quinta-feira, 21 de maio de 2020

Alcunhas Ataíjenses


Até à República e à instituição do registo civil obrigatório, a generalidade dos portugueses tinha como única certidão da sua existência os assentos paroquiais de baptismo, casamento quando existia e, finalmente e já sem utilidade para o próprio, óbito.
No baptismo, a criança recebia, apenas, o nome próprio. Era a Maria ou o João, filha ou filho de fulano e beltrana, neta ou neto de cicranos. O apelido escolhia-o o próprio e dava-o ao assento no casamento ou numa escritura de negócio que eventualmente celebrasse. Mas, até lá, era imperioso que os que lidavam com ele, fossem capazes de o distinguir dos demais e, para isso, o nome próprio era insuficiente porque, Marias há muitas.
Daí que ao nome próprio se juntasse um outro, fosse um apelido, um nome ou uma alcunha familiar. Muitas vezes, nomes próprios dos pais tornavam-se apelidos dos filhos, outras vezes, eram as caraterísticas físicas, a profissão ou a terra de origem a impor a alcunha.
As alcunhas, muitas vezes ou quase sempre criadas pela comunidade e à revelia do interessado, quando apontam para características físicas, actos ou factos da vida, são, em geral, malvistas ou consideradas ofensivas pelos próprios.
Sem embargo, as alcunhas foram úteis, necessárias e, às vezes, indispensáveis para identificar devidamente as pessoas e muitas transformaram-se em apelidos e apelidos houve que se transformaram em alcunhas.
Agora, ajudam-nos a compreender melhor as comunidades onde se desenvolveram.
É esse o objectivo desta pequena selecção de alcunhas ataíjenses, escolhidas de entre as muitas dezenas que já inventariámos. Tentámos ir de A a Z, mas faltam-nos alcunhas começadas pelas letras H, I, U e X. Em contrapartida vão cinco alcunhas começadas pela letra M.

