segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

ATAÍJA, 7 OUTUBRO DE 1810


Tal como a minha avó me contou à lareira, em longos serões de Inverno, naquele tempo em que não havia electricidade e em casa nos iluminávamos com a luz da candeia ou, simplesmente, com a que vinha da lenha a arder na lareira e o serão se iniciava, por isso, ao pôr-do-sol, o povo fugiu aterrorizado à notícia da chegada dos franceses, escondendo-se nos matos altos que havia na borda da serra e nos vales.
Os franceses desapontados, gritavam falsamente fingindo-se quem não eram: Maria! Vem-te embora que já lá vão os franceses! Mas, ao que parece, a prudência imperou e não tenho notícia de homem que tenha caído na esparrela, nem de virgem que, neste interim, tenha deixado de o ser, ao menos, a mãos estrangeiras. Se é verdade o que contava a minha avó (que o terá ouvido ao seu avô que, esse, foi contemporâneo dos acontecimentos) na Ataíja não houve mortos pelo que a aldeia terá, assim, escapado a um flagelo que na nossa região atingiu dimensões quase incompreensíveis e de onde resultou uma diminuição da população para menos de metade.
Os franceses, continuava a minha avó, entraram, assim, livremente, pelas casas abandonadas e comeram o que quiseram e tomados daquela malvadez de que, julgava eu, só os franceses são capazes (vim, mais tarde, a perceber que todos os exércitos são iguais), tombaram e arrombaram talhas e pias de azeite que eu, empolgado com a vivacidade da descrição, via a correr em rios pelas ruas da aldeia e foram-se às arcas e trouxeram-nas para a rua e deram de comer aos cavalos, trigo, cevada, aveia e milho. Levados a beber água na Lagoa Ruiva os animais rebentaram pelo inchar dos grãos secos e, partidos os franceses, era grande a mortandade de cavalos e mulas em todo o redor da lagoa.
Estas histórias impressionaram-me fortemente, de tal modo que se seguiram sonhos agitados durante os quais, por mais de uma vez, em luta com os malvados franceses, cheguei a cair da cama. Mas, essas vivas descrições ajudaram mais ao meu gosto pela História que os professores todos que, depois, havia de ter.

Quando é que os franceses estiveram na Ataíja e fizeram as tropelias de que falava a minha avó Maria Lourenço?

Provavelmente, passaram por lá por mais de uma vez entre 1808 e 1811 mas, de certeza, por lá passaram no curto período entre a tarde do dia 6 e a manhã do dia 8 de Outubro de 1810 e foi então, certamente, que cometeram as pilhagens e destruições de que me falou a minha avó.

A Batalha do Bussaco tinha tido lugar em 27 de Setembro e de seguida, os exércitos anglo-portugueses iniciaram a sua retirada para as Linhas de Torres, reunindo-se em Leiria de onde partiram no dia 6 de Outubro, de manhã, dividindo-se em três partes, uma das quais seguiu por Alcobaça e Óbidos, a outra pela Estrada de D. Maria I (actual IC 2), a caminho de Rio Maior e Alcoentre e a terceira, por Tomar, para Santarém.
Logo atrás, vinham os Franceses que saquearam a cidade de Coimbra abandonada e, no dia 7 (há, precisamente, 199 anos), Soult já estava nas Pedreiras e Lamotte na Calvaria, de onde enviou patrulhas até Alcobaça, onde ficou a brigada do general Ornano e, no dia seguinte, todo o grosso do exército estava acampado entre Porto de Mós, Molianos e Candeeiros, com Montbrun instalado “à direita dos Molianos” com infantaria e artilharia. Ainda no dia 8, as primeiras tropas puseram-se em marcha para Rio Maior.

Wellington, adoptou na retirada uma política de terra queimada, destruindo tudo o que pudesse ser aproveitado pelo inimigo, os franceses, esses, possuíam uma logística mínima e alimentavam-se e alimentavam os cavalos do que conseguiam pilhar nos locais por onde passavam.

Houve, pois, uma primeira destruição provocada pelos exércitos portugueses e ingleses o que terá provocado o desespero dos franceses, fortemente castigados com mais de 5.000 mortos numa manhã no Bussaco e, muitos mais, fracos e doentes que foram ficando pelo caminho, incapazes de acompanhar as marchas forçadas. A fome e a desorientação provocada pelos conflitos entre os generais e um incompreensível desconhecimento do terreno que obrigava Massena a “navegar à vista” e a dar ordens e contra-ordens, também não hão-de ter contribuído para elevar a moral do exército,

Entende-se, assim, o desprezo amargo que ressalta das palavras do General Koch nas suas “Memórias de Massena”: “É impossível ver uma região mais miseranda que a que vai de Carvalhos[i] a Rio Maior; Candeeiros e Moliano não têm, sequer, o aspecto de lugarejos, e só apresentam meia dúzia de péssimas cabanas esparsas numa planície nua e árida onde não há cereais nem forragem nem água”.

NOTAS:
[i] Carvalhos, é o sítio que conhecemos por Pedreiras
A ler: Leiria no Tempo das Invasões Francesas, Jorge Estrela, Gradiva, Lisboa, 2009


(Este texto foi nicialmente publicado neste blog em 07-10-2009)

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Quando se jogava futebol na Ataíja de Cima

 


Arrumações nas estantes permitem-nos encontrar papéis de que já não nos lembrávamos ou julgávamos desaparecidos.

E, eis que encontrei um recorte de jornal com uma foto e um texto sobre o Ataíjense, que motiva este quarto post sob o título “Quando se jogava futebol na Ataíja de Cima”.
Este é um recorte que andava perdido há mais de onze anos pois, de outra maneira e para respeitar a ordem cronológica, teria sido ele o objecto do primeiro post sobre este assunto que publiquei em 13 de Novembro de 2009 ((VER AQUI).

No dia 3 de Fevereiro de 1994, sob o título “Carolice Ajuda Ataíjense”, o Correio da Manhã dava destaque ao Grupo Desportivo e Recreativo Ataíjense com uma fotografia da equipa no alto, a 2/3 da página e, no texto, fruto de uma conversa com o secretário Manuel Luís, um breve resumo da história do clube, as ambições desportivas e os projectos para o futuro.

Agora, quando há projectos para transformar o Estádio da Rã numa coisa nova, diferente, capaz de permitir uma utilização desportiva mais diversificada e para mais pessoas, é justo lembrar os precursores.


Na foto, na fila de cima, da esquerda para a direita: Paulo Rui, Aníbal Tomé, Vítor Ribeiro, Rivelino Sousa, Pedro Vitorino, Carlos Sousa, José António (Tano), Vítor "Lagarto" e os dirigentes, Francisco Salgueiro (presidente), Manuel Luís (secretário) e José Vigário Bernardino (tesoureiro).
Na fila de baixo, da esquerda para a direita: Luís Vigário, Sérgio "Galinha", Sérgio, Gualter Constantino, Pedro Machado, Diamantino Quitério (jogador/treinador) e Ramiro Sousa.

Com agradecimentos ao Hélder Matias pela ajuda na identificação dos retratados.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Centro Pastoral e Casa de Velório

 


Em 28 de Janeiro do corrente ano demos conta do início da construção do Centro Pastoral e Casa de Velório

Agora, decorridos que estão cerca de oito meses em que os trabalhos, apesar de alguns constrangimentos causados pela pandemia, continuaram em bom ritmo, já se vislumbra com nitidez o que vai ser essa obra, a mais ambiciosa e dispendiosa a que os ataijenses meteram ombros.

