criação até à idade de sete anos. Dependendo dos resultados da avaliação da situação da ama e da criança, este contrato podia ser feito com a mesma ou outra ama.
No caso, ter-se-á concluído que a criança estava de boa saúde e bem tratada e que a ama Miquelina Augusta tinha todas as condições indispensáveis para continuar com a responsabilidade da criação. Fez-se, assim, o contrato: 48 meses de seco a $500, a contar de 29 de Maio de 1860, total  – 24$000

No entanto, passado pouco tempo, menos de nove meses, algo aconteceu com a ama que levou a que a criança fosse, em 25 de Fevereiro de 1861, entregue a Carlota Júlia da Silva, solteira[iii], moradora na Rua das Freiras, nº 8, loja, freguesia de Santa Maria de Belém[iv].
39 meses[v] de seco a $500 – 19$500

Também esta ama não pode ou não quis cumprir o acordo e, menos de três meses depois, em 6 de Maio de 1861, o Bernardino foi forçado a mudar de casa, sendo entregue a Maria da Paixão, casada com José Francisco Marques, moradores na Calçadinha do Tijolo, nº 48, Freguesia de São Vicente (de Fora), ali às Escolas Gerais, bem no coração da velha Lisboa, entre a Graça e Alfama e S. Vicente de Fora e as Portas do Sol.
Aí devia ter ficado pelos 37 meses que lhe faltavam para atingir os sete anos de idade.

Mais uma vez o Bernardino não tinha, ainda, encontrado o seu poiso e, 13 meses depois, em 18 de Junho de 1862, estava a ser entregue a Joaquina Coelho, casada com José Machado, lavrador, “moradores no logar de Atouguia de Cima (sic), freguesia de São Vicente de Aljubarrota”…

Finalmente, aos cinco anos de idade, o Bernardino tinha chegado a casa.

Cino anos depois, em 7 de Maio de 1867, quando o Bernardino atinge a idade de dez anos, é celebrado o último termo de entrega, o chamado “Termo de Vestir”[vi]. A entrega é feita à mesma Joaquina Coelho, casada com José Machado, lavrador, residente no lugar de Ataíja de Cima, freguesia de S. Vicente de Aljubarrota, concelho de Alcobaça[vii].

Termo de Vestir de Bernardino dos Santos
(foto gentimente cedida pelo Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa)


Agora já não se trata da entrega da criança a uma ama que, contra pagamento, se encarrega de o alimentar, cuidar e vestir.
Supõe-se que a criança, aos dez anos de idade, já é capaz de produzir trabalho que vale a sua alimentação, educação e o vestir. Por isso, o hospital dos Expostos, embora continue a vigiar o seu desenvolvimento, já não pagará mais.
O jovem (hoje diríamos, a criança) trabalhará para a família de acolhimento que, em contrapartida, deve  “… tratal-o como seu próprio filho, educando-o e instruindo-o quanto lhe for possível … fazêl-o cumprir todos os deveres da nossa religião … procurar ou ensinar-lhe uma profissão …”[viii]


Em 27 de Novembro de 1889 Bernardino dos Santos, solteiro, criado de servir, exposto da SCML, de 32 anos de idade, casou-se com Francisca Branca, solteira, doméstica, de 25 anos de idade, filha de António Dias e Mariana Branca, todos naturais da Ataíja de Cima.



[i] Conservado no Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
[ii] A Rua do Vale de Santo António desce, por um vale, da Rua dos Sapadores, à Graça, para o Rio, na zona de Santa Apolónia e deve o seu nome à Capela do Vale de Santo António, ou Ermida de Santo António do Vale, ali existente, construída na 2ª metade do século XVIII, no local onde, segundo a tradição, descansou Santo António quando se dirigia ao Tejo, vindo do Convento de São Vicente de Fora, para embarcar para o Norte de África.
O interior da capela é decorado com valiosos azulejos que narram milagres de Santo António e cenas da vida de Nossa Senhora. (v. http://www.cm-lisboa.pt/en/equipments/equipment/info/capela-do-vale-de-santo-antonio, consultado em 17-04-2015)
[iii] As amas de seco podiam ser casadas, solteiras ou viúvas ou, até, homens. (ver o que a propósito escrevemos em “Amas de Expostos” http://ataijadecima.blogspot.pt/2013/04/amas-de-expostos.html
[iv] A rua não existe actualmente, ao menos com aquele nome.
[v] Ou seja, para completar p tempo que faltava até aos sete anos, idade em que
[vi] No final deste texto reproduzimos o Termo de Vestir do Bernardino. Vale a pena clicar sobre a imagem para a ampliar e ler, com atenção, todo o seu texto.
[vii] Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Lvº 25 de Vestir, fl. 227, Lvº 42 reforma, fl. 227
[viii] No final deste texto reproduzimos o Termo de Vestir do Bernardino. Vale a pena clicar sobre a imagem para a ampliar e ler, com atenção, todo o seu texto.

