quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Gente da Ataíja de Cima - António Baptista Vigário - o António Sabino



Sob a epígrafe Gente da Ataíja de Cima pretendemos construir uma galeria que lembre aos mais velhos e ensine aos mais novos, algumas pessoas que, pelas suas características ou pela sua acção deixaram, na vida da aldeia, uma marca de importância que merece ser conhecida.
A transição da economia agrícola de subsistência, que durante séculos caracterizou a vida local, para a economia industrial que começou (e continua) pela extracção de pedra (a apreciada rocha ornamental que tem a designação comercial de Vidraço de Ataíja), a que se seguiu a faiança e agora, a transformação de pedra e todas as actividades subsidiárias que entretanto foram surgindo, por serem indispensáveis à vida normal de uma comunidade industrial e ao evoluir dos tempos. Essa transição, dizíamos, também teve os seus protagonistas.
Já falamos neste blog do pioneiro João Veneno e de Luís da Graça (VER AQUI).

Falemos, agora, de António Baptista Vigário, o António Sabino.



Nascido em 6 de Julho de 1932, foi um dos três filhos de Sabino[i] Vigário e de Joaquina Baptista e, pelo lado paterno, neto de José Lourenço e Luísa Sabino, alfaiates e bisneto de José Vigário e Ana Lourenço e de Sabino dos Santos, também alfaiate e Maria Branca.
Teve dois irmãos:
José, o mais velho dos três, já falecido e que fez a maior parte da sua vida “lá para Lisboa”[ii], também teve por alcunha o nome do pai e foi, por sua vez, ao que se dizia, responsável pela alcunha do Manuel “Mochila”. É que o José Sabino era acordeonista ou aprendiz de acordeonista[iii] e, transportava o instrumento às costas, à laia de mochila. O dito Manuel “Mochila” nasceu de mãe solteira e mais não é preciso contar que os filhos de mãe solteira eram, sempre, alcunhados por referência ao pai presumido.
O outro irmão, o mais novo, é o Arnaldo que, pela raridade - durante décadas, mesmo, singularidade - do nome, nunca precisou de alcunha.

Desde novo que o António Sabino mostrou apetência para os negócios e pouca vontade de seguir as pisadas do pai que era carreiro[iv] profissional e, nos tempos mortos da sua actividade principal, também arriscava o ofício de sapateiro, o qual exercia na Casa do Couto.
Negociar tudo o que podia ser negociado, fossem peles de coelho ou chinelos velhos e, no devido tempo, candonga de azeite, foram actividades a que o António Sabino se dedicou logo na adolescência, muitas vezes tendo por companheiro de aventuras o amigo Luís da Graça, apenas alguns meses mais velho.
Os negócios corriam bem como o demonstra o facto de, aos dezoito anos, ter sido emancipado para poder tirar a carta de condução e, de seguida, comprar (já nem o próprio se lembra bem, se em 1950, se em 1951) um automóvel, um velho Opel que foi o primeiro veículo automóvel ligeiro de passageiros que houve na Ataíja de Cima. (VER AQUI)

Em 4 de Março de 1956, aos 23 anos de idade, essa tendência para o negócio ficou definitiva e necessariamente fixada. Nesse dia, quando ia à "pendura" na moto (eu tinha a memória de que era uma Norton mas, há quem jure que era uma AJS) do seu amigo António Faustino Ribeiro, “O Mosca” o qual, por vezes, também era companheiro nas aventuras da candonga do azeite[v], um grave acidente levou-o por largo tempo ao hospital, deixou-o a coxear para o resto da vida e livrou-o, de vez, de ter de vir a trabalhar no campo ou em outra actividade de igual exigência física.

Por essa altura, tinha sido construída no Largo do Outeiro a “casa do Maneta”, destinada a armazém de alfaias, adubos e produtos agrícolas, taberna e casa do rancho[vi].
Curado tomou então, em 1957, a exploração da taberna e aí ficou durante cerca de seis anos, até ao seu casamento, em 1963.

Em 1959, tornou-se um dos pioneiros da exploração da pedra VIDRAÇO de ATAÍJA, abrindo uma pedreira nos Caramelos.
A pedreira ainda existe. É a Pedreira “Caramelo 3”, propriedade de Mármores Vigário, Lda.

Em data que não consegui apurar, por volta de 1969/70, foi episódico (durante cerca de um ano) proprietário, ou co-proprietário da Safaril[vii], a primeira fábrica de faiança que existiu na Ataíja de Cima[viii].

Em 1984 entrou em novo ramo de negócio abrindo, sempre na Ataíja de Cima, uma fábrica de recauchutagem de pneus.

Entretanto, em 1963, tinha-se casado com Maria do Rosário, oriunda das Pedreiras e, infelizmente, precocemente falecida. Para instalar a nova família, comprou a casa e quintal da Benedita (a Benedita era uma senhora que sempre conheci viúva e, vim a sabê-lo mais tarde, o era de um marido que tinha falecido “na América”, não tenho a certeza se nos EUA se no Canadá) e aí construiu uma casa de dois pisos, sendo o primeiro andar destinado à habitação e o rés-do-chão a taberna e mercearia.
Esta foi a primeira casa da Ataíja de Cima equipada, de raíz, com casa(s) de banho(s) (2).


Hoje, aos 82 anos de idade, o António Sabino contempla, com justificado orgulho, o trabalho dos filhos, o Rogério e o Luís que dão, brilhantemente, continuidade ao pioneirismo do pai, dedicando-se à extracção e transformação de pedra, através das empresas Mármores Vigário, Lda e MVC - Mármores de Alcobaça, Lda.

À MVC – Mármores de Alcobaça, Lda., uma empresa com instalações fabris de grande dimensão, altamente sofisticada, dotada dos equipamentos e tecnologias mais modernas, o que lhe permite produtos de grande qualidade e, consequentemente, actuar nos mais exigentes mercados de exportação, já dedicamos um texto neste blog. (VER AQUI)

Sítio de internet da MVC – Mármores de Alcobaça, Lda:




_______________________________________________

O texto acima foi publicado neste blog em 27 de setembro de 2014.

António Baptista Vigário, António Sabino, faleceu hoje, dia 04 de novembro de 2021, aos 89 anos, escassos dias após o seu amigo de sempre, Luis da Graça. Com ele, com eles, morre a geração de pioneiros que levou a Ataíja de Cima da agricultura de subsistência à economia industrial.