A obra está a entrar em fase de acabamentos, pelo que a comissão tem em curso mais uma ronda de recolha de fundos que, mais do que nunca, carece da colaboração de todos, porque a obra é de todos. Lembremo-nos que a pandemia limitou fortemente as acções de recolha de fundos, designadamente os almoços-convívio e outras iniciativas de grupo, mas que as necessidades de financiamento se mantiveram.

Lembro a quem quiser conhecer ou rever o projecto (que como é normal tem já algumas pequenas alterações), que pode vê-lo na pagina do facebook do gabinete projectista, CSLaureano, Arquitectos, Lda, em:

https://www.facebook.com/1399813913615484/videos/666366993748812

Junto algumas fotos, tiradas no passado dia 10 do corrente mês de Outubro, que dão conta do estado actual das obras:

 

As obras vistas da Rua de Trás

 

Do terraço alcança-se uma larga vista sobre a serra dos Candeeiros


Fachada principal, preservando a memória da casa que foi de Sabino Vigário e Joaquina Baptista



Padieira de porta ostentando a data de 1795, agora integrada na fachada do edifício, lembrando a todos a antiguidade das edificações que existiam no local.

 

O nicho de Nossa Senhora da Graça, obra do final do Séc. XVII ou inícios do Séc. XVIII, o qual havia sido substituído aquando das obras de 2003 e se achava desde então no Adro, encontrou agora um digno lugar, na cabeceira da sala de velório

 

Um secular peso de lagar, que desejo venha ainda a encontrar o seu lugar na obra


quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Maria Mulata

 

 As pesquisas nos assentos paroquiais, em busca da história das pessoas comuns, levam-nos a tropeçar, frequentemente, em pessoas e situações incomuns.

É o caso de Maria, criança mulata, baptizada em vinte e sete de Março de 1786 e enterrada em 20 de Outubro do ano seguinte, em S. Vicente de Aljubarrota.

Vejamos o que dizem os assentos dos seus baptismo e óbito:

Villa

Maria

Aos vinte e sete dias do Mes de Março de mil sete centos outenta e seis; Baptizei e pus os Santos Oleos a Maria filha de Juliana escrava de João Maria Baiana desta villa, e de Pai incógnito. Tocou como Padrinho o Douttor Francisco Correia desta villa e Nossa Sra do Carmo. Tocou com prenda da mesma Theodósio Maria Solteiro desta villa, de que fiz este assento dia mes e anno ut supra

O Cura José dos Santos Rino

Villa

Maria Molla-

ta crioula

Aos vinte dias do Mes de outubro de Mil Sete Centos outenta e outto faleceu dentro desta Parochial Igreija de S. Vicente foi sepultado o Corpo de Maria Mollata Innocente que criava Juliana escrava de Francisco Correia Triaga desta villa teria de idade quinze mezes de que fiz este assento dia mes e anno ut supra

O Cura José dos Santos Rino

 

Há factos em que não podemos deixar de reparar:

Por um lado, na presença de escravos negros em Aljubarrota no final do século XVIII, facto que, aliás, já tínhamos referido anteriormente, noutras postagens.

Por outro, as várias discrepâncias ou ambiguidades que podemos surpreender nos assentos, a começar pela progenitura e a terminar na idade da criança.

No baptismo diz o padre Rino que se trata de uma filha da escrava Juliana que era – o padre não o diz mas tal deduz-se sem esforço – de raça negra, no óbito já não diz que era filha da escrava mas, apenas ou diferentemente, que era criada pela escrava (“que criava Juliana”).

A paternidade, que no assento de baptismo era atribuída a pai incógnito (e de raça branca- o que também não é dito, mas, igualmente, se deduz sem esforço face à alcunha/apelido “molata” (mulata) e, ainda, à anotação na margem relativa à raça: crioula), é no óbito inteiramente omitida o que, aliás, só a ambiguidade do “que criava Juliana” possibilita.

Quanto à idade, declara o padre no assento de óbito que a falecida “teria de idade quinze mezes”. Na verdade, e admitindo que a criança foi baptizada logo nos primeiros dias de vida, como era costume, a sua idade à data do falecimento era de dezanove meses.

Ora, numa freguesia onde em cada um dos anos em causa (1786 e 1787) foram baptizadas apenas 16 crianças, das quais uma única era de diferente raça e filha de escrava, não é crível que o padre possa razoavelmente ter esquecido tais factos ou a sua data. Assim, temos de concluir que o padre mentiu deliberadamente quando disse que a criança falecida teria de idade quinze meses, quando sabia muito bem que tinha dezanove (e, dúvidas tivesse, sempre poderia ter ido ao livro dos assentos de baptismo conferir), como mentiu ao usar a fórmula ambígua “que criava Juliana”, quando bem sabia que a criança era filha da escrava e, certamente, de quem mais. Vejamos:

Diz-se no baptismo que a Juliana é escrava de João Maria Baiana. Não sabemos quem era este João Maria Baiana mas temos por certo que, onde se diz Baiana, bem se podia dizer Baena, apelido que, ao contrário daquele, nos aparece com frequência quando investigamos a Aljubarrota do final do século XVIII, onde João Baptista de Oliveira Baena foi Doutor, Cavaleiro Professo na Ordem de Cristo e “serviu a Sua Majestade nos Lugares de Letras”, Manuel do Rosário de Oliveira Baena foi capitão da Ordenança da vila, e o Teodósio Maria, que no baptismo da Maria Mulata tocou com prenda de Nossa Senhora do Carmo, era também um Oliveira Baena.
Entretanto, a escrava mudou de dono e, enquanto no baptismo era do João Maria Baiana, no falecimento da filha já era de Francisco Correia Triaga o qual, aliás, era o mesmo Doutor Francisco Correia, de seu nome completo Francisco Correia Triaga de Mendonça, que tinha apadrinhado a Maria e era familiar do Doutor Silvestre Torres Correia Triaga e do Capitão Joaquim Bernardes (ou Bernardo) Correia Triaga.

 

Talvez não seja especular demasiado se concluirmos que os erros, omissões e imprecisões do padre, foram uma contribuição deliberada para desvanecer o que, à luz do pensamento e preconceitos da época, foi o infeliz resultado do envolvimento de um membro de uma das mais importantes famílias locais com uma escrava negra.

 

 

Nota:
Sobre as elites locais de Aljubarrota no final do século XVIII podem ver-se neste blog, entre outros, os textos:
Inquirições Sobre a Pureza do Sangue do Reverendo Francisco Xavier da Veiga, in https://ataijadecima.blogspot.com/search?q=Inquiri%C3%A7%C3%B5es+da+pureza+do+sangue
e Capitães de Aljubarrota, in: https://ataijadecima.blogspot.com/2014/03/capitaes-de-aljubarrota.html

domingo, 12 de julho de 2020

Restaurante Doces Sabores

Um excelente restaurante na Ataíja de Cima





O texto com o título "Doces Sabores", aqui publicado em 28 de Março de 2011 e actualizado em 7-6-2018, tornou-se um dos textos mais vistos deste blog, contando actualmente com cerca de 4000 visualizações, sendo certo que não há semana em que não venha alguém consultar o texto, sinal de que o Doces Sabores é cada vez mais conhecido.

Visto o tempo decorrido de mais de noveanos sobre o texto original e dois anos sobre a sua actualização, é altura de, de novo, o actualizar até porque, bem o sabemos, um tal tempo é mais do que suficiente para mudar tudo num restaurante. Adiante-se, desde já que, no Doces Sabores, se alguma coisa mudou foi para melhor.

