terça-feira, 29 de novembro de 2016

O Poço do Moura



Quando eu era pequeno, no início da segunda metade do século passado, a casa da ti’ Maria Rosa, no sítio da Pedra Branca, era a última da Rua dos Arneiros.
Depois disso eram, apenas, campos de cultivo, quase todos plantados de oliveiras e só mesmo na Ataíja de Baixo voltávamos a ver casas. A primeira, a chegar à Senhora dos Enfermos, era a de Joaquim Pio que foi casado com uma nossa conterrânea, filha de António Orelha e Joaquina Porfíria (curiosamente, também, era de uma outra filha do mesmo casal a primeira casa que encontraríamos se, ali ao Casal da Ordem, seguíssemos para o caminho que vai pela esquerda, para a Lagoa Cova).

A casa da ti´ Maria Rosa estava ali, quase sozinha, tendo por vizinhos mais próximos o ti’ António Catarino, onde agora é uma oficina de lareiras, o ti’ Francisco Faxia, onde o Zé da Ilda faz garagem e, em frente a esta, a casa agora inteiramente arruinada que foi de António Orelha (filho).
Na Rua dos Arneiros encontrávamos mais, as casas de José Lourenço, António da Graça, Joaquina da Piedade, António da Piedade, António Guilhermino, José Dionísio, a do meu pai João Lourenço Quitério, Francisco Dionísio, João Salgueiro, Joaquina Cordeira, Toni, Augusto Ribeiro, António Ângelo (Rospiço) e José Veríssimo e, estávamos no Outeiro.
Na Rua da Pedra Branca, estava, além da referida de António Catarino, a casa de José da Graça.
Na Rua das Covas, havia cinco habitações: a de José Guilhermino, a de Guilhermina Vigário , a de António Lourenço, a do Quintal da Rosalia, então habitada pela família de José Rebolão e a do meu tio António Coelho Quitério (Sapatada)
A Rua do Martins não tinha casas e a Travessa dos Arneiros não existia ou seja, havia em todos os Arneiros um total de vinte e quatro casas habitadas.[i]

Junto à casa da ti’ Maria Rosa há um poço a que todos chamam (ou, melhor, todos naquele tempo chamavam que, hoje, os poços já não têm nome) o poço do Moura.
O que sempre me fez alguma confusão.
Quem seria esse tal Moura que tinha dado o nome ao poço se, na Ataíja daquele tempo, nem sequer havia nenhum Moura?
Certezas, não tenho. O que descobri parece, no entanto, ter alguma lógica. Talvez eu tenha descoberto quem era esse Moura que deu o nome ao poço.

O homem mais rico da Ataija de Cima nos inícios do Séc. XX era Matias Ângelo, o qual é geralmente conhecido por, em 1918 e como já falamos em mais de um texto neste blog, ter comprado ao burguês de Alcobaça Olímpio Trindade Jorge, o Olival dos Frades.
Ora, o Matias Ângelo era filho de Ângelo da Silva, natural dos Covões e de Maria dos Santos, exposta da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa a qual, tendo ficado viúva e com quatro filhos a cargo, veio a casar, em segundas núpcias dela, no dia 21 de Fevereiro de 1876, tinha então quarenta e quatro anos, com António de Moura, solteiro, de 55 anos de idade.
Eis aqui como, com alta probabilidade, o poço do Moura (do António de Moura?) veio à posse de Maria de Matos Ângelo, que todos conhecemos por Maria Rosa e é bisneta da dita Maria dos Santos.
O António de Moura, esse, foi baptizado em 02.07.1821 e era o filho mais velho de Bernardo de Moura e Úrsula dos Santos (também enjeitada e ama de enjeitados)[ii].
Sendo que, Bernardo de Moura foi baptizado em 23.11.1792 e era filho de João de Moura da Ataíja de Baixo e de Maria Guitéria da Ataíja de Cima, falecida esta em 6.6.1827 e ele em data desconhecida mas, antes disso.
João de Moura, por sua vez, era filho de Luiz de Moura e de Caterina Antunes, ambos da Ataíja de Baixo

E, assim, chegamos a gente que foi contemporânea do Marquês de Pombal e do grande terramoto de 1755