[i] Como é muito comum, o nome próprio do pai tornou-se alcunha do filho.
[ii] “lá para Lisboa” era uma expressão corrente que muitas vezes ouvi na boca de mulheres mais velhas que só escassamente faziam idéia de onde andavam os seus maridos e filhos.
[iii] É minha a hipótese de ter sido, apenas, aprendiz e nunca terá efectivamente feito carreira de acordeonista ou, então, desistiu cedo dela. É que nunca lhe conheci acordéon e nem me lembro de alguém, alguma vez, me ter dito que o ouviu tocar.
[iv] Carreiro, era o profissional que conduzia o seu carro de bois, com o qual faz transportes e, com as alfaias, - charrua, grade, trilho, etc. - prestava outros serviços agrícolas com a sua junta de bois (ou vacas, o que era o caso). Não confundir com abegão que desempenhava funções semelhantes mas enquanto trabalhador ao serviço de uma exploração agrícola.
[v] O cerrado controlo estatal sobre os abastecimentos alimentares que tinha atingido o seu pico durante a guerra com o racionamento, era o pretexto perfeito para o trânsito ilícito dos bens mais valiosos como o azeite.
[vi] Naquele tempo, em que não havia empregos fixos, eram cíclicas as deslocações de grandes grupos para tarefas agrícolas exigentes de muita mão-de-obra. Para a Ataíja, cujos campos eram um enorme mar de oliveiras, vinham, no devido tempo, grupos de pessoas – ranchos - de fora da aldeia para trabalhar na apanha da azeitona.
[vii] A fábrica começou a ser construída em 1969, na perspectiva da chegada da electricidade que viria a acontecer em Outubro desse ano. Embora a escritura de constituição da Safaril seja de 1972, o início da laboração é anterior.
[viii] Que adquiriu a uns tais Caetano e Fróis que julgo terem sido os empreendedores iniciais. Daquele Fróis, lembro-me de um dia em que, na adega do meu pai, bebeu mais do que a conta e foi o filho, então com uns escassos doze anos, quem conduziu o carro até a casa.

sábado, 23 de outubro de 2021

Gente da Ataíja de Cima – Luís da Graça

.




Luís da Graça de Sousa, nasceu na Ataíja de Cima em 12 de Maio de 1931, (tendo, no entanto, sido registado como nascido a 27 do mesmo mês), filho de Manuel Luís de Sousa e de Maria da Graça.

Para sustentar a numerosa prole, o pai emigrava sazonalmente para a região de Lisboa onde, a meias com seu irmão João Luís de Sousa, era responsável por uma vacaria (os irmãos revezavam-se na função, em períodos de cerca de três meses. Enquanto um ficava por Lisboa, o outro estava na Ataíja cuidando das magras terras familiares e olhando pelas famílias) e foram os tostões assim amealhados que lhe permitiram construir uma cisterna de abóboda (ver AQUI) que ainda existe junto à casa que foi sua, na Rua das Seixeiras e, a escassos metros, um moinho de vento que existiu onde na segunda metade dos anos de 1940 o seu filho, que foi conhecido por João Frade, construiu a sua casa.

Tudo isso não obstava à continuada pobreza da família pelo que ao Luís coube, aos 12 anos de idade, ir “servir” para Serro Ventoso, onde ganhou para as primeiras botas e se manteve até que, aos 17 anos, regressado à Ataíja, se iniciou nos negócios de compra e venda de peles de coelho, chinelos velhos, azeite e tudo o que pudesse ajudá-lo a escapar à incerta vida de jornaleiro.

Mais tarde havia de seguir a aventura de se tornar leiteiro, em Lisboa, o mesmo caminho percorrido por muitos alcobacenses da “borda da serra” (conheci pessoalmente leiteiros oriundos de Aljubarrota, Ataíja de Baixo, Casal do Rei, Molianos, etc.e, da Ataíja de Cima, foram leiteiros, entre outros, os meus pais, João Lourenço Quitério e Maria Joaquina da Graça (Maria Carlota), naquele tempo em que os naturais de uma determinada região, emigravam para a capital para exercer uma determinada profissão (ía-se para a profissão de um amigo ou conhecido: galegos e minhotos para tabernas e restaurantes, os tomarenses para a construção civil, os de Tábua para padeiros, alcobacenses também, muitos, para vaqueiros e os alentejanos para operários, fixando-se nos arrabaldes industriais do Barreiro, Amadora e Moscavide).

Aí se manteve até 1958 – casou, entretanto, em 8 de Abril de 1956 - e regressou à Ataíja, instalando-se na casa dos meus pais (indo nós ocupar a “parte de casa” onde ele vivia em Lisboa, num prédio que já não existe, na Rua Luís Monteiro, nº 28, no Alto do Pina), enquanto construía a sua, onde ainda vive.

Aproveitando a recente descoberta do valor comercial do vidraço de Ataíja, começou a escavar uma pedreira num pequeno terreno no Vale Cordeiro que era propriedade do seu sogro, António Catarino. O negócio foi crescendo e a escola que, no tempo próprio, se tinha ficado pela segunda classe, foi retomada aos 41 anos quando, feita a quarta classe e tirada a carta de condução, teve o seu primeiro automóvel.

O resto da história é conhecido:

Impulsionado por uma enorme vontade de trabalhar, extraordinária visão empresarial, espírito inovador – Luís da Graça foi sempre um pioneiro, o primeiro a usar nas suas pedreiras cada uma das novas tecnologias e equipamentos que iam surgindo - e capacidade de gestão, o negócio não parou de crescer.

E, a par do negócio, apoiado na divisa que gosta de repetir: “Quanto mais dou, mais tenho!”, cresceu o Benemérito:

Bombeiros, Misericórdias, Autarquias e Associações têm largamente beneficiado dos donativos de Luís da Graça.



No dia 25 de Maio de 2008, a pretexto da inauguração do monumento aos Cabouqueiros que ofertou à Ataíja, foi objecto de uma grande e merecida homenagem que incluiu o descerramento de um busto seu.



Mantêm-se, prestes a completar os oitenta anos de idade, à frente da sua empresa Sousa & Catarino, Lda (http://www.sousa&catarino.com/).

----------------------------------------------------------------------------------

O texto acima foi publicado em 22 de Março de 2011.
Pouco depois, o curso inexorável do tempo impôs-se e Luís da Graça deixou aos seus filhos a direcção efectiva da empresa.
Os últimos anos viveu-os no Lar da Santa Casa da Misericórdia de Alcobaça.

Luís da Graça de Sousa foi um grande industrial, um grande filantropo, um grande ataijense e foi um amigo.

Faleceu hoje, dia 23 de outubro de 2021

terça-feira, 18 de maio de 2021

Na Infância da Minha Avó Maria Lourenço - A Madrasta

 


Nascida em 27 de Outubro de 1881, a minha avó Maria Lourenço casou-se, em S. Vicente de Aljubarrota, em 20 de Janeiro de 1902, com Joaquim Coelho que também assinava Joaquim Coelho Quitério, tinha ela 20 e ele 24 anos de idade, ambos solteiros e jornaleiros.