O antigo restaurante Apeadeiro, que Francisco Vigário Salgueiro abriu após o seu regresso da emigração em França, foi objecto de profunda remodelação e modernização em 2010 e reabriu, no início de 2011, sob a direcção de sua filha Silvie e com o novo nome de "Doces Sabores".

Muito bem situado, ao Km 98 do IC2, à entrada da Ataíja de Cima e junto de um importante conjunto de empresas que, pelo menos ao almoço, lhe fornecem a maioria dos comensais, no entroncamento com a Estrada do Lagar dos Frades (Estrada Municipal n.º 553), com um amplo parque de estacionamento e uma vista privilegiada sobre a Serra dos Candeeiros, é dotado de salas separadas, uma para pastelaria/café e outra para restaurante, esta com design e decoração da autoria da conhecida designer de interiores Patrícia Carvalho (http://www.patriciacarvalho.pt/), uma sala relativamente pequena, acolhedora, com decoração e mobiliário simples mas confortável, que tem resistido muito bem ao decurso do tempo.

Pouco depois da reabertura a gestão passou para a responsabilidade de Criações Gourmet e a cozinha foi confiada à direcção do Chef Carlos Roxo.

Desde então o Doces Sabores, que temos frequentado com regularidade, vem-se confirmando como um dos melhores restaurantes da região, onde a preços muito razoáveis se pode comer comida simples e bem confecionada, mas também carnes maturadas ou peixe no pão e saborosas sobremesas e, porque os olhos também comem, tudo empratado e apresentado com cuidado e gosto e suportado num serviço eficiente e simpático.

Sabemos como os tempos que atravessamos foram e estão a ser particularmente adversos para toda a indústria do turismo e serviços de restauração e similares. Para fazer face à dificil contingência o Doces Sabores passou a dispôr de um serviço de Take Away, não tendo, nunca,deixado de colocar os seus serviços à disposição dos seus clientes.

Por razões pessoais ainda não pude lá voltar depois do início da pandemia. Espero fazê-lo em breve e sair de lá satisfeito, como sempre. Entretanto, para os que não conhecem, deixamos aqui a nota de que o Doces Sabores tem no Google Maps um total de duzentas e doze comentários, na esmagadora maioria (e, em nossa opinião) merecidamente elogiosos, o que lhe dá a excelente apreciação de 4,3 valores em cinco.

Tal como no texto original de 2011 e na actualização de 2018, posso terminar dizendo que, em termos de relação qualidade/preço, o "Doces Sabores" merece a nota de MUITO BOM!

O "Doces Sabores" é um estabelecimento que valoriza a Ataíja de Cima.


quarta-feira, 1 de julho de 2020

Um cirurgião no Carvalhal


Em 27 de Outubro de mil oitocentos e dois, já lá vão quase duzentos e dezoito anos, foi enterrado dentro da Igreja Paroquial de São Vicente de Aljubarrota, António Francisco da Silva, casado, com Luísa Francisca, moradores na Ataíjade Baixo.

Era Pároco de S. Vicente o Cura Thomás de Aquino da Costa que foi, de todos os padres que paroquiaram a freguesia nos últimos duzentos e cinquenta anos, o de melhor caligrafia. Uma letra bonita e clara, que nos permite ler sem a mais leve dúvida tudo o que escreveu, para grande sorte de todos os que escarafuncham nos assentos paroquiais, à procura de pedacinhos da história da gente comum.

Sobre o morto, o padre nada nos diz para além do seu nome, do nome do seu cônjuge e da localidade onde residiam. Não sabemos qual era a sua profissão, que idade tinha, nem porque morreu, ou onde nasceu, ou quem foram os seus progenitores, se deixou filhos ou não.

Em contrapartida, explica-nos detalhadamente as razões por que o António Francisco da Silva faleceu sem sacramentos e, apesar disso, foi enterrado dentro da igreja paroquial.
Para percebermos as razões é preciso lembrar-nos de que, em 1802, nos encontrávamos, ainda, em pleno Antigo Regime, não havia separação entre a Igreja e o Estado, a religião oficial do país, obrigatória para todos os nacionais, era a religião católica e havia multas para quem fosse responsável pela não administração dos sacramentos ao moribundo. 
A preocupação do padre era a salvação da alma do falecido e, por isso, o seu estado de graça. Daí, a longa explicação para o facto de ter falecido sem sacramentos:

“... não recebeo os sacramentos por afirmar o cirurgião Manuel Luis Cordeiro do Carvalhal Freguesia de Prazeres desta dita Villa ...”

E, eis aqui duas passagens interessantes: uma, que o doente foi assistido por um cirurgião, outra, que no Carvalhal havia um cirurgião.

Um cirurgião, naquele tempo, não era a mesma coisa que um cirurgião hoje. Desde logo, “... a cirurgia era extra-universitária. Aprendia-se fora da Universidade – o que não impedia que um médico pudesse também ser cirurgião”[i]. O doente era visto “como um corpo dividido em duas partes, interna e externa, sujeitas a diferentes patologias, alvo da atenção diferenciada do Médico e do Cirurgião”[ii] e, como se isso não bastasse, a situação era, na realidade, bastante pior “… ao lado dos médicos saídos da única Faculdade do País, a da Universidade de Coimbra, … havia …os cirurgiões mata-sanos ou inchacorvos, os barbeiros sangradores, os curandeiros idiotas, os algebristas, os boticários, as parteiras, os oculistas, os dentistas…”[iii]

No final do século XVIII já há notícias da existência de, pelo menos, dois cirurgiões no concelho de Aljubarrota. Um no Carvalhal, identificado num assento de 1785 como Manuel Vicente, provavelmente o mesmo Manuel a que este assento se refere e, outro, o cirurgião do partido, quer dizer, o cirurgião contratado pela Câmara do Concelho, também com o encargo de assistir gratuitamente aos mais pobres, o qual foi identificado em 1784 como João da Silva e em 1788 como José da Silva, tratando-se, certamente, da mesma pessoa. Em 1803, há notícia de um outro cirurgião no concelho de Aljubarrota e freguesia de S. Vicente: António Ribeiro, nos Chãos.

O ensino da Cirurgia era, naquele tempo, inteiramente distinto do ensino da Medicina que se ensinava na Universidade de Coimbra e conferia o grau e as vantagens de Doutor, enquanto a cirurgia só ganhará foros universitários com a criação da escolas médico-cirúrgicas de Lisboa e Porto, pelo governo presidido por Passos Manuel, em 1836.

O ensino da cirurgia fazia-se em ambiente hospitalar, em especial no Hospital Real de Todos-os-Santos e, depois do terramoto, no Hospital de São José, em Lisboa.

Para a admissão no respectivo curso exigia-se, além do mais, que os candidatos a cirurgiões soubessem ler e escrever português. Esta exigência não é de somenos. O ensino universitário fazia-se, então, em latim[iv]. O ensino da cirurgia, que era essencialmente um ensino prático, era feito nas línguas nacionais. Os estudantes de medicina eram gente das classes abastadas que tinha podido dedicar-se à aprendizagem prévia do latim. Os cirurgiões eram, na generalidade, pessoas de origem popular, barbeiros, como o francês Ambroise Paré[v] ou o português Manuel Constâncio[vi]


E, o nosso padre continua com as explicações:

“... que o dito defunto não tinha necessidade de Sacramentos porque a moléstia não era de perigo e por certificar isto a dita sua mulher e filhos, que querião sacramentare elles me não vierão chamar para lhe ministrar os Sacramentos, e sem embargo de tudo isto da dita moléstia morreo ...”

