segunda-feira, 26 de abril de 2021

Memórias da minha avó Maria Lourença e da sua amiga Maria Coelha

 

 

A minha avó Maria Lourenço, era analfabeta e, nascida e vivida na Ataíja de Cima, não tinha ido mais longe do que Alcobaça em dia de mercado, ou Fátima, em peregrinação pedestre.

Também foi, pelo menos uma vez, de férias à Nazaré, acho eu que na primeira semana de Setembro de 1954. Setembro era, naquele tempo, o tempo de os camponeses irem à praia. Lembro-me disso porque tinha eu uns seis anos e também fui e essas férias ficaram-me gravadas na memória, por ter então assistido a uma série de notáveis e impressionantes episódios, como já vos contei noutro lugar

 Mais velha, perto dos 78 anos, em 1960, foi também a Lisboa e andou de Metropolitano, acabado de inaugurar.

Não que o quisesse.

Que tinha muito tempo para ir para debaixo da terra, teimava com os netos que queriam, à viva força, pô-la ao par do progresso. Mas, gostou daquele comboio que ainda cheirava a tinta, quase não fazia barulho, não produzia fumo e era rápido. Tão rápido que, chegados à estação de destino, a exclamação foi: Já!?

 

Mas, de como me lembro realmente da minha avó, é nós ambos, sentados frente a frente, dentro da chaminé da velha casa onde vivíamos, quando na lareira, depois da ceia, crepitava um lume pequeno e rezávamos orações pelo eterno descanso dos parentes falecidos, invocados um a um. Nunca nenhum era esquecido e, de todos, tenho especialmente viva a lembrança do irmão Joaquim, falecido jovem, de desgosto e saudade contava-me ela, durante o serviço militar, ainda no tempo dos Reis e esta era apenas uma das muitas histórias que ocupavam esses serões.

 Se não estávamos à lareira, ela contando e eu ouvindo, andávamos.

É isso. É, também assim que recordo a minha avó: andando.

Íamos à missa a Aljubarrota, saía-se ainda escuro que o Padre Casimiro era homem duro e, penso agora, convicto de que a fé exige sacrifício, gostava de dizer a missa bem cedo. Ou, talvez fosse apenas conhecedor da difícil vida dos seus paroquianos e sabedor de que após a missa, mesmo no dia do Senhor, havia muito para fazer.

Toda a aldeia ia à missa, deslocando-se em pequenos grupos familiares ou de vizinhos, duas, três ou meia dúzia de pessoas, uma procissão anárquica coleando pelas curvas da estrada, a caminho de S. Vicente.

Do nosso grupo fazia parte a ti’Maria Coelha que nos esperava na porta.

Quando penso nisto fico sempre um pouco intrigado, porque já não sei se o grupo era só assim. Então, e a Joaquina, filha solteira e coabitante da ti’Maria Coelha e a minha prima Isabel que a avó e a tia criavam, não iam connosco? Se calhar não. De certeza que não. A ti’ Joaquina Coelha era mulher desembaraçada e de andar firme e apressado e, católica militante, havia de ter compromissos na Paroquial de que, aliás, havia de ser uma das zeladoras e, nesse caso, teria ido mais cedo. Se assim era, a Isabel não deixaria de ser arrastada pela tia.

E a tia Pequena e o marido e os filhos, meus primos também, que necessariamente tinham de nos passar à porta para ir à missa? E a tia Papoila e os dela que, tal e qual? E, os do tio Porfírio que a caminho de Aljubarrota haviam também de passar na nossa porta?

 A verdade é que a aldeia não tinha esses tiques urbanos do vamos juntos.

Ali era mais, ala que se faz tarde, cada um trata do que é seu mester e logo mais quando for o dia da festa então, juntamo-nos todos e dançamos e cantamos e as mulheres riem e os homens bebem. Ou então hoje não é dia de folguedos e,

E lá íamos os três, eu de garoto, elas de saia preta até aos tornozelos, lenço preto como pertencia às viúvas, que hoje por ser Domingo ia atado no alto da moleirinha, depois de as pontas darem uma volta na nuca, abaixo do carrapito, deixando ver o lóbulo das orelhas onde pendiam velhas arrecadas.

Sobre o lenço um chapéu de abas pequenas e reviradas para cima e, sobre ele, cuidadosamente dobrado ou cobrindo os ombros, conforme o pedia o tempo que fazia, o xaile.

Tudo preto como, repete-se, pertencia às viúvas.

 Se não era Domingo e não íamos à missa, eu a minha avó caminhávamos pela aldeia. Nunca em percursos aleatórios. Nunca a andar por andar, antes, sempre com destino e objectivos claros: visitar uma amiga doente, ou este ou aquele filho com o qual havia alguma coisa a tratar, vigiar os terrenos que pertenciam às “folhas” dos dois filhos emigrados, o ti Zé, a que muitos anos mais tarde havíamos de chamar o Francês – naquele ano de 1956 em trânsito de Agadir, no Marrocos agora independente, onde lhe nasceram os filhos e lhe morreu a mulher e a França que o havia de acolher até à reforma e deu a nacionalidade aos seus filhos, netos e à bisneta que ele já não conheceu – e o meu pai em Lisboa, nesse ano feito estudante noturno, em busca do exame e diploma da quarta classe que lhe havia de permitir obter a carta de condução, deixar a venda de leite e tornar-se motorista de táxi.

Naquelas andanças com a minha avó eu, curioso, debruçava-me, às vezes e apanhava coisas. É. Nunca fui caçador mas sempre me senti bem na pele de recolector, juntar é, ainda, um gosto e nem vos digo da quantidade de colecções que iniciei e nunca passaram de ajuntamentos.

Alexandre dos Cavacos, chamava-me a minha avó, mulher a quem a vida escassa ensinara a preocupar-se apenas com o essencial e a juntar e a guardar, apenas tudo o que era ou podia ser útil, como botões de roupa velha antes de ir a rasgar, cortando-se em tiras que se enrolavam em bolas, para fazer mantas de trapos.

Em casa da ti’Maria Coelha havia um tear, num quarto pequeno que estava junto à cozinha e tinha uma janela para o pátio, o sul e o sol que alumiava o trabalho da tecedeira.

Mas, que me lembre, nunca vi a ti’Maria Coelha tecer.

Poucos anos antes, em 1950, ainda ela tecia mantas e tapetes de trapos, como já contei. Mas o que a seguir vos digo há-de ter-se passado na segunda metade da década e, nesse tempo, já ela estava mais perto dos oitenta que dos setenta anos, em idade boa para a reforma e má para trabalhos que exigiam vista apurada e gestos firmes. De resto, era a filha que agora, com genica, governava a casa. Para trás tinham ficado 35 anos de viuvez. Anos difíceis, a sustentar a casa e criar os quatro filhos que o marido lhe deixou, o mais novo com apenas um ano de idade, quando morreu pela pneumónica, faz agora cem anos.

Na parede da casa de fora da ti´Maria Coelha estava pendurado um retrato de um homem bem posto. Era o falecido marido e o retrato tinha tirado em New Beresford, no Massachussets, aquando da sua aventura americana.
De vez em quando, a ti'Maria Coelha olhava o retrato com desvelo:

- Ai o meu Francisquinho. Era tão bonitinho! ... raios o partissem, batia-me tanto!