Era filha de Joaquim da Graça, carpinteiro e de Maria Lourenço ou Maria Felizarda, que depois de um curto casamento de oito anos faleceu em 3 de Novembro de 1888, aos 32 anos, pouco mais de um mês depois do filho(a?) mais novo, este falecido em 27 de Setembro anterior, com a idade de um ano e dez dias e deixando órfãos a minha avó e um irmão, Joaquim como o pai, esse então com quatro anos de idade, nascido em 29 de Setembro de 1884.

O seu avô paterno, o soldado reformado João Maria de Sousa Cláudio, de quem ela me havia de contar, setenta anos depois, tantas histórias de batalhas com franceses e das destruições cometidas pelos invasores cerca de setenta anos antes do seu nascimento, esse avô faleceu em 1884, com a bonita idade de noventa e cinco anos. Não foi, pois, a ele que a minha avó ouviu as histórias que me contava. A minha trisavó Maria da Graça, companheira do soldado Cláudio durante largas décadas, essa, faleceu em 1894 e bem podia ter contado à neta alguns passos da vida aventurosa do marido e outras histórias que terá aprendido com os próprios pais e vizinhos dessa geração, ela que, nascida em 1814, chegou a este mundo ainda estavam fumegantes os destroços das Invasões Francesas.

O meu bisavô Joaquim da Graça, viúvo aos trinta e cinco anos e com dois filhos tão pequenos não tinha maneira de levar a vida e não era a sua mãe já velha e viúva que o podia ajudar. A solução era, como foi, após menos de dois anos de viuvez, um segundo casamento.

É assim que a jovem Mariana Coelho, dos Casais de Santa Teresa, ainda menor de vinte anos, se viu levada ao altar e, com o necessário consentimento do pai, arranjou de uma assentada marido e duas crianças. Havia, o casal, de lhes juntar mais outros sete filhos.

As pessoas tendem a ver com romantismo estas histórias dos tempos antigos. Mas elas tinham muito pouco de romance, e muito menos de romance cor-de-rosa.

A pobre da Mariana, que me esforço por compreender e não julgar, não era, segundo os testemunhos que me chegaram, pessoa exemplar. Ainda há poucos anos a minha amiga Morena, bisneta da Mariana, me contava como, tendo ela própria ficado órfã de mãe antes dos sete anos de idade e tornada desde então a mulher da casa, com dois irmãos mais novos para cuidar, aprendeu cedo a levantar a cara e enfrentar os desafios que a vida lhe vai lançando. Foi assim que, muito tempo após o falecimento da Mariana, sendo a Morena ainda pré-adolescente, se viu numa discussão com a ti Joaquina Porfíria que, irritada por a pequena não ceder numa questão sobre galinhas que não atentaram nas extremas e foram debicar umas couves que não deviam, terminou a discussão gritando alvoroçada:

- “És uma malcriada! És bisneta da Mariana Raposa! Aquela punheta! ... Deus me perdoe …, por alma dela Pai Nosso!”

Não sei qual era a razão de tais azedumes, mas talvez o facto de terem sido vizinhas e as relações de afinidade ajudassem (a Joaquina Porfíria, era sobrinha do marido da Mariana e devia, por isso, de acordo com o costume, chamar-lhe tia).

 Certo, é que a alcunha de Raposa se devia ao facto de sobre a Mariana impender a acusação de ter roubado uma galinha.

Da minha avó recordo a tristeza com que me contava como o seu irmão Joaquim, que diariamente era recordado nas orações da noite que sempre antecediam a ida para a cama, tinha morrido, de desgosto e saudades de casa, dizia ela, durante o serviço militar, sem ter tido tempo de habitar a casa que construiu e hoje é a minha sala.

E recordo os lamentos e a amargura com que sempre evocava os tempos em que teve de conviver com a madrasta, uma mulher que segundo ela a não amava nem amava o marido e não sabia cozinhar.

O facto de o meu bisavô ser carpinteiro não o livrava da pobreza, às vezes, quase miséria. Ali na borda da serra, que ainda em meados do século XX eu conheci tão pobre, um oficial, fosse carpinteiro, pedreiro, sapateiro ou de outro mister, só o era a tempo parcial, à medida das necessidades dos pobres vizinhos.

Não havia oficina, mas apenas um limitado conjunto de ferramentas e a obra fazia-se em casa do cliente, levando-se as ferramentas numa alcofa ou nuns alforges e ia também, a maioria das vezes às costas, o banco de carpinteiro, um meio tronco suportados por quatro pés oblíquos, o lado plano virado para cima, em cujo extremo estava pregado um pedaço de tábua com um recorte em V, onde se fixavam as peças a trabalhar.

Às vezes, o contrato com o cliente incluía o almoço. Não foi o caso naquele dia em que, contava-me a minha avó, ela criança foi encarregue pela madrasta de um trabalho típico das crianças, o de ir levar o almoço ao pai, almoço que era também o seu.

Naquele dia, sentados a uma sombra, munidos cada um de sua colher com que haviam de comer do mesmo tacho, o meu bisavô desatou o lenço que amarrava o testo e provou o almoço, uma espécie de sopa de serralhas cozidas em pouco azeite.

- Não tenho fome, disse ele tristemente. E ficaram, ambos, abraçados e em silêncio, sem almoço.



A casa onde eu ainda conheci o Mariola e a Marreca, filhos solteiros da Mariana, é hoje uma ruína. Ao lado, com a porta de zinco, percebe-se o que foi a pequena casa (então com um minúsculo alpendre), onde ainda conheci Porfírio dos Santos, pai da Joaquina Porfíria

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Memórias da minha avó Maria Lourença e da sua amiga Maria Coelha

 

 

A minha avó Maria Lourenço, era analfabeta e, nascida e vivida na Ataíja de Cima, não tinha ido mais longe do que Alcobaça em dia de mercado, ou Fátima, em peregrinação pedestre.

Também foi, pelo menos uma vez, de férias à Nazaré, acho eu que na primeira semana de Setembro de 1954. Setembro era, naquele tempo, o tempo de os camponeses irem à praia. Lembro-me disso porque tinha eu uns seis anos e também fui e essas férias ficaram-me gravadas na memória, por ter então assistido a uma série de notáveis e impressionantes episódios, como já vos contei noutro lugar

 Mais velha, perto dos 78 anos, em 1960, foi também a Lisboa e andou de Metropolitano, acabado de inaugurar.

Não que o quisesse.

Que tinha muito tempo para ir para debaixo da terra, teimava com os netos que queriam, à viva força, pô-la ao par do progresso. Mas, gostou daquele comboio que ainda cheirava a tinta, quase não fazia barulho, não produzia fumo e era rápido. Tão rápido que, chegados à estação de destino, a exclamação foi: Já!?