Infelizmente e ao contrário do que acontece noutros casos, desta vez o padre não dá qualquer indicação sobre a natureza da moléstia de que sofria e de que morreu o falecido. Ficamos, apenas, a saber que o seu estado de saúde se agravou repentinamente.

Finalmente, o padre conclue:

“... e informando-me com pessoas de fé achei não haver culpa em nenhum dos sobreditos”

Ou seja, não assaca responsabilidades ao cirurgião pelo óbvio erro de diagnóstico e do mesmo passo inocenta os familiares, livrando-os da responsabilidade de não terem chamado o padre, por confiarem no cirurgião. 
É que a lei previa multas para os familiares responsáveis pelo não chamamento atempado do padre para administração dos Sacramentos ao moribundo e, em caso de negligência ou culpa, essas multas eram efectivamente cominadas. Foi o que aconteceu, por ex., a Rosa Maria, mulher de Manuel de Sousa Tomásio, dos Casais de Santa Teresa, falecido em 22-7-1804, a qual foi condenada porque "não chamou a tempo em que ele estava em seo juízo para eu lhos hir administrar"

Neste caso, como em geral em todos que contenham matérias que envolvam terceiros, as declarações do padre são abonadas por testemunhas:

“Testemunhas: Miguel Francisco e António Vicente da dita Ataija ...”



[i] Salvador Dias Arnaut, citado in José Manuel Vasconcelos, “Antecedentes da Escola Médico-Cirúrgica do Porto. A caminho da fusão da Medicina com a Cirurgia. Etapas da afirmação institucional de uma profissão” História. Revista da FLUP Porto, IV Série, vol. 4 - 2014, pp 241-269, PDF disponível online em http://ojs.letras.up.pt/index.php/historia (consultado em 26-06-2020)
[ii] Ribeiro Sanches, citado in José Manuel Vasconcelos, loc. cit.
[iii] Idem, idem.
[iv] O que permitia que professores, alunos e todo o conhecimento universitário, circulassem facilmente pela Europa. Curiosamente, na actualidade caminhamos para situação semelhante, com cada vez mais cursos universitários a serem ministrados em inglês, o latim do nosso tempo.
[v] Fiolhais, Carlos “Sobre o início da cirurgia no mundo e em Portugal” conferência, Revista Portuguesa de Cirurgia, n.º 29, Lisboa jun. 2014, disponível online em http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1646-69182014000200009
(consultado em 1-7-2020)
[vi] Graça, L. – Valorização Técnica e Social da Cirurgia no Antigo Regime – disponível online em https://www.ensp.unl.pt/luis.graca/textos69.html (consultado em 1-7-2020)


terça-feira, 16 de junho de 2020

Dois Ataijenses na Amazónia



No final do século XIX e princípios do século XX, muitos portugueses rumaram à Amazónia, tentando a sorte de colher algumas migalhas das fabulosas riquezas criadas pela exploração da borracha, riquezas essas que fizeram da Manaus daquele tempo uma cidade moderna e faustosa, onde a electricidade e outros benefícios da civilização chegaram mais cedo do que à maior parte do mundo.

Desses tempos de ouro restam ainda em Manaus diversos testemunhos, com destaque para Mercado Municipal e o Teatro Amazonas, este inaugurado em 1896, um grande e luxuoso teatro, ao nível dos melhores da Europa (https://cultura.am.gov.br/portal/teatro-amazonas/)

Em 1912, também Alberto o protagonista do romance A Selva, de Ferreira de Castro, tomou rumo semelhante e encontrou trabalho no seringal Paraíso.
Os leitores saberão das condições de quase escravatura em que decorria a vida dos seringueiros. Àqueles que o não sabem, recomendo vivamente a leitura desse grande romance que é A Selva.

Pouco antes, nos fins do ano de 1911, tinha sido a vez de os irmãos António Ribeiro, de 23 anos de idade e Luiz Ribeiro, de 21, naturais e residentes em Ataíja de Cima, requereram passaporte para sair de Portugal com destino a Manaus.

O seu pai, José Ribeiro, era filho de Luiz Ribeiro, carpinteiro, filho de José Ribeiro e de Guilhermina Maria, dos Casais de Santa Teresa que casou na Ataíja de Cima com Luísa Coelho ou Luísa Heitor, esta com raízes ataíjenses mais antigas, filha de Joaquim Heitor e Ana Umbelina.
Do Joaquim Heitor, nascido em 1789, sabemos ainda que era filho de Manuel Coelho e Maria Vicente e neto paterno de Luís Coelho e Maria Heitor e materno de Manuel Vicente e Maria Cordeiro.

O Luís Ribeiro e a sua mulher Luisa Coelho, tiveram outros filhos. Dez, no total, se não me engano. Seis raparigas, três de nome Maria, uma Felizarda, uma Francisca e uma Joaquina e quatro rapazes: João, João, José e Luiz.
Das Marias, sabemos que uma, nascida em 20.4.1848, faleceu com apenas três meses de idade. As outras duas Marias não as conseguimos localizar nos assentos paroquiais de casamento e óbito. Terão tido destino semelhante à irmã, como era comum naquele tempo ou talvez ainda as encontremos ou a uma delas em buscas mais atentas.
A Felizarda, a Francisca e a Joaquina casaram e tiveram descendência. Três, três e quatro filhos, respectivamente.

Do modo como Luís Ribeiro, o seu filho Luís Ribeiro Júnior e o seu neto José Ribeiro, através de sucessivas compras que se prolongaram por cerca de 100 anos, construíram uma das maiores Casas da Ataíja de Cima, a qual atingiu o seu apogeu em meados do século XX, quando abrangia mais de oitenta prédios rústicos e urbanos, já falámos no texto A Formação de Uma Casa Rural Ataijense 
Mas, porque é que foi o Luiz, o penúltimo dos filhos e o mais novo dos homens, a suceder a Luiz Ribeiro na posse e direcção da casa familiar?

Pois, pela razão de que era o único filho homem vivo.

Um João havia falecido inocente. O outro faleceu em 1877, solteiro, com a idade de 24 anos.
O José casou com Maria de Jesus, filha de João Maria Cláudio e de Maria da Graça e tiveram dois filhos: o António e o Luiz, os aventureiros que foram até à Amazónia.
Quando se casaram, em 9 de setembro de 1889, já o filho António, (nascido em 22 de Agosto de 1888) tinha mais de um ano de idade. Oito meses depois, em 1.5.1890, nasceu o segundo filho, Luiz como o seu avô e o seu tio. Mas, nessa altura já o pai José havia falecido, cerca de um mês antes, em 7.4.1890, depois de um curto casamento de apenas sete meses.

A Maria de Jesus achou-se assim, uma jovem ainda na casa dos vinte anos, viúva e com dois filhos pequenos.

Aquele não era um tempo, nem a Ataíja o lugar, para viúvas com filhos e, a Maria de Jesus, ao fim de trinta e dois meses de viuvez, em 8.12.1892, casou, em 2ªs núpcias, com Porfírio dos Santos, um sapateiro de 24 anos com quem teve uma filha, Joaquina, que foi conhecida por Joaquina Porfíria.

A ligação à família do marido, se é que ainda existia, há-de ter praticamente cessado por via deste segundo casamento.

Estas vicissitudes ajudam-nos, talvez, a entender melhor as razões que terão levado os filhos do seu primeiro casamento a emigrar.

Não sabemos qual foi a vida e ocupação dos nossos conterrâneos nas paragens amazónicas. Mas, sabemos, por memória familiar da descendência do Luiz, que o António aí faleceu, vítima da febre amarela, uma das doenças que, com a malária e a hepatite e, ainda, os ataques de animais selvagens como onças e serpentes, matou milhares de seringueiros.