O poço, esse, é um dos poucos exemplares sobrantes do tipo mais comum de poço ataijense. Aberto em terreno de barro naturalmente impermeabilizante em cuja escavação, quase sempre, se encontrava pedra em quantidade suficiente para construir a parede, tecida em seco, sem qualquer argamassa. Acima da terra a parede subia para suportar um telhado de uma água sobre estrutura de madeira, com o beirado do lado oposto ao do acesso, lançando as águas para um valado que recolhia não só essas mas também as águas que caiam no terreno em redor e que, a partir daí, por infiltração e através da parede – de pedra seca como se disse – eram conduzidas para dentro do poço.
O poço do Moura apresenta a parede acima do solo rebocada exteriormente e caiada e, a porta de acesso, fechada na metade inferior por um parapeito feito de uma grande laje aparelhada, mostra um requintado acabamento, com a parte superior em arco, ao invés da normal, simples, verga feita de laje toscamente aparelhada.
Ao lado direito da porta, a parede é atravessada por uma grande pedra aparelhada que, do lado de dentro do poço se abre numa pia para a qual é despejada a água do balde que, daí e através de um furo longitudinal, chega a uma bela torneira de latão[iii], sob a qual se colocava o cântaro.
O objectivo era não perder uma única gota de água potável, bem precioso que, aqui nesta borda da serra, durante séculos e até ao ano de 1993, apenas em poços como este se encontrava e, por isso, era parcimoniosamente racionada, em regra limitada a um cântaro por dia e por família[iv] e, também por isso, naqueles tempos as portas das casas ficavam no trinco mas, os poços eram fechados à chave.









[i] E, duas desabitadas: A que tinha sido do Combasteiro e já naquele tempo era um casebre velho, utilizado como palheiro, e ficava onde está a Casa do Ramiro e a que tinha sido de João Maurício, onde agora é a de seu neto João Pérídes.
[ii] Ver, neste blog “Amas de Expostos”, in http://ataijadecima.blogspot.pt/search?q=Amas+de+expostos
[iii] A torneira é, certamente, um acrescento tardio.
[iv] Nem todas as casas possuíam poço pelo que era comum  abastecer-se do mesmo poço mais de uma família, fosse por razões de parentesco, fosse por contrato.

sábado, 12 de novembro de 2016

O sino de ouro da Casa do Monge Lagareiro


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Nas noites longas de inverno, a minha avó Maria Lourenço contava-me histórias.

Uma delas, falava sobre um sino de ouro que haveria no lagar dos frades e estes enterraram para o esconder dos franceses, durante as invasões de há duzentos anos.
Como é evidente, tal sino nunca existiu e a lenda não tem qualquer fundamento.
Em primeiro lugar, não existem nem nunca ninguém os vislumbrou, quaisquer vestígios de capela e, o frade que ocupava a Casa do Monge Lagareiro, rezaria, certamente, frente a um simples oratório móvel (a ausência de vestígio ou notícia de capela levou-nos, inicialmente, a duvidar da presença permanente de frade(s) mas, no Verão de 1799, “Fr. Luis da Purificação, Professo Bernardo, rezidente na quinta do Lagar da dita Ataija”, foi padrinho de duas crianças do lugar).

De qualquer modo, capela que houvesse, nunca justificaria um sino de ouro.
O local era, apenas, uma fábrica de azeite. E, numa fábrica de azeite, não são precisos, nem adequados, outros tesouros que não o próprio azeite.
Talvez houvesse por lá uma pequena sineta, de bronze ou de latão fundido, para avisar que alguém chegara ao portão, ou marcar o ritmo dos trabalhos e das orações mas, não mais do que isso.

Apesar disso, a história do sino de ouro terá feito os seus estragos:
Joaquim Marques Silvério (Joaquim Albino, Joaquim Alvino) era, nos anos de 1940, proprietário do lagar, quando este se desmoronou ou foi deliberadamente arrasado e se encontrava em desuso e degradação há, talvez, dez a vinte anos

As opiniões dividem-se:
Uns, dizem que o lagar foi arrasado para reaproveitamento de materiais e, nessa ocasião, derrubado o portão de acesso à quinta para facilitar o acesso de veículos.
Outros, dizem que o Silvério procurava o mítico sino de ouro que, naturalmente, não encontrou.