 

Mas, de como me lembro realmente da minha avó, é nós ambos, sentados frente a frente, dentro da chaminé da velha casa onde vivíamos, quando na lareira, depois da ceia, crepitava um lume pequeno e rezávamos orações pelo eterno descanso dos parentes falecidos, invocados um a um. Nunca nenhum era esquecido e, de todos, tenho especialmente viva a lembrança do irmão Joaquim, falecido jovem, de desgosto e saudade contava-me ela, durante o serviço militar, ainda no tempo dos Reis e esta era apenas uma das muitas histórias que ocupavam esses serões.

 Se não estávamos à lareira, ela contando e eu ouvindo, andávamos.

É isso. É, também assim que recordo a minha avó: andando.

Íamos à missa a Aljubarrota, saía-se ainda escuro que o Padre Casimiro era homem duro e, penso agora, convicto de que a fé exige sacrifício, gostava de dizer a missa bem cedo. Ou, talvez fosse apenas conhecedor da difícil vida dos seus paroquianos e sabedor de que após a missa, mesmo no dia do Senhor, havia muito para fazer.

Toda a aldeia ia à missa, deslocando-se em pequenos grupos familiares ou de vizinhos, duas, três ou meia dúzia de pessoas, uma procissão anárquica coleando pelas curvas da estrada, a caminho de S. Vicente.

Do nosso grupo fazia parte a ti’Maria Coelha que nos esperava na porta.

Quando penso nisto fico sempre um pouco intrigado, porque já não sei se o grupo era só assim. Então, e a Joaquina, filha solteira e coabitante da ti’Maria Coelha e a minha prima Isabel que a avó e a tia criavam, não iam connosco? Se calhar não. De certeza que não. A ti’ Joaquina Coelha era mulher desembaraçada e de andar firme e apressado e, católica militante, havia de ter compromissos na Paroquial de que, aliás, havia de ser uma das zeladoras e, nesse caso, teria ido mais cedo. Se assim era, a Isabel não deixaria de ser arrastada pela tia.

E a tia Pequena e o marido e os filhos, meus primos também, que necessariamente tinham de nos passar à porta para ir à missa? E a tia Papoila e os dela que, tal e qual? E, os do tio Porfírio que a caminho de Aljubarrota haviam também de passar na nossa porta?

 A verdade é que a aldeia não tinha esses tiques urbanos do vamos juntos.

Ali era mais, ala que se faz tarde, cada um trata do que é seu mester e logo mais quando for o dia da festa então, juntamo-nos todos e dançamos e cantamos e as mulheres riem e os homens bebem. Ou então hoje não é dia de folguedos e,

E lá íamos os três, eu de garoto, elas de saia preta até aos tornozelos, lenço preto como pertencia às viúvas, que hoje por ser Domingo ia atado no alto da moleirinha, depois de as pontas darem uma volta na nuca, abaixo do carrapito, deixando ver o lóbulo das orelhas onde pendiam velhas arrecadas.

Sobre o lenço um chapéu de abas pequenas e reviradas para cima e, sobre ele, cuidadosamente dobrado ou cobrindo os ombros, conforme o pedia o tempo que fazia, o xaile.

Tudo preto como, repete-se, pertencia às viúvas.

 Se não era Domingo e não íamos à missa, eu a minha avó caminhávamos pela aldeia. Nunca em percursos aleatórios. Nunca a andar por andar, antes, sempre com destino e objectivos claros: visitar uma amiga doente, ou este ou aquele filho com o qual havia alguma coisa a tratar, vigiar os terrenos que pertenciam às “folhas” dos dois filhos emigrados, o ti Zé, a que muitos anos mais tarde havíamos de chamar o Francês – naquele ano de 1956 em trânsito de Agadir, no Marrocos agora independente, onde lhe nasceram os filhos e lhe morreu a mulher e a França que o havia de acolher até à reforma e deu a nacionalidade aos seus filhos, netos e à bisneta que ele já não conheceu – e o meu pai em Lisboa, nesse ano feito estudante noturno, em busca do exame e diploma da quarta classe que lhe havia de permitir obter a carta de condução, deixar a venda de leite e tornar-se motorista de táxi.

Naquelas andanças com a minha avó eu, curioso, debruçava-me, às vezes e apanhava coisas. É. Nunca fui caçador mas sempre me senti bem na pele de recolector, juntar é, ainda, um gosto e nem vos digo da quantidade de colecções que iniciei e nunca passaram de ajuntamentos.

Alexandre dos Cavacos, chamava-me a minha avó, mulher a quem a vida escassa ensinara a preocupar-se apenas com o essencial e a juntar e a guardar, apenas tudo o que era ou podia ser útil, como botões de roupa velha antes de ir a rasgar, cortando-se em tiras que se enrolavam em bolas, para fazer mantas de trapos.

Em casa da ti’Maria Coelha havia um tear, num quarto pequeno que estava junto à cozinha e tinha uma janela para o pátio, o sul e o sol que alumiava o trabalho da tecedeira.

Mas, que me lembre, nunca vi a ti’Maria Coelha tecer.

Poucos anos antes, em 1950, ainda ela tecia mantas e tapetes de trapos, como já contei. Mas o que a seguir vos digo há-de ter-se passado na segunda metade da década e, nesse tempo, já ela estava mais perto dos oitenta que dos setenta anos, em idade boa para a reforma e má para trabalhos que exigiam vista apurada e gestos firmes. De resto, era a filha que agora, com genica, governava a casa. Para trás tinham ficado 35 anos de viuvez. Anos difíceis, a sustentar a casa e criar os quatro filhos que o marido lhe deixou, o mais novo com apenas um ano de idade, quando morreu pela pneumónica, faz agora cem anos.

Na parede da casa de fora da ti´Maria Coelha estava pendurado um retrato de um homem bem posto. Era o falecido marido e o retrato tinha tirado em New Beresford, no Massachussets, aquando da sua aventura americana.
De vez em quando, a ti'Maria Coelha olhava o retrato com desvelo:

- Ai o meu Francisquinho. Era tão bonitinho! ... raios o partissem, batia-me tanto!

 




terça-feira, 30 de março de 2021

Um “marroquino” no Carrascal

 


No livro dos casamentos da freguesia de N. S. dos Prazeres de Aljubarrota surge-nos, em 21 de setembro de 1790, o casamento de António de Melo enjeitado do Hospital Real da Cidade de Marzagam.

Ora, Marzagam, Marzagão, há, pelo menos, três:

A freguesia de Marzagão, em Carrazeda de Ansiães;

Um município no Estado de Goiás, no Brasil, fundado no Século XX e actualmente com cerca de 2.500 habitantes;

Um distrito, no município de Rosário Oeste, no Estado do Mato Grosso, no Brasil, igualmente fundado no Século XX e actualmente com cerca de 1.400 habitantes;

Nenhuma destas teve alguma vez um Hospital Real pelo que não era a nenhuma delas que o padre se referia.