terça-feira, 14 de abril de 2015

A propriedade do Olival dos Frades da Ataíja de Cima, depois dos frades


Como a generalidade dos demais bens das ordens religiosas extintas em 1834, o Olival e o Lagar dos Frades da Ataíja de Cima foram, nos anos seguintes, vendidos em hasta pública.

Naturalmente, foram as elites do novo regime e os representantes mais abastados da burguesia emergente que adquiriram esses bens e, no caso dos bens do Mosteiro de Alcobaça, foi o “brasileiro” Bernardo Pereira de Sousa que adquiriu, além do mais, os lagares de azeite da Quinta de Chiqueda, da Fervença e das Antas[i]  e a Quinta das Freiras de Cós, em Chiqueda[ii]
Ao mesmo tempo, por arrematação realizada no dia 6 de Abril de 1836, adquiriu o Olival do Santíssimo Sacramento, o Olival dos Frades da Ataíja de Cima[iii].

Quem era este Bernardo Pereira de Sousa que, na sequência de tais aquisições se tornou dono de 22 prensas de vara, um terço da capacidade extractiva dos lagares de azeite do Mosteiro, segundo António Maduro[iv]  e, pelo mesmo modo, adquiriu posição dominante na moagem de cereais?

Bernardo Villa Nova não incluiu o seu nome entre as personalidades que biografou em “Figuras de Alcobaça e sua Região”[v].  
Dele, diz António Maduro[vi] que adquiriu a nacionalidade portuguesa em 1836, abandonando definitivamente o Brasil e casou com Francisca Jacinta Pereira, uma rica herdeira do também brasileiro João Pereira Gomes.
A imensa quantidade e qualidade dos imóveis cuja propriedade acumulou, fez dele o mais colectado pelo imposto da décima[vii] e levou-o, em meados da década de 1840, a presidente da Câmara Municipal de Alcobaça[viii].

Foi pai de Ana Pereira de Sousa que, em vários lugares, é identificada como Ana Pereira de Sousa da Trindade[ix], sendo que o Trindade é apelido do marido João Pereira da Trindade.

O casal teve duas filhas, Clotilde Pereira da Trindade que casou com Augusto Rodolfo Jorge e Francisca Pereira da Trindade que casou com o Dr. Francisco Zagallo[x] que, esclarece Bernardo Villa Nova, nasceu em Ovar em 1850, licenciou-se em Coimbra em 1876 e, pouco depois, tornou-se médico municipal em Alcobaça onde viveu até morrer em 1910[xi].

Foi esta Francisca que herdou o Olival do Santíssimo Sacramento da Ataíja de Cima, como se conclui do que diz Manuel Vieira Natividade[xii] segundo o qual, no ano de 1885, esse olival era propriedade “do Dr. Francisco Baptista de Almeida Pereira Zagalo, médico em Alcobaça”[xiii].

Sabemos que o olival foi, depois, propriedade de Olímpio Trindade Jorge, o qual marcou os limites da propriedade com um vasto conjunto de marcos, muitos deles ainda hoje existentes (ver o que aqui publicámos neste blog, em 8-10-2009, sob o Título “Os Marcos do Olival dos Frades” e que com este post pretendemos rectificar, desenvolver e melhorar) e, recorrendo de novo à mencionada obra de Bernardo Villa Nova, ficamos a saber que o Olímpio era sobrinho do Dr. Zagalo (ou seja, de sua mulher) e filho de Augusto Rodolfo Jorge o qual, por sua vez, nasceu no Porto e veio para Alcobaça com 19 anos, em 1866, acompanhando o seu pai, Dr. Bernardo Francisco Jorge “médico que depois de ser agraciado por D. Pedro V com o título de comendador pelos seus serviços prestados por ocasião da epidemia de febre-amarela, veio para Alcobaça como médico municipal”[xiv].