Em data incerta, após a morte do irmão, Luiz Ribeiro abandonou a Amazónia e instalou-se no Rio de Janeiro, na Tijuca, onde se estabeleceu com um próspero negócio de alfaiataria e tinturaria.
Casou-se, teve pelo menos uma filha e faleceu em 12 de Maio de 1979, no Rio de Janeiro, com a bonita idade de 89 anos.


Luis Ribeiro no Rio de Janeiro, com a sua mulher Isabel Alves e a filha Hilda Alves Ribeiro





segunda-feira, 8 de junho de 2020

Mais Alcunhas Ataíjenses



O post Alcunhas Ataíjenses, aqui publicado em 21-05-2020, mereceu muitas reacções dos leitores, com alguns comentários no blog e muitos outros nas diversas partilhas no Facebook.
Isso é muito bom e sabe muito bem. Quando escrevemos e publicamos não sabemos o que pensam as pessoas que nos leem. Desta vez não foi assim. As pessoas manifestaram-se e mostraram-se agradadas e isso é um forte incentivo para continuar.
Muito obrigado.

Várias pessoas disseram que eu me tinha esquecido de uma ou outra alcunha. Não foi o caso. Como disse, a minha lista de alcunhas ataijenses é muito extensa. O que publiquei foi, apenas, uma selecção.
Mas, tentando satisfazer a curiosidade, vou de seguida tratar de algumas dessas alcunhas “esquecidas”.

Botas Alc. – Quando eu era pequeno, havia dois irmãos Botas: Maria e Manuel.
O Manuel era pastor em casa de Francisca Crispa, uma abastada proprietária da Ataíja de Baixo que foi bisavó do Joel Pereira.
A Maria Botas e o marido Matias de Horta, estavam, nesse tempo, já velhos e falidos e internados no Asilo, em Alcobaça. Lembro-me, era eu muito pequeno, de os ter visto, nas suas vestimentas asilares, de um tecido cinzento semelhante ao das fardas dos soldados, numa visita que fizeram a casa do meu avô que, aliás, ainda era parente dele.
Eram de família abastada, à escala local, tendo sido herdeiros e proprietários da "Serrada", a maior propriedade que havia à saída da aldeia, a caminho do lagar dos frades e da lagoa ruiva, propriedade que, como as demais, perderam por falta de tino, tendo na queda arrastado o Manuel, irmão dela, que era um simples.
Ao que parece, a Maria Botas e o Matias de Horta eram bastante avessos ao trabalho e as coisas lá em casa, passar-se-iam, mais ou menos, assim (reproduzo rigorosamente, como ouvi à minha avó):
Um: - O que é que comemos hoje?
O outro: - Mata-se o galo!
O primeiro: - E eu vou buscar (à taberna) cinco litros!

Cai-bem Alc. - Filho de Joaquina Méla e Manuel Sarrador (e já temos três alcunhas de uma assentada).
A alcunha deve-se ao facto de ter nascido com um defeito físico nos membros inferiores que hoje, sexagenário, o faz andar cambaleante e, quando pequeno, o fazia cair com frequência.
Da alcunha Méla, da mãe, não conheço a razão. De seu nome Joaquina, era filha de um António dito O Orelha e de uma outra Joaquina, dita Porfíria, por ser filha de um Porfírio dos Santos. Algumas das irmãs da Joaquina Méla tinham a alcunha de Traineira que, julgo, já herdaram da mãe (isto de uma pessoa ter mais de uma alcunha também era relativamente vulgar).
Traineira, sabemos o que é: um barco grande que balança nas ondas. Se bem me recordo de como era, em jovem, a tia mais nova do Cai-Bem, Traineira é uma alcunha que faz algum sentido.
O Sarrador, alcunha do pai do Cai-bem é, obviamente, da profissão. O Manuel Rebelo, Manuel Sarrador, veio de Turquel e construiu ou reconstruiu na Rua de Trás, a casa onde o Cai-Bem ainda vive e tem sobre a padieira uma bela pedra da era com os símbolos da profissão. Sobre isso há no blog o texto Brasões Plebeus .
De feitio conflituoso, o Sarrador envolveu-se mais de uma vez em zaragatas e morreu na sequência de uma delas. Assassinado, dizem alguns.

Cordeira Alc. – Maria Cordeira. Minha tia por afinidade, casada com o meu tio António Sapatada (que tinha esta alcunha por ser sapateiro). De seu nome completo Maria Cristina Coelho de Sousa, mas por toda a gente conhecida por Maria Cordeira, sabia ler e escrever, coisa rara naquele tempo e mais rara ainda, entre as mulheres.
Estou a vê-la, na casa de fora, aos Domingos, depois da missa, a receber um corrupio de mulheres a quem lia e escrevia as cartas dos e para os maridos, filhos ou namorados sazonalmente emigrados, “lá para Lisboa”.
A alcunha devia-a ao facto de ser filha de João Cordeiro, natural do Cadoiço (onde ainda reside a grande parte da família) que viveu na Ataíja de Cima na casa que ainda existe, dentro de um pátio, ao lado do Salão Cultural Ataíjense.
Este João Cordeiro merece ficar na memória dos ataijenses porque doou uma antiga casa, que a ele servia de palheiro, (ficava no adro da Capela, frente ao Salão) para aí se fazer a primeira escola da Ataíja de Cima, a qual funcionou entre 1933 e 1973 e onde estudei até à terceira classe.

Faxia Alc. - Francisco Machado, de alcunha o Faxia, a qual se transmitiu a filhos e netos. Foi casado com Luísa Gomes, esta natural dos Casais de Santa Teresa. Era irmão de Ana Coelho (Caseira), casada com José Lourenço e de Emília que casou nos Casais de Santa Teresa.
Foi criado, com os irmãos, numa casa de alpendre, do século XVIII e onde viveu, de empréstimo a minha tia
Papoila. Ficava no Fundo da Igreja à entrada da Rua das Hortas e foi demolida para, no seu lugar, se construir a de Manuel Matias.
Não conheço qualquer explicação para a alcunha e as palavras faxia ou fachia não constam em nenhum dos dicionários consultados.
Já quanto a
Caseira, não havendo por aqui quintas e, portanto, não havendo caseiros, sobra para a alcunha o significado óbvio de pessoa que fica ou gosta de ficar em casa. Como parece que aqui acontecia.
Papoila, era a alcunha porque foi conhecida a minha tia, irmã mais velha do meu pai. Ao que parece, por ser, tal como a flor campestre, um pouco leve (das ideias).

Mosca Alc. – António Faustino Ribeiro. A alcunha deveu-a a um sinal que tinha com a configuração do insecto.
Foi proprietário da primeira moto que existiu na Ataíja (de marca Norton ou AJS, as memórias dividem-se) e na qual, nos anos de 1950, veio a ter o acidente que determinou o futuro do seu amigo e "pendura" António Sabino que, tendo sofrido importantes sequelas que exigiram uma longa recuperação, com isso se afastou definitivamente do trabalho no campo, tomou conta da taberna que era de Luísa Ribeiro e, assim, iniciou a sua vida de comerciante e industrial.
Sabino, diga-se, também é alcunha. Um dos muitos casos em que o nome próprio do pai se transforma em alcunha dos filhos.
O Mosca casou com a Machicha, recentemente falecida, que era filha da Reboicha.
Machicha é mais uma alcunha cuja razão ou significado desconheço. Parecido é machucho, brasileirismo que significa, além do mais, grande, corpulento. Já maxixe é uma dança brasileira, espécie de batuque e, também, um fruto comestível, o chuchu.
Reboicha, significa mulher pequena e gorda. É uma alcunha familiar nos Casais de Santa Teresa onde há (ou havia) Reboichos e Reboichas.
O Mosca faleceu vítima de homicídio perpetrado por José Dias Pereira (José Tita), movido, este, por infundados ciúmes serôdios.