Álvaro Alc. - Joaquim do Álvaro (Joaquim, filho do Álvaro) tinha, em Aljubarrota, no Largo da Padeira, uma taberna e, ao lado desta, uma oficina de sapateiro. Nessas casas, funciona hoje o café-restaurante O Torcato (o Torcato é seu filho).
Aí paravam as camionetas da carreira e se faziam os despachos dos cabazes que se enviavam aos homens a trabalhar em Lisboa e se levantavam cartas e encomendas que tinham vindo nas mesmas camionetas da carreira. Nos fundos da loja havia uma divisão, onde os que tinham sido designados pelo Cabo-de-Ordens para transportar o caixão tinham direito a comer uma bucha à conta da família do falecido.
Quando ainda não havia telefone na Ataíja de Cima, telefonava-se para o Joaquim do Álvaro pedindo que mandasse recado, para que a pessoa com quem se queria falar lá estivesse a certa hora. Hora à qual se voltava a ligar para, então, falar com a pessoa desejada.
Badalhoiça Alc. - Desconheço a razão da alcunha. Há, no entanto, uma espécie de figos a que chamam badalhoiços e, segundo o blog Aveiras de Cima – Fotomemórias, também aí, em Aveiras de Cima, badalhoiça é alcunha.
Barra Alc. - A alcunha, transmitida a filhos e netos, já vem, pelo menos, desde Luís Dias ou Luis Dias Vigário que foi soldado no Corpo Expedicionário Português em França durante a 1ª Guerra Mundial, onde terá sido "gaseado". Era filho da Pota Sarrana.
Para o fim da vida era cliente assíduo da taberna e veio a falecer numa noite escura em que se enganou no caminho para casa, tendo sido encontrado morto na beira da estrada para Aljubarrota junto aos Caramelos.
Carvalha Alc. - Feminização de Carvalho. Joaquina Carvalho, era natural dos Casais de Santa Teresa (Casais de Baixo), foi casada com António Matias, falecido aquando da Pneumónica , mãe de Manuel, António e Joaquim Matias e de Delfina, falecida nas mesmas circunstâncias do pai.
Foi proprietária da casa alta do Outeiro.
Uma outra Carvalha, Maria Carvalho de Sousa, filha de João Luís de Sousa e de Rosalia Carvalho, foi freira no Instituto das Franciscanas Missionárias de Maria, com o nome religioso de Irmã Maria Amália Teresa.
Da Serra Alc. - Por ser natural de uma aldeia "de traz da serra". Transmitiu-se a filhas e netas que, apesar de nascidas e criadas na Ataíja, continuaram a ser "da Serra".
Esquininha Alc. - Ou Esquinica. Por Joaquininha, ou Joaquinica.
Frade Alc. - O ti'João Frade fez tropa em Cabo Verde por alturas da Segunda Guerra Mundial. Falando comigo em vésperas da minha partida para cumprir serviço militar na Guiné, sabendo que eu ia fazer escala em Cabo Verde, avisou-me: Tem cuidado Zé! Em São Vicente, até as pedras têm doenças venéreas!
O filho (Zé Frade) herdou a alcunha que era original do pai.
Guilhermina Alc. - Joaquina Guilhermina. Guilhermina era o nome próprio da mãe. Os irmãos, por sua vez, foram conhecidos por Guilhermino
Janita Alc. - Diminutivo de João (aplicável num único caso: João Rosa Dias).
Luísinha Alc. - Diminutivo para Luísa que continua a designar a nomeada, agora septuagenária. É filha do Pato-marreco e mãe do primeiro descendente de ataíjenses a formar-se em engenharia, João Pedro Dias Quitério, actualmente alto quadro no grupo Visabeira.
Mal-das-vinhas Alc. - Grande bebedor, era irmão do meu avô Quitério. A alcunha dever-se-à ao facto de não tratar bem das suas próprias vinhas, deixando-as cheias de ervas daninhas, designadamente, escalracho. Certa vez, interpelado por isso, terá respondido que o vinho nunca lhe tinha sabido a escalracho. Passou dias e noites inteiras na taberna, na Ataíja de Baixo, onde chegava a comer e dormir, bebendo e jogando.
Em dada noite, resolveu encomendar um coelho para a ceia na taberna. A taberneira, vendo o seu estado alcoolizado, achou que se podia aproveitar disso, mas quando chegou com o jantar, ouviu logo o responso: Então Maria! O coelho era coxo?
Mariola Alc. - De seu nome Manuel, era meio-irmão da minha avó paterna. Mariola (patife), talvez por ter sido o responsável involuntário (era ainda uma criança) pela queda da irmã (Marreca), o que lhe provocou a corcunda e o nanismo.
Antigamente, mariolas eram os moços de fretes e os que carregavam e descarregavam os barcos, mais tarde chamados estivadores
Minderico Alc. - Minderico é um natural de Minde. Havia dois Mindericos na Ataíja.
Um deles, Joaquim Constantino, era filho de José Constantino e herdou a alcunha do avô materno, Bento Minderico, do Casal do Rei. O outro, também Joaquim e também oriundo do Casal do Rei, foi casado com uma filha de Alfredo Ângelo, Assunção.
Eis um caso curioso de topónimo originalmente dado como alcunha, posteriormente transformado em apelido e, mais tarde, de novo, em alcunha, como tantas vezes acontecia.
Mira Alc. - Por ser natural de Mira de Aire. Foi proprietário de um olival que ia desde as traseiras do lagar de Luísa Ribeiro até à serra e onde, hoje, estão implantados os "Armazéns São Vicente", de um palheiro que ficava entre a escola e a adega de José Ribeiro e que está, agora, integrado no Adro e da casa e taberna na Rua das Seixeiras que, depois, foram do Petinga.
Deixou a Ataíja de Cima, em 1951, como se vê de uma carta escrita por Joaquina Rosalia a seu marido em 19-5 desse ano: “…José o mira vendeu tudo cuanto ca tinha eu compreilhe dois barris axeios baratos porque são muitos bons são novos so levaram vinho uma vez custaram 85$00 cada um não sei se tu ficaras contente ele já se foi embora para a Mira já cá não tem nada o Olival e a caza baixa é dum Senhor de Lisboa e a caza ca de Cima é do padrinho José maneta…”.
Morena Alc. - Maria da Assunção Gomes de Sousa. Nunca me pareceu especialmente morena mas carrega a alcunha desde pequena. Ficou órfã de mãe antes dos sete anos e a partir daí foi a verdadeira mulher da casa, embora com alguma ajuda da avó e das tias que eram vizinhas. Foi com essa idade que teve de começar a assegurar a lida da casa e a tomar conta dos dois irmãos mais novos. Sempre cantou e canta, muito bem.
Novo Alc. - Quim Novo, para se distinguir do tio, de idade próxima que, por sua vez, ficou Quim Velho desde criança.
Orelha Alc. - Alcunha de António Maria de Sousa, transmitido aos filhos. Um deles, igualmente António Maria de Sousa e, por isso, Júnior, era um pouco exuberante e tinha uma bicicleta, também ela com alcunha: Era o satélite.
Pequena Alc. – (ou Pequeno). Várias pessoas, sem ligação entre si, tinham a alcunha de Pequeno ou Pequena. Não tem a ver com tamanho, mas com o serem as crianças mais novas da família. Era a própria família que assim as denominava, para as distinguir de outro elemento mais velho com o mesmo nome próprio. Por vezes, a alcunha passou aos filhos (Da Pequena).
Qué-Pão Alc. - Assim andava a criança atrás da mãe, pedindo pão (tratava-se de José Maria Felismino, que toda a vida foi conhecido por Zé Qué-pão).
Redondo Alc. - Alcunha comum a dois meios-irmãos da minha avó paterna.
João Redondo era sapateiro e, como era uso naquele tempo, deslocava-se a casa dos clientes e aí ficava durante vários dias reparando, de uma vez, todo o calçado familiar e às vezes fazendo, de caminho, alguma obra nova. Lembro-me dele a concertar o calçado da família de José Ribeiro instalado no alpendre da casa que é hoje da Amélia. Foi casado com uma Emília natural de Aljubarrota e faleceu sem filhos.
António Redondo casou para os Milagres e na família era, por isso, chamado de "António dos Milagres".
Sabino Alc. - O nome próprio do pai transformou-se em alcunha dos filhos José e António e não do Arnaldo por óbvia desnecessidade, devido à singularidade do nome.
Tarasco Alc. - É natural dos Molianos. A alcunha já a trazia da sua terra e significa, diz o DPLP, arisco, impertinente, esquivo.
Veneno Alc. - Alcunha de João Augusto Lúcio, natural do Casal Boieiro, Pedreiras, onde residia e terá adquirido experiência trabalhando na extracção da pedra local que chamávamos de "pedra de cantaria", uma pedra bastante macia que foi usada para ombreiras de portas e molduras de janelas e, durante séculos, para fazer pias de azeite.
Foi o primeiro a explorar o Vidraço de Ataíja e, assim, o iniciador de uma revolução na economia local. Começou nos anos cinquenta do Séc. XX a escavar num terreno onde José Henriques (que foi, também, conhecido por José Neto e José Carago) veio a construir a sua casa, ao lado da actual pedreira “Caramelo 3”, propriedade da empresa Mármores Vigário, Lda, no sítio dos Caramelos.
Zé d’Avó Alc. - Eu próprio. Por ter sido criado entre os 3 e os 10 anos pela minha avó paterna, estando os meus pais emigrados em Lisboa, como leiteiros.