Mazagão é nome parecido, mas há também diversas. Vejamos:

Mazagão (Mazagaon), no século XVI uma ilha e hoje uma área da cidade de Bombaim, (Mumbai) na União Indiana, cujo nome alguns atribuem a colonos portugueses do século XVI. Também não foi esta a localidade em que o António de Melo foi enjeitado, desde logo porque Bombaim já não estava na posse dos portugueses desde 1661, quando passou ao domínio inglês incluída no dote de D. Catarina de Bragança que então casou com o rei de Inglaterra, Carlos II.

Mazagão, inicialmente chamada Nova Mazagão, hoje uma pequena povoação chamada Mazagão Velho[i] a trinta quilómetros da Mazagão Nova, actual sede do município, tudo na margem do Rio Amazonas, no Estado do Amapá, Brasil, foi fundada em 1770 por determinação do Marquês de Pombal que para aí quis forçar a emigração de todos os portugueses retirados da praça marroquina de Mazagão na sequência do abandono desta nos termos do Tratado de Paz celebrado com o Sultão de Marrocos.

Mazagão, hoje El Jadida, em Marrocos, foi uma praça militar na orla costeira atlântica, uma das mais importantes cidades fortificadas que os portugueses ali detiveram. Foi ocupada entre 1486 e 1769, tendo sido a última do norte de África a ser abandonada, depois de Ceuta perdida para Espanha na sequência da Guerra da Restauração, e de Tânger que, tal como Bombaim, passou para Inglaterra como parte do dote de D. Catarina de Bragança. [ii], [iii]

Tudo visto, o nosso António Mello, enjeitado do Hospital Real da Cidade de Marzagam, que em 21 de Setembro de 1791 casou em N. S. dos Prazeres de Aljubarrota com Teodora Machado, com quem foi morar na aldeia do Carrascal, só pode ter sido enjeitado na cidade marroquina de Mazagão, nos últimos anos da sua ocupação portuguesa.

Sendo de admitir que o António Mello teria na data do seu casamento uma idade próxima aos 30 anos (o que, talvez, o assento do seu óbito poderá melhor precisar) significa isso que terá nascido cerca de 1760 e era uma criança quando Mazagão foi abandonada pelos portugueses.

Mazagão era, ao tempo do provável nascimento do António Mello, uma cidade sitiada, alvo de frequentes ataques e cercos, tendo o mar como única porta de saída e dependendo da metrópole portuguesa como fonte de abastecimentos. Lá residiam, todos com as suas famílias, os militares, os burocratas, os comerciantes, os artesãos e os seus criados e escravos, perfazendo menos de duas mil pessoas.

O que terá levado ao seu enjeitamento?

Quem seriam os seus pais? Era filho de portugueses? De português(a) e escravo(a)? De português(a) e mouro(a)? O seu aspecto físico denunciava a sua progenitura?

Como chegou ao Carrascal?

Terá vindo bébé de Mazagão para Portugal e aqui sido dado a criar a uma ama, como acontecia aos enjeitados do Real Hospital de Lisboa, ou terá vindo com os demais portugueses que em 1769 aqui fizeram escala antes de serem reencaminhados para o Brasil onde, aliás, chegou apenas cerca de metade, umas 340 famílias, tendo os outros logrado ficar em Portugal?

 

A cidadela de Mazagão em meados do Séc. XVIII

 



[i] Quando andava em busca de elementos que me permitissem deslindar o local de enjeitamento do António de Mello encontrei um interessantíssimo relatório de trabalhos arqueológicos intitulado Uma Vila Pombalina na Amazônia - Mazagão Velho Em Uma Perspectiva Arqueológica, de Marcos Albuquerque e Veleda Lucena, Editora CRV, Curitiba, Brasil, 2020, que não só dá um amplo relato da fundação e vicissitudes da Mazagão amazónica, como constitui um límpido roteiro dos trabalhos arqueológicos ali realizados.

[ii] É extensa a bibliografia sobre a presença portuguesa em Marrocos muita dela acessível gratuitamente na internet mas, por toda, recomendo Os Portugueses em Marrocos, de António Dias Farinha, Edição Instituto Camões, Lisboa, 1999.

[iii] As fortificações portuguesas de Mazagão fazem parte, desde 2004, da lista do Património da humanidade da UNESCO.

terça-feira, 23 de março de 2021

A Estrada de D. Maria Pia e a Estalagem da Malaposta da Pedreira dos Carvalhos

 


No final do Séc. XVIII, mais precisamente em 1791, quando reinava a Sra. D. Maria I, foi elaborado o projecto da Estrada de Rio Maior a Leiria[i] que, por isso, ainda hoje é conhecida por Estrada de D. Maria Pia.

Aprovada por despacho, de 4 de junho de 1792, do Desembargador superintendente geral das Estradas, José Diogo de Mascarenhas Neto e construída nos anos seguintes, por ela circulou a partir de 1798 a carreira da Malaposta de Lisboa a Coimbra.

O referido despacho que se encontra integralmente transcrito por Ricardo Charters de Azevedo[ii], tal como, aliás, o projecto de “delineamento” da estrada, contém abundante informação sobre a região, incluindo os pontos de água usáveis pelos viajantes e animais de tiro e, por isso, absolutamente indispensáveis: “a maior distancia … he de três legoas desde os Candieiros athe aos Carvalhos[iii], mas quase no meio deste espaço há o poço do Muliano”.

As estalagens, ponto de alimentação e dormida ou descanso de viajantes e bestas e de muda das atrelagens, tinham de estar situadas, ao longo do percurso, a distâncias mais ou menos regulares que permitissem a substituição das parelhas, daí que o despacho não esqueça que “o sitio dos Candieiros necessita de huma estalage, e da mesma forma o dos Carvalhos”, (em 1791, conforme o Mapa, já existia uma estalagem na Cumeira de Cima[iv], no entanto, fora do caminho agora delineado).

Na caracterização da região a que, como justificação pela opção tomada, o despacho procede, o uso do solo também não foi esquecido, notando o desembargador que “a agricultura do terreno compreendido no mappa consiste em azeite, trigo, milho e vinha principalmente na porção que pertence aos Coutos”[v]

Num espaço escassamente povoado, tendo “cada legoa quadrada menos q 1800 habitantes” e muito pobre, onde os povos “respirão pobreza e rusticidade”, a estrada iria ainda, aos olhos do superintendente, contribuir para “o aumento da população e o progresso da agricultura”.

Aquando das Invasões francesas a Malaposta Lisboa – Coimbra já não existia, uma vez que face aos persistentes deficits de exploração o serviço foi extinto, tendo durado escassos seis anos, entre 1978 e 1804.