Rebolão Alc. – José Rebolão era filho de João Maurício e neto de Maurício dos Santos, um dos muitos expostos vindos do Hospital dos Expostos de Lisboa que foram criados e constituíram família na Ataíja de Cima.
Gente pobre, casou com Emília Mariano, natural do Cadoiço e moraram, durante anos, de empréstimo, na única casa de piso de terra que ainda conheci habitada na Ataija de Cima. Era a casa do Quintal da Rosalia, propriedade da Luísa Ribeiro. Ficava na Rua das Covas, onde hoje está um grande casarão, propriedade de um casal holandês.
Posteriormente, o José Rebolão comprou a casa que tinha sido do meu tio-avô António Agostinho, junto à igreja, para onde se mudaram.
No tempo da azeitona, o José Rebolão era o chefe do rancho de apanhadores que trabalhava para a Luísa Ribeiro. Noite escura ainda, percorria a aldeia tocando o corno (o corno era um grande búzio) para acordar os contratados que haviam de estar no olival ao nascer do sol pois, naquele tempo, no campo, trabalhava-se de sol a sol quer dizer, do nascer ao pôr-do-sol, situação que só depois da revolução de 1974 se alterou, passando a usar-se também no campo a jornada de oito horas.
Lembro-me de o José Rebolão ter licença para caçar aos coelhos com pau no que, ao que parece, era mestre.
Quanto à alcunha, dos diversos significados que os dicionários dão para rebolão, não se tratando, no caso de um homem gordo ou corpulento e não se vendo ligação com rebolo (pedra cilíndrica de amolar), talvez ela se deva a alguma gabarolice do alcunhado.
Pois, como se diz no Houaiss, rebolão é pessoa que conta bravatas, fanfarrão.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Alcunhas Ataíjenses


Até à República e à instituição do registo civil obrigatório, a generalidade dos portugueses tinha como única certidão da sua existência os assentos paroquiais de baptismo, casamento quando existia e, finalmente e já sem utilidade para o próprio, óbito.
No baptismo, a criança recebia, apenas, o nome próprio. Era a Maria ou o João, filha ou filho de fulano e beltrana, neta ou neto de cicranos. O apelido escolhia-o o próprio e dava-o ao assento no casamento ou numa escritura de negócio que eventualmente celebrasse. Mas, até lá, era imperioso que os que lidavam com ele, fossem capazes de o distinguir dos demais e, para isso, o nome próprio era insuficiente porque, Marias há muitas.
Daí que ao nome próprio se juntasse um outro, fosse um apelido, um nome ou uma alcunha familiar. Muitas vezes, nomes próprios dos pais tornavam-se apelidos dos filhos, outras vezes, eram as caraterísticas físicas, a profissão ou a terra de origem a impor a alcunha.
As alcunhas, muitas vezes ou quase sempre criadas pela comunidade e à revelia do interessado, quando apontam para características físicas, actos ou factos da vida, são, em geral, malvistas ou consideradas ofensivas pelos próprios.
Sem embargo, as alcunhas foram úteis, necessárias e, às vezes, indispensáveis para identificar devidamente as pessoas e muitas transformaram-se em apelidos e apelidos houve que se transformaram em alcunhas.
Agora, ajudam-nos a compreender melhor as comunidades onde se desenvolveram.
É esse o objectivo desta pequena selecção de alcunhas ataíjenses, escolhidas de entre as muitas dezenas que já inventariámos. Tentámos ir de A a Z, mas faltam-nos alcunhas começadas pelas letras H, I, U e X. Em contrapartida vão cinco alcunhas começadas pela letra M.

