terça-feira, 30 de outubro de 2018

Gente da Ataíja de Cima - Emília Florinda - A Perna-Torta


Emília Florinda, filha de José Constantino, nascida em data que não logrei apurar, na primeira metade da década de 1930 e falecida em data que, igualmente, desconheço, tinha a alcunha de A Perna-Torta devido à deficiência física de que sofria.

Era de estatura diminuta, já que sofria de nanismo desproporcional severo e ambas as tíbias apresentavam forte curvatura, o que justificava a alcunha e a obrigava a um andar bamboleante.

A primeira vez que vi um espectáculo circense, algures por meados dos anos de mil novecentos e cinquenta, foi com um pequeno grupo, uma família de saltimbancos que se deslocava em modesta carroça puxada por uma mula velha e com ar de estar mal alimentada.

Foi ao lado da taberna do Sarrano e encostado à parede do quintal da Riteira - Riteira era a alcunha de uma senhora já velha e viúva de quem nunca soube o nome (Ana, talvez, mas não tenho certezas) e que sempre conheci vivendo com a sua filha Maria Cordeira e o genro Manuel Matias - a tal parede delimitava o terreno no exacto sítio onde hoje se encontra a casa do Pirata, aliás, irmão da Perna-Torta e foi em plena rua, aproveitando o pequeno largo que ali se forma, que a troupe montou o seu estaminé e lá foi fazendo as suas habilidades, à luz de um petromax, enquanto um passo atrás, mesmo colada à parede, a mulher mais velha ia preparando, numa trempe, a ceia da companhia.

As labaredas ajudavam à iluminação do ambiente já que, naquele tempo as noites, salvo as de luar, eram puro breu, pois não havia electricidade na Ataíja de Cima.

O palco era  na traseira da carroça, o que permitia ao chefe esticar o braço lá para dentro e retirar algum adereço necessário à função. Os espectadores dispuseram-se em semi-círculo ao redor, as crianças colocadas à frente, misturadas com os mais precavidos, estes, sentados em cadeiras ou tripeças que tinham trazido de casa.

Um dos números precisava de um anel ou aliança, coisa que quase ninguém usava.
A Perna-Torta, naturalmente, estava na fila da frente e tinha um anel que, depois de muitas insistências, disponibilizou ao mágico o qual, obviamente, o fez desaparecer no lenço.

Seguiram-se outros números e do anel, nada.

Às tantas, quando o espectáculo se aproximava do final e o speaker já anunciava que a troupe iria comer a ceia que a velha tinha preparado, a inquietude da Perna-Torna alastrou-se à assistência e levantou-se um grande sururu, com toda a gente a reclamar a devolução do anel.
As coisas estavam quase a azedar e em vias de fazer perigar a integridade física dos artistas, (o chefe da troupe, experiente, esticou a corda até quase ao limite) quando, em milagre muito aplaudido, o anel, afinal, estava dentro de uma das batatas acabadas de cozer.





Nota: Uma primeira versão deste texto, que agora se substitui, foi aqui publicada em 24-10-2010

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Um livro do Séc. XVIII na Ataíja de Cima


Conhecedora das minhas deambulações pelo passado ataíjense, mão amiga fez-me chegar um livro publicado há 233 anos.

Trata-se do “THESOURO BIBLICO, OU DICCIONARIO HISTORICO, E ETYMOLOGICO DOS Nomes próprios dos Póvos, Provincias, e Cidades, com as suas respectivas interpretações. E relação succinta das noticias, e acções principaes da maior parte das pessoas, que se encontrão nos veneráveis Livros da Sagrada Escritura. OBRA UTILISSIMA PARA A MELHOR INTELLIGENCIA DO ANTIGO, E NOVO TESTAMENTO E ASSIM MESMO PARA A LIÇÃO DA HISTORIA DA SANTA IGREJA, Lisboa, na oficina de Simão Thadeu Ferreira, ANNO M.DCC.LXXXV, Com Licença da Real Mesa Censoria”. (teve uma reedição, impressa no Porto, Typographia da Revista, em 1869)

O longo título e subtítulo que, como era uso naquela época preenche toda a página de rosto (acima reproduzida), é só por si esclarecedor do conteúdo do livro: Trata-se de, sob a forma de dicionário, explicar resumidamente, o essencial sobre as pessoas, povos, locais e factos referidos na Bíblia.