A partir daí e durante mais seis anos não conhecemos outras referências à estalagem dos Carvalhos, mas em Outubro de 1810, aquando da 3ª Invasão Francesa, a Estrada de D. Maria I foi um dos caminhos seguidos a partir de Leiria, pelos exércitos de Wellington, no seu recuo para as linhas de Torres, bem como pelos exércitos franceses de Massena que o perseguiam. De acordo com o General Koch[vi], em 7 de outubro Soult[vii] instalou-se nos Carvalhos[viii], Sainte-Croix bateu a região entre Molianos e Candeeiros e o General Montbrun instalou-se, com a artilharia, “à direita dos Molianos”.[ix]

Koch não menciona o estado da estrada, que ainda havia de ser bom, mas não podia dizer pior da zona: “É impossível ver uma região mais miseranda que a que vai de Carvalhos a Rio Maior; Candeeiros e Moliano não têm, sequer, o aspecto de lugarejos, e só apresentam meia dúzia de péssimas cabanas esparsas numa planície nua e árida onde não há cereais nem forragem nem água”.

Demos o devido desconto ao militar frustrado e cansado, mas lembremo-nos do que o Desembargador Mascarenhas Neto tinha dito dezoito anos antes.

Enquanto durou, a Malaposta teve na Estalagem dos Carvalhos um importante ponto de apoio, já que era aí que se cruzavam, era servida a ceia[x] e passavam a noite as carruagens vindas de Lisboa e de Coimbra, tudo conforme minuciosamente regulado nas Instruções para o estabelecimento das diligências entre Lisboa e Coimbra[xi].

A estalagem dos Candeeiros, referida no despacho mencionado do Desembargador Mascarenhas Neto, parece não ter chegado a ser construída, mas o lugar continuou a ter a importância resultante da existência de água no Poço dos Candieiros. Nos Molianos é também referida a existência de um poço, “de q uzam os habitantes daquele distrito”, o qual, no entanto, não é assinalado no Mappa de 1791.

Eventualmente relevantes para os viajantes deste troço do caminho terão sido as Vendas nele existentes que eram, segundo o Mappa, a Venda do Vintém, na Moita do Gavião, a Venda dos Candeeiros e a Venda da Laranja, perto da Sra. da Piedade (Molianos).

A falta de uso e de manutenção haviam de arrastar a Estalagem dos Carvalhos, para alguma degradação. Diz Godofredo Ferreira que “com a passagem do exército invasor do comando do General Massena, a casa ficou em ruína e quasi abandonada”. Na verdade, o exército francês não terá usado a estalagem por mais do que alguns dias, pelo que a ruína só poderia ter sido provocada na retirada e, para ser ruína, teria de ter sido incendiada. Mas, não há qualquer indício de isso ter acontecido. Pelo contrário, ela volta a ser arrendada logo em 1814, pelo que não estaria em muito mau estado nessa data.

O desvio da estrada real para as Caldas da Rainha e Alcobaça implicou o abandono da estrada de D. Maria Pia, a qual só veio a retomar importância no início dos anos 60 do Séc. XX, com a construção do actual IC2. Consequentemente, o serviço de diligências, quando é retomado em meados do Séc. XIX, já não passa pelas Pedreiras pelo que a Estalagem nunca voltou à sua função inicial e acabou por ser vendida em hasta pública cerca de 1856[xii]

Depois disso foi mercearia, taberna e habitação. No lugar das cavalariças, houve um lagar de azeite e na cozinha ainda há uns quarenta anos existia a grande chaminé.

Recentemente, sobre as velhas paredes, foi construída uma vivenda cujo primeiro andar assenta na cornija original de cantaria, em meia cana simples, que corre toda a fachada.

O traçado original da Estrada de D. Maria ainda hoje é facilmente reconhecido na quase totalidade do percurso entre a Moita do Gavião e as Pedreiras, constituindo, aliás, a rua principal de diversas localidades, nomeadamente, os Candeeiros, os Molianos e as Pedreiras.

Em Maio de 2020, era este o aspecto da Estalagem dos Carvalhos:


O portão da Estalagem tal como foi construído há mais de 220 anos

Vista Geral da Fachada

Uma habitação moderna construída sobre as velhas paredes



[i] Ver Ricardo Charters de Azevedo, A Estrada Rio Maior a Leiria em 1791, colecção Tempos Vidas, 15, Textiverso, Leiria, 2011.
[ii] Op.cit., págs. 55 e 56.
[iii] Ou Pedreira dos Carvalhos, que hoje conhecemos por Pedreiras.
[iv] Acima da Cumeira há um lugar chamado Albergaria. Poderiam, albergaria e estalagem, ser uma e a mesma coisa. No entanto, o Mapa assinala ambas.
[v] Aos Coutos da Alcobaça, obviamente.
[vi] General Koch, Memórias de Massena, Campanha de 1810 e 1811 em Portugal, Introdução de António Ventura, Livros Horizonte, Lisboa, 2007
[vii] General de Napoleão. Foi o comandante da 2ª Invasão de Portugal.
[viii] Certamente na Estalagem que, apenas seis anos após o fim do serviço da Malaposta, ainda havia de estar em relativo bom estado de uso e, comparativamente com quaisquer outras construções da região,  com as melhores condições para o alojamento do Estado-Maior da Brigada.
[ix] Em Janeiro de 1834, pouco mais de 23 anos depois destes acontecimentos, de novo a região entre Molianos e as Pedreiras foi objecto de ocupações militares. Ver: neste Blog A Guerra Civil (1832-1834) na nossa região, in Ataíja de Cima: A Guerra Civil (1832-1834) na nossa região (ataijadecima.blogspot.com)
[x] A ceia era a refeição da noite, a que agora chamamos jantar. O jantar era a refeição do meio do dia, aa que agora chamamos almoço, servida cerca das duas horas da tarde. Ainda era assim na aldeia da minha infância.
[xi] Godofredo Ferreira, A Mala-Posta em Portugal, Lisboa, 1946, citado em Armindo Vieira, Pequena Monografia das Pedreiras, Pedreiras (Porto de Mós), Maio 2007.
[xii] Armindo Vieira, op.cit., de onde também se retiraram as demais referências aos usos do local.

sexta-feira, 12 de março de 2021

Casamentos em S. Vicente de Aljubarrota na 1ª Década do Século XIX

 

Dos livros de casamentos da Freguesia de S. Vicente de Aljubarrota que se encontram digitalizados e actualmente disponíveis em digitarq.adlra.pt,[i] o mais antigo é o Livro de Casamentos da Fregª de S. Vicente / Livro 1º / 1802 a 1826, cujo termo de abertura é o seguinte:

“Este livro é para se fazerem os assentos dos casamentos da Fregª de S. Vicente de Aljubarrota deste Bispado de Leiria 12 de Janrº de 1803 Dr. José Joaquim Duarte Amado

Sem embargo, o primeiro dos assentos é relativo a um casamento ocorrido em 7 de Dezembro de 1802. Vamos desprezar este e concentrarmo-nos nos celebrados na década correspondente aos anos de 1803 a 1812.

