quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Gémeos siameses no Carvalhal de Aljubarrota






Os gémeos siameses ou xifópagos, são gémeos monozigóticos, que dizer, formados a partir de um único zigoto.[i]
O termo "siameses" deve-se aos gêmeos Chang e Eng Buncker, que nasceram no Sião, (nome antigo da actual Tailândia), em 1811 e viveram até aos 63 anos, colados pelo peito.

Anunciados como os “gémeos siameses”, Chang e Eng tornaram-se célebres nos anos de 1830, em que viajaram pela Europa e Américas, fazendo exibições e proferindo palestras sobre a sua condição. Acabaram por se fixar nos Estados Unidos, na Carolina do Norte, e aí casaram, tiveram filhos e permaneceram unidos até o fim de seus dias.

Vem isto a propósito de que as Inquirições ordenadas em 1758 pelo Marquês de Pombal aos párocos do Reino, continham, na sua primeira parte, uma questão, a última, com o número 27º, pelas respostas à qual se pretendia saber qualquer outro facto digno de memória que não tivesse sido referido nas respostas anteriores.
A pergunta era a seguinte:

27. E tudo o mais que houver digno de memória, de que não faça menção o presente interrogatório?

As respostas àquelas Inquirições constituem as chamadas Memórias Paroquiais, de que já falamos várias vezes neste blog e havemos de voltar a falar, já que se trata do maior acervo de dados existente sobre o Portugal do Séc. XVIII.

Como sabemos, naquele tempo, havia em Aljubarrota duas paróquias, S. Vicente e Nossa Senhora dos Prazeres e o Carvalhal situava-se na área da paróquia de Nossa Senhora dos Prazeres, de que, aliás, era a aldeia mais populosa[iv], com setenta e seis vizinhos, mais do que a parte da vila de Aljubarrota que pertencia a esta paróquia[v].

O vigário de Nossa Senhora dos Prazeres, não refere em nenhum ponto das suas respostas o extraordinário caso que é o mote deste texto, quando é certo que ele é e, naquele tempo, certamente era, digno de memória quer por ser fenómeno relativamente raro quer, ainda, porque, face ao fraco desenvolvimento das ciências de então, o seu surgimento havia de ser causa de grande espanto, para dizer o mínimo.
Dos dois párocos locais, o único que a tão inusitado acontecimento se refere – metendo a pena em terra alheia - é o cura de São Vicente, que o faz nos seguintes termos:

“27º O que achei digno de memória nesta terra vay referido nas respostas antecedentes e só de novo acresce o dar noticia de que no lugar do Carvalhal, termo desta villa, algum tempo antes do terramoto de 1755 nasceo hua menina que tendo um so ventre tinha duas cabeças distintas hua da outra, porque cada hua tinha seu pescoço com boa formatura e com quatro braços, por modo de abrasos cingindos ao corpo com quatro pernas bem distinctas huas das outras e tambem proporcionadas como se fosse hua so creatura perfeita. Porem o ventre e peito era so hum e sem desformidade algua.[vi]

A viva descrição permite-nos saber, sem dúvida, que se tratava de gémeos siameses encontrando-se, neste caso, as crianças ligadas pelo tronco.

O nascimento de duas gémeas xifópagas no início do séc. XII será o caso mais antigo de que há relato.
Em Portugal foram as bens sucedidas cirurgias de separação de gémeos siameses pelo Dr. Gentil Martins (v. Nota [ii]) que despertaram o interesse popular sobre o assunto.
No entanto, o relato mais antigo de que temos conhecimento sobre o nascimento de gémeos siameses em Portugal é de 1660. De facto, de acordo com o respectivo assento paroquial:



“No mesmo dia acima declarado (19.03.1660) nasceram nesta vila três crianças todas fêmeas de um ventre filhas de um … Francisco ferreiro e de sua mulher … … as quais levaram água do baptismo e duas delas vieram uma pegada na outra de modo que tinham um só ventre e quatro braços os quais se abraçavam ao pescoço do outro e duas cabeças e quatro pernas de modo que eram duas criaturas perfeitas somente terem uma conexão entre si unidas desde as coxas até quase os ombros as quais vi com meus olhos e as enterrei na capela do espírito santo desta vila (res admirabilis visu) e por me parecer cousa invulgaris lancei(?) aqui este termo o qual assinei no dezanove de março de seis centos e sessenta
Domingos Carvalho
[vii]
(Barcelos, Freguesia de Santa Maria Maior / Arquivo Distrital de Braga / (Registo Civil) /
Concelho Barcelos / Freguesia Barcelos (Colegiada) / Anos 1570-1610 /Livro Nasc / Nº 1)


Um outro caso de gémeos siameses aconteceu, em 1704, no lugar de Casal de Deus, Freguesia de S. Pedro (então, S. Pedro da Beberriqueira), do concelho de Tomar. 
O espanto perante tais casos fica bem patente na anotação à margem do respectivo assento de baptismo:

"Casal de Deos / Monstro / Maria e outra /criança fêmea / ambas pegádas"




Não causou menor espanto o nascimento de duas gémeas siamesas ocorrido em 4 de julho de 1720 em Monserrate, Viana do Castelo.
Aqui, o espanto traduz-se por um detalhado assento, no qual o padre descreve as características do fenómeno, detalha as diligências relativas ao enterramento, face aos problema suscitados pelo facto de uma delas ter nascido morta e, por isso, haver dúvidas se haviam de ser ambas enterradas ou não em chão sagrado. Mas, o verdadeiramente interessante do assento é o facto de o padre o ter ilustrado com um desenho, aliás de boa qualidade mostrando como as meninas se encontravam ligadas pelo ventre.





File:ChangandEng.jpg
Chang e Eng, os Gémeos siameses. (https://commons.wikimedia.org/wiki/File:ChangandEng.jpg)






[i] Zigoto é a célula que resulta da fecundação do gâmeta feminino pelo gâmeta masculino. Ovo.
[ii] O médico-cirurgião português António Gentil Martins separou sete pares de gémeos siameses, com nove sobreviventes. (in http://medicosportugueses.blogs.sapo.pt/1693.html, consultado em 16-8-2014).
[iii] Alegislação portuguesa permite a interrupção voluntária da gravidez, no caso de malformação do feto, até às 24 semanas.
[iv] Suficientemente grande para possuir duas capelas: “huma Ermida de Santo Amaro dentro do Lugar do Carvalhal, e outra de Sam Romão da parte de fora do mesmo lugar; ambas pertencem aos moradores deste mesmo Lugar”.
[v] Diz o vigário que esta parte da Vila de Aljubarrota tinha 65 vizinhos e 938 pessoas. Há, aqui, um óbvio lapso. O número de pessoas, a estar correcto, refere-se, certamente, à totalidade da paróquia.
[vi] Usamos, aqui, a transcrição do original tal como consta em Memórias Paroquiais, 1758, Volume III, João Cosme | José Varandas, (Introdução, Transcrição e Índices), edição Caleidoscópio e Centro de História da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2011.
[vii] Transcrição nossa, a partir da imagem digitalizada, em www.familysearch.org.