Álvaro Alc. - Joaquim do Álvaro (Joaquim, filho do Álvaro) tinha, em Aljubarrota, no Largo da Padeira, uma taberna e, ao lado desta, uma oficina de sapateiro. Nessas casas, funciona hoje o café-restaurante O Torcato (o Torcato é seu filho).
Aí paravam as camionetas da carreira e se faziam os despachos dos cabazes que se enviavam aos homens a trabalhar em Lisboa e se levantavam cartas e encomendas que tinham vindo nas mesmas camionetas da carreira. Nos fundos da loja havia uma divisão, onde os que tinham sido designados pelo Cabo-de-Ordens para transportar o caixão tinham direito a comer uma bucha à conta da família do falecido.
Quando ainda não havia telefone na Ataíja de Cima, telefonava-se para o Joaquim do Álvaro pedindo que mandasse recado, para que a pessoa com quem se queria falar lá estivesse a certa hora. Hora à qual se voltava a ligar para, então, falar com a pessoa desejada.
Badalhoiça Alc. - Desconheço a razão da alcunha. Há, no entanto, uma espécie de figos a que chamam badalhoiços e, segundo o blog Aveiras de Cima – Fotomemórias, também aí, em Aveiras de Cima, badalhoiça é alcunha.
Barra Alc. - A alcunha, transmitida a filhos e netos, já vem, pelo menos, desde Luís Dias ou Luis Dias Vigário que foi soldado no Corpo Expedicionário Português em França durante a 1ª Guerra Mundial, onde terá sido "gaseado". Era filho da Pota Sarrana.
Para o fim da vida era cliente assíduo da taberna e veio a falecer numa noite escura em que se enganou no caminho para casa, tendo sido encontrado morto na beira da estrada para Aljubarrota junto aos Caramelos.
Carvalha Alc. - Feminização de Carvalho. Joaquina Carvalho, era natural dos Casais de Santa Teresa (Casais de Baixo), foi casada com António Matias, falecido aquando da Pneumónica , mãe de Manuel, António e Joaquim Matias e de Delfina, falecida nas mesmas circunstâncias do pai.
Foi proprietária da casa alta do Outeiro.
Uma outra Carvalha, Maria Carvalho de Sousa, filha de João Luís de Sousa e de Rosalia Carvalho, foi freira no Instituto das Franciscanas Missionárias de Maria, com o nome religioso de Irmã Maria Amália Teresa.
Da Serra Alc. - Por ser natural de uma aldeia "de traz da serra". Transmitiu-se a filhas e netas que, apesar de nascidas e criadas na Ataíja, continuaram a ser "da Serra".
Esquininha Alc. - Ou Esquinica. Por Joaquininha, ou Joaquinica.
Frade Alc. - O ti'João Frade fez tropa em Cabo Verde por alturas da Segunda Guerra Mundial. Falando comigo em vésperas da minha partida para cumprir serviço militar na Guiné, sabendo que eu ia fazer escala em Cabo Verde, avisou-me: Tem cuidado Zé! Em São Vicente, até as pedras têm doenças venéreas!
O filho (Zé Frade) herdou a alcunha que era original do pai.
Guilhermina Alc. - Joaquina Guilhermina. Guilhermina era o nome próprio da mãe. Os irmãos, por sua vez, foram conhecidos por Guilhermino
Janita Alc. - Diminutivo de João (aplicável num único caso: João Rosa Dias).
Luísinha Alc. - Diminutivo para Luísa que continua a designar a nomeada, agora septuagenária. É filha do Pato-marreco e mãe do primeiro descendente de ataíjenses a formar-se em engenharia, João Pedro Dias Quitério, actualmente alto quadro no grupo Visabeira.
Mal-das-vinhas Alc. - Grande bebedor, era irmão do meu avô Quitério. A alcunha dever-se-à ao facto de não tratar bem das suas próprias vinhas, deixando-as cheias de ervas daninhas, designadamente, escalracho. Certa vez, interpelado por isso, terá respondido que o vinho nunca lhe tinha sabido a escalracho. Passou dias e noites inteiras na taberna, na Ataíja de Baixo, onde chegava a comer e dormir, bebendo e jogando.
Em dada noite, resolveu encomendar um coelho para a ceia na taberna. A taberneira, vendo o seu estado alcoolizado, achou que se podia aproveitar disso, mas quando chegou com o jantar, ouviu logo o responso: Então Maria! O coelho era coxo?
Mariola Alc. - De seu nome Manuel, era meio-irmão da minha avó paterna. Mariola (patife), talvez por ter sido o responsável involuntário (era ainda uma criança) pela queda da irmã (Marreca), o que lhe provocou a corcunda e o nanismo.
Antigamente, mariolas eram os moços de fretes e os que carregavam e descarregavam os barcos, mais tarde chamados estivadores
Minderico Alc. - Minderico é um natural de Minde. Havia dois Mindericos na Ataíja.
Um deles, Joaquim Constantino, era filho de José Constantino e herdou a alcunha do avô materno, Bento Minderico, do Casal do Rei. O outro, também Joaquim e também oriundo do Casal do Rei, foi casado com uma filha de Alfredo Ângelo, Assunção.
Eis um caso curioso de topónimo originalmente dado como alcunha, posteriormente transformado em apelido e, mais tarde, de novo, em alcunha, como tantas vezes acontecia.
Mira Alc. - Por ser natural de Mira de Aire. Foi proprietário de um olival que ia desde as traseiras do lagar de Luísa Ribeiro até à serra e onde, hoje, estão implantados os "Armazéns São Vicente", de um palheiro que ficava entre a escola e a adega de José Ribeiro e que está, agora, integrado no Adro e da casa e taberna na Rua das Seixeiras que, depois, foram do Petinga.
Deixou a Ataíja de Cima, em 1951, como se vê de uma carta escrita por Joaquina Rosalia a seu marido em 19-5 desse ano: “…José o mira vendeu tudo cuanto ca tinha eu compreilhe dois barris axeios baratos porque são muitos bons são novos so levaram vinho uma vez custaram 85$00 cada um não sei se tu ficaras contente ele já se foi embora para a Mira já cá não tem nada o Olival e a caza baixa é dum Senhor de Lisboa e a caza ca de Cima é do padrinho José maneta…”.
Morena Alc. - Maria da Assunção Gomes de Sousa. Nunca me pareceu especialmente morena mas carrega a alcunha desde pequena. Ficou órfã de mãe antes dos sete anos e a partir daí foi a verdadeira mulher da casa, embora com alguma ajuda da avó e das tias que eram vizinhas. Foi com essa idade que teve de começar a assegurar a lida da casa e a tomar conta dos dois irmãos mais novos. Sempre cantou e canta, muito bem.
Novo Alc. - Quim Novo, para se distinguir do tio, de idade próxima que, por sua vez, ficou Quim Velho desde criança.
Orelha Alc. - Alcunha de António Maria de Sousa, transmitido aos filhos. Um deles, igualmente António Maria de Sousa e, por isso, Júnior, era um pouco exuberante e tinha uma bicicleta, também ela com alcunha: Era o satélite.
Pequena Alc. – (ou Pequeno). Várias pessoas, sem ligação entre si, tinham a alcunha de Pequeno ou Pequena. Não tem a ver com tamanho, mas com o serem as crianças mais novas da família. Era a própria família que assim as denominava, para as distinguir de outro elemento mais velho com o mesmo nome próprio. Por vezes, a alcunha passou aos filhos (Da Pequena).
Qué-Pão Alc. - Assim andava a criança atrás da mãe, pedindo pão (tratava-se de José Maria Felismino, que toda a vida foi conhecido por Zé Qué-pão).
Redondo Alc. - Alcunha comum a dois meios-irmãos da minha avó paterna.
João Redondo era sapateiro e, como era uso naquele tempo, deslocava-se a casa dos clientes e aí ficava durante vários dias reparando, de uma vez, todo o calçado familiar e às vezes fazendo, de caminho, alguma obra nova. Lembro-me dele a concertar o calçado da família de José Ribeiro instalado no alpendre da casa que é hoje da Amélia. Foi casado com uma Emília natural de Aljubarrota e faleceu sem filhos.
António Redondo casou para os Milagres e na família era, por isso, chamado de "António dos Milagres".
Sabino Alc. - O nome próprio do pai transformou-se em alcunha dos filhos José e António e não do Arnaldo por óbvia desnecessidade, devido à singularidade do nome.
Tarasco Alc. - É natural dos Molianos. A alcunha já a trazia da sua terra e significa, diz o DPLP, arisco, impertinente, esquivo.
Veneno Alc. - Alcunha de João Augusto Lúcio, natural do Casal Boieiro, Pedreiras, onde residia e terá adquirido experiência trabalhando na extracção da pedra local que chamávamos de "pedra de cantaria", uma pedra bastante macia que foi usada para ombreiras de portas e molduras de janelas e, durante séculos, para fazer pias de azeite.
Foi o primeiro a explorar o Vidraço de Ataíja e, assim, o iniciador de uma revolução na economia local. Começou nos anos cinquenta do Séc. XX a escavar num terreno onde José Henriques (que foi, também, conhecido por José Neto e José Carago) veio a construir a sua casa, ao lado da actual pedreira “Caramelo 3”, propriedade da empresa Mármores Vigário, Lda, no sítio dos Caramelos.
Zé d’Avó Alc. - Eu próprio. Por ter sido criado entre os 3 e os 10 anos pela minha avó paterna, estando os meus pais emigrados em Lisboa, como leiteiros.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Estado de Emergência

Quando iniciei este blog pensava que iria conseguir que ele fosse, também, uma espécie de jornal da Ataíja, dando conta das notícias do que de importante aí se passasse. Por óbvia incapacidade minha isso nunca foi conseguido e, agora, também já não será tentado.
Sem prejuízo, tem sido possível noticiar alguns eventos e, agora, nestes tempos difíceis que atravessamos, há que dar relevo a notícias que interessam a todos os ataijenses.

Uma, a reorganização a que, para melhor enfrentar a conjuntura sanitária que vivemos, foram sujeitos os centros e extensões de saúde do concelho.
É preciso entender que os recursos são escassos (os recursos são, por definição, sempre escassos) e que o agora decidido tem razõess técnicas que, necessariamente, se sobrepôem aos nossos interesses individuais imediatos.

É necessário confiar nas autoridades de saúde e observar as regras de comportamento individual recomendadas. Só assim conseguiremos ultrapassar as dificuldades actuais.