 No período celebraram-se um total de 68 casamentos, à média de 6,8 casamentos/ano variando o nº efectivo de casamentos entre o máximo de 11 (em 1803 e 11812) e o mínimo de 3 em 1810.

 


1810 foi o ano em que, em Outubro, após a Batalha do Buçaco, a região foi vítima da passagem sucessiva dos exércitos de Wellington que no seu recuo para as linhas de Torres e a política de terra queimada, provocou grandes devastações, e de Massena que, em perseguição daquele, esteve acampado na Região[ii] e, daí até à sua retirada em abril de 1811, ficaram estacionadas em frente das linhas de Torres e na região entre Rio Maior e Santarém e fizeram sucessivas incursões na região para pilhagem de alimentos e forragens. No entanto, não parece poder afirmar-se uma relação directa entre o diminuto número de casamentos havidos nesse ano em S. Vicente e esses factos, porquanto, tratando-se embora do ano com menor número de casamento (3) a verdade é que um deles foi celebrado em novembro tendo os outros dois tido lugar em fevereiro e março anteriores, mas nenhum nos restantes meses, nem janeiro ou setembro, dois dos meses normalmente com mais casamentos.

Olhando para a distribuição dos casamentos ao longo do ano, tem-se uma confirmação do ditado popular que postula que “boda molhada é boda abençoada”. De facto, a distribuição do somatório dos casamentos do período pelos meses do ano, dá o seguinte resultado:

Distribuição dos casamentos pelos meses do ano

jan

fev

mar

abr

mai

jun

jul

ago

set

out

nov

dez

8

4

1

3

1

1

1

3

14

6

22

4

EEm flagrante contraste com a actualidade, quando os meses de Verão são os preferidos para as festas de casamento.

Neste período paroquiaram S. Vicente de Aljubarrota 3 padres: o Cura Tomás de Aquino da Costa, que o fazia desde 1793 e prolongou o seu magistério até novembro de 1810, quando foi sucedido pelo Cura José Maria de Sequeira que assinou o seu primeiro casamento em abril de 1811, mantendo-se até abril de 1812, seguindo-se o Cura José Joaquim Leitão que assina o seu primeiro assento de casamento em junho de 1812. Dos 2 primeiros os assentos que agora estudamos não nos fornecem outros elementos. Do padre José Joaquim Leitão, ficamos a saber que em janeiro de 1803 já era padre coadjutor da freguesia de S. Vicente e que em 1805 era igualmente coadjutor mas, agora, de Nossa Senhora dos Prazeres, da mesma Vila de Aljubarrota, cargo que também desempenhava em 1809. Não deixa de ser curioso este trânsito do padre entre as duas freguesias de Aljubarrota, sabendo nós que o curato de S. Vicente era da apresentação das Colegiadas de Porto de Mós[iii], enquanto o Vigário de Nossa Senhora dos Prazeres era apresentado pelo Abade Bernardo de Alcobaça[iv].

Os assentos mencionam, seja como oficiantes, seja como testemunhas, além dos curas Tomás de Aquino da Costa e José Maria de Sequeira, mais os seguintes padres, todos eles, como havemos de ver em outros estudos, naturais do concelho de Aljubarrota.

- José Joaquim Leitão, ou José Leitão, ou Joaquim Leitão que, como vemos, foi Coadjutor de S. Vicente e de Nossa Senhora dos Prazeres e, finalmente, Cura de S. Vicente.
- João Gomes, da Ataíja de Cima.
- Joaquim de Sousa, natural da Ataíja de Cima que, sabemo-lo, foi Cura da Paróquia de Santo António do Arrimal e faleceu em 4-2-1827, sendo sepultado na Capela da Nossa Senhora da Graça da Ataíja de Cima.[v]
- José Coelho, do Casal da Eva.
- Manuel Coelho de Sousa, ou Manuel Coelho, ou Manuel de Sousa, natural dos Casais de Santa Teresa, cujo testamento já estudámos .[vi]
- Rufino da Fonseca, que em Dezembro de 1808 é vigário encomendado de Nossa Senhora dos Prazeres
- João Pedro da Cunha, prior de S. Pedro de Porto de Mós
- António José Gomes Botelho, certamente familiar dos capitães Manuel Pedro (Manuel Pedro Gomes Botelho) e Gregório José Gomes Botelho.
- Reverendo Dr. José de Sousa, da Vila.

E, outras pessoas importantes:

- Alferes José Tavares Amado ou José Tavares
- Capitão José Joaquim Tavares Amado, ou José Tavares Amado. Trata-se, certamente, da mesma pessoa que em 1807 era Alferes e em 1809 já era Capitão.
- Alferes António da Fonseca, natural de Leiria casado com Josefa Clara Xavier do Couto, natural de Famalicão, mas residentes em Aljubarrota de onde era natural a filha Rita Rosa da Fonseca que casou com o viúvo Francisco Viegas Machado que já encontrámos como proprietário de escravos[vii].
- Capitão Bartolomeu José Rodrigues Carreira, ou Bartolomeu Rodrigues Carreira, casado com D. Maria Doroteia Ângela de Sequeira, pais de Fortunata Maurício de Sequeira que casou com Joaquim Bernardo, filho do Dr. Silvestre Triaga de Mendonça
- Capitão Manuel Pedro Gomes Botelho, ou Manuel Pedro
- Dr. Francisco Correia Triaga de Mendonça, ou Francisco Correia, ou Francisco Correia Triga, ou Francisco Correia de Mendonça.
- Dr. Silvestre Triaga de Mendonça.

Os casamentos eram por regra celebrados na Igreja Paroquial de S. Vicente. No entanto, um deles teve lugar na Paroquial de N. S. dos Prazeres e outros em capelas das aldeias da freguesia: cinco em N. S. da Graça, da Ataíja de Cima, três em Santa Teresa, dos Casais de Santa Teresa e um em S. Sebastião, na Ataíja de Baixo. Parece não haver nenhuma razão especial para o facto que, acreditamos, se deverá à vontade dos noivos.

Os párocos raramente assinalaram o estado dos noivos. Onde não há outra indicação, presume-se que eram solteiros, o que, expressamente, só é dito em 10 casos no que diz respeito aos noivos e 11 no que respeita às noivas. Como viúvos, geralmente com identificação do cônjuge falecido, são indicados 13 noivos (19,1%) e 5 noivas (7,3%), sendo que num único caso ambos são viúvos.

Onde foram viver os novos casais?

O filho do Dr. Triaga e a filha do Capitão Bartolomeu, foram assistir para a Quinta de S. Paio, Freguesia de Santa Maria da Vila de Porto de Mós.