Tornando ao Olival dos Frades da Ataíja de Cima, a sua propriedade passou, talvez por herança ou doação, do Dr. Francisco Zagalo ao sobrinho Olímpio Trindade Jorge que o vendeu, em 1918, pela quantia de 100.000$000, (cem mil escudos ou, cem contos de réis), valor que hoje corresponderia, nos termos da Portaria
n.º 281/2014, de 30 de Dezembro, que estabelece, para os bens alienados em 2014, os coeficientes de desvalorização da moeda para efeitos da correcção monetária dos valores de aquisição de determinados bens e direitos, a 171.496.000$00 seja, a € 855.401,40.

O comprador foi Matias Ângelo, da Ataíja de Cima.

Com a morte de Matias Ângelo, ocorrida em 1933, o Olival dos Frades da Ataíja de Cima foi desmembrado e dividido entre os seus herdeiros


Ruínas (1995) do lagar do Guincho, construído, na margem da Lagoa Ruiva, por Matias Ângelo, para processamento das azeitonas do Olival dos Frades. O lagar está, hoje, totalmente desaparecido, encontrando-se no seu lugar a oficina de Soltage - Derralharia, Lda.




[i] António Valério Maduro, in Monges e Camponeses – O domínio cisterciense de Alcobaça nos séculos XVIII e XIX. Edição CEPAE – Centro do Património da Alta Estremadura, 2010.
[iii] António Maduro, 50 Coisas de Escrita Vária Alcobacense, Colecção Estremadura, espaços e memórias, II Série, 06, CEPAE – Centro do Património da Estremadura e Folheto Edições & Design, 2012, p.193
[iv] António Maduro, 50 Coisas …, pág. 35
[v] Bernardo Villa Nova, Figuras de Alcobaça e sua Região, (originalmente publicados em 3 volumes, em Alcobaça, 1959, 1960 e 1961). Edição fac-similada agrupando os 3 volumes, publicada por Rebate, Movimento Cívico, 2002
[vi] António Maduro, 50 Coisas …, pág. 193
[vii] A Décima foi um imposto criado em 1641 para prover às necessidades de defesa do Reino. Era um imposto universal (excluídos os eclesiásticos, mas incluídos os nobres) sobre o rendimento, fosse de propriedade, trato, maneio ou profissão. O nome provém do facto de o valor a pagar ser, em regra, um décimo do rendimento tributado. Evoluiu para se tornar um imposto predial e, é como imposto predial que é referida, ainda hoje, na linguagem corrente.
[viii] António Maduro, 50 Coisas…, p.194
[ix] V., por ex., António Maduro, 50 Coisas…, p.194
[x] Agradecemos esta informação a um estimado leitor deste blog que, identificando-se apenas por João, em comentário inserido em 23 de Dezembro de 2012, ao texto inicial deste post, nos esclareceu sobre estes parentescos, já que Bernardo Villa Nova (op. cit.) apenas diz que Augusto Jorge e o Dr. Zagalo casaram com senhoras alcobacenses que, no entanto, não identifica.
[xi] Bernardo Villa Nova, Figuras de Alcobaça ….
[xii] in O Mosteiro de Alcobaça (Notas históricas), Coimbra, Imprensa Progresso, 1885
[xiii] O facto de o Dr. Zagallo surgir como proprietário do Olival dos Frades da Ataíja de Cima apenas nove anos após se ter licenciado, já nos fazia presumir (no texto inicial deste post que publicámos em 2010 e, por conter erros diversos, agora reescrevemos), que o teria adquirido por herança de sua mulher.
[xiv] Trata-se, talvez, do mesmo médico que, nesse ano de 1866, apresentou e defendeu na Escola Médico-Cirúrgica do Porto a tese: “FRACTURAS DO COLLO DO FEMUR” THESE APRESENTADA À ESCOLA MEDICO-CIRURGICA DO PORTO PARA SER DEFENDIDA PELO ALUMNO BERNARDO FRANCISCO JORGE, PORTO, TYPOGRAPHY DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA, Rua da Cancella Velha, 62, 1866 acessível na internet em : http://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/18311/3/VIII-2_17_EMC_I_01_P.pdf.
(consultado em 14-04-2015)