terça-feira, 5 de janeiro de 2021

A Construção da Sacristia Nova da Capela de Nossa Senhora da Graça

 

 

Em Outubro de 1969, oito dias antes das eleições legislativas desse ano, foi inaugurada a luz eléctrica na Ataíja de Cima, o que foi pretexto para luzida cerimónia que contou com a presença de grosso número de dignitários do Distrito.
Nunca se tinha visto tanta gente importante na Ataíja de Cima, nem nunca mais se viu.

Nos discursos fizeram-se convites - ao voto na União Nacional. E promessas – a estrada seria alcatroada no ano seguinte.

O povo cumpriu a sua parte e, esquecido de que nunca recebera dos poderes públicos mais do que os avisos para pagar a “décima”, ou o recibo das multas por falta de licença no carro do burro ou na coleira do cão, foi votar na UN[i].

As autoridades, essas, contaram os votos e esqueceram a promessa.

O macadame ia desaparecendo e a estrada ficando cada vez mais um caminho de cabras, cedendo ao peso das muitas toneladas dos camiões carregados de pedra que por lá passavam. Pó no Verão, lama no Inverno.

Só depois do 25 de Abril, levados na onda de esperança que nos submergiu a todos, alguns homens da Ataíja, dos quais me permito salientar o Ti’ Zé Coelho e o meu pai, começaram a pensar a sério na necessidade de conseguir alcatroar a estrada.

Numa primeira reunião das populações da Ataíja e do Cadoiço, no início de 1975, foi decidida a criação de uma comissão com duas tarefas fundamentais: recolher contribuições e solicitar à Câmara a realização do imprescindível melhoramento (ver, neste blog, o post: O Alcatroamento da Estrada do Lagar dos Frades).

Com a colaboração do povo e da Câmara a estrada fez-se, provando que quando as pessoas trabalham unidas tudo é possível de ser feito!

As pessoas prescindiram de quaisquer direitos a indemnizações e elas próprias procederam aos trabalhos de alargamento do leito da estrada e todos concordaram que era necessário arrasar a sacristia da Capela de Nossa Senhora da Graça, para evitar que no local ficasse a estrada mais estreita, com uma inestética e perigosa garganta. Os responsáveis municipais garantiram que a nova sacristia podia ser construída a nascente da capela, com dispensa das habituais licenças.

Em 1981, finalmente, a aldeia encontrou forças para pôr de pé a desejada sacristia. Eu próprio fiz as necessárias medições e desenhei um projecto da sacristia que com base nele se construiu, onde está, nas traseiras da capela mor, a que se liga através de um corredor adossado à parede norte da igreja, ocupando uma pequena parte e estreitando o arruamento aí existente, então e desde há vários anos praticamente sem uso por não habitar ninguém nas duas casas (hoje unidas numa) aí existentes.

Estes são os factos que antecederam e justificaram a necessidade de construção da nova sacristia.

(O que fica escrito era, com pequeníssimas adaptações, a primeira parte de um texto que em Dezembro de 1981 enviei ao jornal O Alcoa e que, por ser muito extenso, foi reformulado, pelo que apenas a 2ª parte   foi publicada no jornal O ALCOA de 7 de Janeiro de 1982, como a seguir se transcreve)

 

ATAÍJA DE CIMA – obras na Capela

Quando, há uns meses atrás começaram as obras de construção da nova sacristia, (a anterior havia sido arrasada aquando do alcatroamento da estrada) logo três homens da Ataíja se movimentaram no sentido de as impedir.

Um porque é proprietário de um prédio situado num arruamento que vai ficar parcialmente ocupado pela nova construção e pensa (erradamente no meu entender) que, por isso vai ficar prejudicado. Outros dois, sem interesses directos a serem afectados e em consequência, penso eu, sem qualquer razão.

Começou então um autêntico rodopio para a Câmara, dos que são pró e dos que são contra. Lamentável é que, ao que parece, a certa altura havia na Câmara maior confusão do que na Ataíja, pelo que às tantas ninguém se entendia, as obras um dia paravam, outro andavam, com sucessivos embargos e desembargos, tendo mesmo um dos opositores chegado à “acção directa” arrasando parte do que estava construído.

A própria Junta de Freguesia encontra-se neste momento numa grave crise com a demissão de vários dos seus membros, facto a que não é alheio “o caso da sacristia”.

Na sexta-feira (4/12) o povo decidiu que no sábado as obras iriam prosseguir.

Foi bonito de ver dezenas de pessoas trabalhando unidas na realização de uma obra que interessa a todos. Trabalhando, comendo e bebendo o que a solidariedade de muitos logo lá fez chegar: pão fresco (que sábado é dia de acender o forno), sardinhas, vinho e bagaço em abundância, numa festa que se prolongou pela noite fora – dizem-me que às seis da manhã havia quem assasse frango na fogueira com que aqueceram a noite – e houve quem se não deitasse e só fosse a casa trocar de roupa para a missa dominical. Nem a poesia faltou:

Ataíja decidiu
E o povo construiu
Todos querem a capela
Só três são contra ela

No sábado passado (19/12) e de acordo com o previsto, procedeu-se à colocação da segunda placa e do telhado da sacristia e de novo se repetiram as cenas da jornada anterior.

Um imenso churrasco foi montado para assar dezenas de frangos, que foram acompanhados de pão fresco, ainda fumegante do forno.

O Sr. Presidente da Câmara, correspondendo ao convite que, entretanto, lhe havia sido dirigido, confraternizou durante algum tempo com o povo da Ataíja e acompanhado de um grupo de pessoas, percorreu algumas ruas da aldeia enquanto ia ouvindo várias sugestões no sentido de resolver algumas das mais urgentes carências do lugar.

O povo da Ataíja tem razão para estar satisfeito. Mais uma vez provou a si próprio que um homem só pouco pode e que muitos homens juntos podem muito.

E porque assim é pensa-se já em levar a cabo outras obras igualmente importantes e, para assinalar condignamente a inauguração da sacristia, prepara-se uma festa, para a qual existem já valiosas ofertas.


Entrada exterior para a sacristia tal como foi construída inicialmente, em 1981.
Foto de 1995, SIPA-Sistema de Informação para o Património Arquitectónico (hhttp://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=1810)

 

 

APELO: Agradeço a quem possuir fotografias onde seja visível a sacristia antiga da capela o favor de me permitir a sua digitalização.


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[i] Em rigor, não se pode dizer o povo porquanto, naquele tempo, o recenseamento não era obrigatório, (salvo para os funcionários públicos que eram oficiosamente recenseados).
Legalmente, o recenseamento dependia de inscrição voluntária e, na prática efectivava-se arbitrariamente, ao gosto do presidente de Junta e do Regedor (Nestas eleições de 1969 eu próprio e alguns amigos deslocámo-nos à Junta da freguesia onde morávamos, para nos recencearmos, o que fizemos. Mas, no dia das eleições, não constávamos dos cadernos eleitorais).
Em aldeias como a Ataíja o recenseamento era oficioso no sentido de que as autoridades inscreviam quem queriam e era a esses que convidavam a votar, distribuindo previamente os boletins de voto, dos quais constava uma única lista.
É, ainda, importante lembrar que as mulheres, salvo as chefes de família e as licenciadas, não tinham direito de voto.