          Alterações no atendimento de saúde aos habitantes da Ataíja de Cima:

- A partir de segunda-feira, 23 de março, será encerrada a Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados D. Nuno - Extensão Aljubarrota

Para utentes da freguesia de Aljubarrota (e outras) permanece em funcionamento para casos de Vigilâncias Prioritárias e doenças agudas que NÃO SEJAM de âmbito COVID-19 a Unidade de Saúde Familiar Pedro e Inês – Entrada Principal | todos os dias | 08h00 às 20h00 |


Para casos suspeitos de infeção por Covid-19, oriundos da freguesia de Aljubarrota (e outras):

Unidade de Saúde Familiar Pedro e Inês - Receção na lateral direita do edifício da USF | todos os dias | 08h00 às 20h00 | a partir do dia 21 março de 2020

Caso apresente sintomas ou suspeite que possa estar infetado(a), a DGS sublinha que deve ligar para a linha SNS 24 – através do número 808 24 24 24 – e informar sobre a sua situação,


Contactos da Unidade de Saúde Familiar Pedro e Inês:          
          Morada : Rua Hospital, 2460-051 ALCOBAÇA

          Telefone Geral : 262590510


          Email : usf.pedroines@arslvt.min-saude.pt


Mas, para que uns possam ficar em casa, tentando evitar a propagação da doença, muitos outros têm de sair e trabalhar, quer para o atendimento aos doentes quer para satisfação das necessidades básicas de todos.
Muita gente está a dar o seu melhor e muitos estão, esforçadamente, a adaptar-se para dar aos outros tudo o que precisam.

Serviços disponíveis na Ataíja de Cima:

MINIMERCADO:
MORE THAN PRICE
Rua Senhora da Graça, N.º 16, Ataija de Cima
2460-713 Aljubarrota
Horário: 10h00 -19h00

RSTAURANTE TAKE AWAY:
DOCES SABORES - ATAIJA DE CIMA
IC2, KM 98
Ataíja De Cima
Telefone: +351 917 238 545
Horário: 07h00 – 15h00 | 18h30 – 22h30 (segunda a sábado)
Take away: 12h00 – 14h30 | 19h00 – 21h30 (segunda a sábado)
Com serviço de entregas (encomendas ate às 11h30 e 18h30)

FORNECIMENTO DE FRUTA e HORTALIÇAS AO DOMICÍLIO, por encomenda:

Nelson Dias,
Nenhuma descrição de foto disponível.

terça-feira, 31 de março de 2020

Pneumónica, Gripe A e outras epidemias

Nos anos de 1918 e 1919, no rescaldo da primeira guerra mundial, o mundo foi assolado por uma epidemia de gripe provocada por um vírus da estirpe A (tal como a actual gripe) que ficou conhecida por gripe espanhola ou, mais vulgarmente, por pneumónica, a mais mortífera de todas as epidemias da história.

As grandes epidemias são de todos os tempos e a mais famosa delas é, talvez, a peste negra que assolou a Europa no Século XIV e terá reduzido a população europeia a cerca de metade, tendo sido precisos quase duzentos anos para recuperar a população perdida.
Nesse tempo Portugal teria cerca de dois milhões de habitantes.

As pessoas do meu tempo aprenderam na escola sobre as epidemias de cólera-morbo e febre-amarela que afectaram Portugal em meados do Século XIX, entre 1853 e 1857, com gravíssimas consequências, tendo, só em Lisboa, falecido mais de 5.000 pessoas. Quatro anos depois, em 1861, o próprio Rei D. Pedro V viria a falecer de febre tifóide, outra das doenças infecciosas que atormentou o século.

Os navegadores e conquistadores espanhóis levaram para a América Central a gripe, que os índios locais desconheciam, e há quem diga que isso foi uma das maiores causas do quase total desaparecimento daqueles povos.
Em contrapartida, logo na primeira viagem de Colombo, no Haiti, adquiriram esses navegadores a sífilis, doença que era desconhecida na Europa onde se veio a disseminar com tanta rapidez e intensidade que no hospital Real de Todos-os-Santos, mandado construir por D. Manuel I em Lisboa, já havia uma “casa das boubas” para internar os doentes por ela afectados.
Da Europa, a doença espalhou-se rapidamente por todo o mundo e dela sofreram milhões de pessoas, durante 450 anos, até à descoberta da penicilina, em 1941.
Desta doença veio a morrer o rei Filipe IV de Espanha, III de Portugal.
As pessoas da minha geração lembram-se de um homem do Cadoiço que sempre conheci por Joaquim Doente, o qual nasceu cego e com a pele escamosa em razão da sífilis de que o seu pai sofria.
A sífilis atormentou a Europa durante cerca de 450 anos, até à descoberta da penicilina, mais a mais porque, sendo privilegiadamente transmitida por via sexual, a doença acarreta uma forte condenação moral e o estigma do portador, por devasso ou promíscuo.
Aliás, depois de uma forte queda  associada à descoberta da penicilina, a prevalência da síifilis encontra-se em crescendo em vários países, falando a revista especializada de medicina Lancet em milhões de infectados e cerca de 100.000 mortos de sífilis em 2015.

A pneumónica, essa, correu o mundo no final da Grande Guerra num curto período de pouco mais de 18 meses e os seus efeitos foram devastadores:
Terão morrido, em todo o mundo, entre vinte a quarenta milhões de pessoas, estudos mais recentes, falam em números mais elevados, alguns em cem milhões de mortos, o que, em qualquer caso, torna a pneumónica na doença epidémica mais mortífera de todos os tempos.

Em Portugal, segundo o professor João Frada in “A gripe pneumónica em Portugal Continental – 1918”. 1ª edição, Lisboa: Sete Caminhos, 2005, terão havido um pouco mais de sessenta mil falecimentos provocados pela pneumónica, mas outros cálculos falam em cem mil e, até, em duzentos mil mortes.

A incidência da pneumónica no distrito de Leiria foi particularmente grave, o que levou à proibição de feiras e romarias na tentativa de limitar as situações de contágio:


Também a Ataíja de Cima não ficou imune à doença, tendo eu conhecimento de a pneumónica aqui ter provocado, pelo menos, cinco mortes:

- António Matias que era proprietário da casa alta do Outeiro, avô e bisavô dos Matias actuais;
- Delfina, sua filha, solteira;
- Francisco Sabino, avô do nosso amigo Américo Sabino e de muitos outros;
- Tomás (só sei o apelido) que era casado com Maria Constantino e foi avô dos "delfinos";
- Maria, de17 anos, filha de Bernardino dos Santos (irmã, portanto, de Manuel e António "Casal") 

As condições sanitárias e os conhecimentos da medicina são, hoje em dia, completamente diferentes do que eram em 1918 (só cerca de 1930 é que se estabeleceu que o vírus da pneumónica era um vírus da estirpe A já que, em 1918, os conhecimentos da medicina o não permitiam).
A capacidade de isolar o vírus muito cedo e de produzir rapidamente vacinas e medicamentos e, talvez mais importante, a monitorização a nível mundial da evolução da doença, a massiva divulgação de informação sobre os comportamentos a adoptar pelos doentes e os sistemas que por todo o lado se estabeleceram com vista a prestar assistência às pessoas afectadas e, ainda, no caso de Portugal e da generalidade dos países desenvolvidos o acesso universal a cuidados de saúde, tem permitido limitar drasticamente os efeitos mortais das doenças contagiosas.

Mas isso não dispensa que cada um de nós tenha os cuidados adequados para evitar ou limitar as possibilidades de contágio.

Hoje, confrontados que estamos com a pandemia do Covid-19, é nosso dever tomar os cuidados adequados para evitar contagiar e ser contagiados e, quando nos sentirmos menos confiantes, de nos lembrarmos do que os que nos antecederam tiveram de enfrentar.


O texto, que agora republicamos com ligeiras actualizações, foi originalmente publicado neste blog em 22 de Dezembro de 2009.

Nota: A notícia da 5ª vitíma acima referida foi-nos confirmada hoje mesmo por um seu sobrinho-neto, o nosso amigo Jorge Bernardino, a quem agradecemos. 31.3.2020 JQ