A necessidade deste tipo de livros – que, por outro lado, se inserem no movimento de publicação de dicionários e enciclopédias que, por aquele tempo, no chamado século das Luzes, percorreu a Europa – resulta do facto de a Bíblia não se encontrar traduzida e de os actos litúrgicos serem proclamados em latim.

O autor, que no livro é referido, apenas, pelas iniciais do seu nome: F.F.D.J.M.S., foi Frei Francisco de Jesus Maria Sarmento, frade e provincial da Ordem Terceira de São Francisco, o qual publicou diversas obras de cariz religioso e foi um dos responsáveis pela reconstrução do Convento de Jesus (onde, actualmente, funciona a Academia das Ciências de Lisboa) cujos edifícios sofreram, com o terramoto de 1755, gravíssimos danos que o deixaram inabitável.

O livro encontra-se disponível na internet em
http://books.google.com/books?id=qs4pAAAAYAAJ&pg=PA260&lpg=PA260&dq=thesouro+biblico&source=bl&ots=3tVTeWopPe&sig=mfqFq9hFsJgWbj78zja_U0w6sZs&hl=pt-PT&ei=M6UPTYTbD8K4jAfl5JzEDg&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=4&ved=0CCYQ6AEwAw#v=onepage&q&f=false, digitalizado a partir de um exemplar existente na Harvard University Library e é, também, passível de ser encontrado em alfarrabistas.


Não é isso, no entanto, o que nos leva a falar dele neste blog mas, antes, o facto extraordinário de o exemplar que temos presente ter sido preservado e em razoável bom estado, durante tanto tempo, sobretudo, quando sabemos que foi encontrado no espólio hereditário de uma ataijense  que, apesar de ser analfabeta, o conservou durante dezenas de anos, durante toda a vida.

O livro foi encontrado, após a morte da proprietária, em casa da que foi conhecida por Maria Marreca, a qual era meia-irmã da minha avó e o terá recebido o livro por herança paterna.
O livro contém, manuscritas, três indicações de propriedade: No verso da capa, a tinta, “este livro he de ..(ilegível) .. Cortez”, e uma outra, a lápis, “Este livro he” (sem indícios de ter sido escrito o nome que, naturalmente, devia seguir-se). No verso da contra-capa, perfeitamente legível, a terceira marca: “Este livro é de António Maria Cláudio”.


Pela grafia (é em vez de he) deve presumir-se que esta terceira marca é a mais recente.

Quem seria este António Maria Cláudio?

A minha avó falava-me do seu avô João Cláudio que combateu nas tropas anglo-portuguesas durante a Terceira Invasão Francesa e, com Wellington, atravessou toda a Espanha na perseguição aos exércitos napoleónicos.

Assim, talvez o António Maria Cláudio fosse descendente do João Cláudio e, por isso, meu familiar, talvez tio-avô ou tio-bisavô.

Hei-de investigar isso melhor quando e se me decidir a entrar a sério pelos caminhos, sempre tortuosos, da genealogia.

Até lá, resta-me agradecer à actual proprietária do livro e desejar que ela e os seus descendentes o saibam conservar, por mais 233 anos, como o souberam fazer os seus ancestrais.

(Reprodução das págs. 92 e 93 do Thesouro nas quais se vê, entre outras, uma descrição moral da figura bíblica de Caim)




Nota: O presente texto substitui uma primeira versão que foi publicada neste blog em 07-01-2011