De quatro não se indica o lugar do novo lar e, dos que saíram da freguesia, seis fixaram-se em diferentes lugares da outra freguesia de Aljubarrota, N. S. dos Prazeres, cinco foram para outras freguesias que hoje fazem parte do concelho de Alcobaça (Alpedriz, Cela, Évora, Maiorga e S. Martinho do Porto), um ficou-se na fronteira da freguesia, em Cumeira de Cima, já na freguesia do Juncal e Concelho de Porto de mós. Apenas um casal foi viver mais longe, em Abitureiras (a meio caminho entre Rio Maior e Santarém).

Os outros cinquenta ficaram na freguesia, em regra na aldeia de onde eram, ou um deles, originários. Ou seja, 73,5% dos novos casais ficaram a residir na freguesia e mais 8,8% na freguesia de Nossa Senhora dos Prazeres. O que significa que, pelo menos 82,3% desses novos casais se fixou na área da actual freguesia de Aljubarrota, distribuídos pelos diversos lugares, como segue:

 

Lugares da freguesia onde assentaram os novos casais

(N. S. Prazeres)

Ataíja de Baixo

Ataija de Cima

Cadoiço

Casais S. Teresa

Cumeira de Baixo

Vila (S. Vicente)

6

12

12

6

11

3

6

 Fará aqui sentido lembrar que, cerca de cinquenta anos antes, as Memórias Paroquiais indicam para alguns destes lugares os seguintes vizinhos: Ataíja de Baixo 32, Ataíja de Cima 53, Cadoiço 10, Casais S. Teresa 32, Vila (S. Vicente) 73.

Independentemente do crescimento que tais lugares tenham ou não sofrido entre 1758 e 1802, assunto sobre o qual, de momento, não possuímos informação, o número de novos casais nesta 1ª década de 1800 representará, certamente, um importante acréscimo ao respectivo número de fogos e, por isso, ao crescimento populacional futuro.

 De onde eram naturais e onde moravam as pessoas referidas nestes assentos, noivos, pais e testemunhas?

Infelizmente, os assentos umas vezes são omissos e outras são pouco claros, não sendo fácil distinguir quem mora aonde, ou quem é natural de onde. Assim, não havendo condições para quantificar com rigor a frequência com que surge (ou devia surgir) cada uma das localidades mencionadas, o que seria interessante para analisar a mobilidade geográfica da população de Aljubarrota neste início do século XIX, diremos apenas que as povoações mais referidas são, naturalmente, aquelas da freguesia que mais beneficiaram da nupcialidade mas, também, povoações de freguesias vizinhas, desde logo Nossa Senhora dos Prazeres e, nesta, o Carvalhal, a sua maior aldeia mas, também, o Juncal e a Maiorga, ou a Cela. As referências à cidade de Lisboa (3), dizem respeito à naturalidade da mãe de um dos nubentes e, também, ao facto de dois deles serem expostos do “Real Hospital de Cidade de Lisboa”. Referências a localidades mais afastadas, são pontuais e dizem respeito a uma única pessoa por localidade.

Ainda assim, vale a pena elencar as sessenta povoações, casais ou lugares mencionados nestes assentos porque isso, a par das já referidas localidades de assento dos novos casais, nos dará apesar de tudo, alguma noção da referida mobilidade geográfica da população deste pequeno concelho rural. No quadro abaixo inclui-se o nome da povoação ou lugar, a freguesia respectiva e, se julgado necessário para melhor identificação, o município actual. 

Lista das povoações mencionadas nos assentos

 

Abitureiras, Santarém

Aldeia Galega da Merceana, Alenquer

Ataija de Baixo, SV

Ataíja de Cima, SV

Alvados, Porto de Mós

Andaínho, Juncal

Bispado de Orense, Reino da Galiza

Bizorreiro, Paião

Boavista NSP

Boieira, Juncal

Cadoiço, SV

Carvalhal, NSP

Casal da Boieira, Juncal

Casal da Eva, NSP

Casal da Fonte, Juncal

Casal da Ladeira, Pousos, Leiria

Casal do Botas, Maiorga

Casal da Ortiga, Évora

Casal do Mogo, SV

Casal do Rei, NSP

Casal do Rei, SV

Casal dos Vales, Maiorga

Casal Novo, Juncal

Casal Velho, Juncal

Casais de S. Teresa, SV

Casal do Boieiro, Juncal

Casal do Rei, SV

Cela

 Chãos, SV

 Chequeda, NSP

Cidade de Leiria

Cividade, Batalha

Costa Barrenta, Juncal

Cumeira de Baixo, SV

Cumeira de Cima, Juncal

Ervedeira, Coimbrão

Lisboa (RHCL)

Famalicão

Feteira, São João, Porto de Mós

Juncal

Lagoa do Cão, NSP

Maiorga

Moita, Pataias

Pedreira do Muliano, NSP

Pedreiras, S. Pedro, Porto de Mós

Póvoa, Cós

Quinta da Cruz, NSP

Quinta de S. Paio, Santa Maria, Porto de Mós

Quinta de Ricos Vales, Juncal

Rebotim, Alpedriz

Ribadaves, Souto da Carpalhosa

Ribeira de Cima, S. Pedro, Porto de Mós

Lisboa, S. Miguel de Alfama,

S. Paulo, Coimbra

S. Pedro, Porto de Mós

Sta. Maria, Porto de Mós

Várzeas, Souto da Carpalhosa

Venda Nova, S. Martinho do Porto

Vila, NSP

Vila, SVA

Viseu

Ou seja, tudo se passa numa área muito restrita centrada na freguesia e alargando-se, cada vez mais tenuemente, ao então concelho e aos concelhos imediatamente vizinhos. Fora isso, apenas uma ou outra pessoa justifica as raras referências a localidades mais distantes.



[i] Consultado em 12.03.2021

[ii] O General Koch, nas suas Memórias de Massena, Livros Horizonte, Lisboa, 22007, refere-se expressamente a tropas estacionadas em Calvaria, Alcobaça, Pedreiras, Molianos e Candeeiros

[iii] “ O parocho desta igreja é cura annual de alternativa; aprezentação das colegiadas de Sam Pedro e Santa Maria da villa de Porto de Moz”, conf. Memórias Paroquiais (1758). Volume III, João Cosme e José Varandas, Caleidoscópio e CHUL, Lisboa, 2011.

[iv] Conf. Loc. Cit.

[v] Ver Ordenação Sacerdotal de Fábio Bernardino, in Ataíja de Cima: Ordenação Sacerdotal de Fábio Bernardino (ataijadecima.blogspot.com), consultado em 12.03.2021

[vi] Ver O testamento do Padre Manoel de Souza, in Ataíja de Cima: O testamento do Padre Manoel de Souza (ataijadecima.blogspot.com), consultado em 12.03.2021

[vii] Ver Escravos em Aljubarrota, in Ataíja de Cima: Escravos em Aljubarrota (ataijadecima.blogspot.com), consultado em 12.03.2021