Algumas das vigas do telhado foram compradas por José Francisco Veríssimo que, contava este, vendo-as ao abandono, foi lá com uma enxó e, verificando que a madeira estava em bom estado e era de qualidade, as comprou e mandou serrar em tábuas, de que se fez uma mesa, uma cama e um louceiro (cantareira) que ainda existem, agora na posse dos seus descendentes.
Curiosamente, ou não, a serração era do próprio Alvino, o dono do lagar que, inicialmente, se terá recusado a serrar as tais vigas. Como contava, ainda, o José Veríssimo, o Alvino receava que eventuais pregos que se encontrassem nas vigas, dessem cabo das serras. O José Veríssimo ter-se-á prontificado a pagar o prejuízo, se o houvesse e, afinal, veio a ser encontrado um único prego que não terá causado dano apreciável.

Passou-se isto pouco depois (ou, talvez, um pouco antes) de o José Veríssimo se ter casado, o que aconteceu em finais de 1942.
Em qualquer caso, nunca nos inícios do Séc. XX, ao contrário do que se lê no Sistema de Informação para o Património Arquitectónico,
in http://www.monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=3336, (consultado em 1 de abril de 2012).  

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terça-feira, 8 de novembro de 2016

Sopa de abóbora porqueira, com feijão maduro e carnes de porco




Carnes do focinho, faceira, orelha e chispe de porco
Enchidos variados e de boa qualidade:
     Chouriço de carne
     Farinheira
     Morcela de arroz
Abóbora porqueira
Batata
Feijão maduro

De véspera, salgam-se as carnes
No dia, abre-se uma abóbora porqueira (É importante que se use abóbora porqueira, já que outras espécies tendem a ser demasiado doces), a que se retiram cuidadosamente as tripas e pevides, descasca-se e corta-se em cubos pequenos (2 cm) e lavam-se as carnes para tirar o sal em excesso.
Numa panela com água suficiente para as sopas do número previsto de comensais levam-se a cozer as carnes e os enchidos,  picando-se as farinheiras para não rebentarem e uma parte (1/4) dos cubos de abóbora.
Quando as carnes e os enchidos estiverem cozidos, retiram-se com uma escumadeira e reservam-se. Retiram-se para uma taça os cubos de abóbora, esmagam-se toscamente com um garfo  e voltam a juntar-se na água onde cozeram (se preferir, pode evitar retirá-los da água, esmagando-os com a varinha mágica).  Acrescentam-se as batatas cortadas em cubos pequenos, os restantes cubos de abóbora e o feijão maduro (feijão maduro ou feijão de descascar é o feijão já plenamente desenvolvido que é colhido logo que inicia o processo de secagem).

Cortam-se as carnes em pedaços e os enchidos às rodelas.
Leva-se a sopa à mesa na panela e as carnes e enchidos em travessas
O talher será completo (faca, garfo e colher), de modo a cada um poder servir-se das carnes a gosto, cortando-as no seu prato e deitando sobre elas a sopa.

Come-se à colher.

Este é um prato de convívio e, para garantir uma adequada variedade de carnes e enchidos, deve ser confecionado para um mínimo de dez pessoas.
Na verdade, não estamos propriamente perante uma sopa, ao menos no sentido de um “alimento que consiste num caldo, geralmente à base de legumes, que se serve no começo das duas principais refeições”, que é como o dicionário Priberam define sopa.
Antes, esta sopa de abóbora porqueira com feijão maduro e carne de porco, é o prato principal e único da refeição.


O que fica, a sopa de abóbora porqueira com feijão maduro e carne de porco, é um prato sazonal, de fim de Verão, (quando abóbora e feijão estão maduros, mas isso não é problema hoje em dia porque quer o feijão quer a abóbora se conservam muito bem, preparados e congelados). É, também, um prato típico que só vi na Ataíja de Cima, simples e delicioso, bem digno de integrar um cardápio ataijense.
Apresento-a tal como a minha mãe a confecionava e servia, sempre para um grande grupo familiar, em geral, entre as quinze e as vinte pessoas e, se agora me lembrei de aqui trazer esta receita foi porque, ainda no passado dia de Todos-os-Santos, tive o gosto de a saborear, confecionada agora pela minha irmã, para um animado grupo de familiares e amigos.
É claro que podiam migar-se finamente as carnes, mergulhando-as no caldo, passando este prato a ser tratado como uma verdadeira sopa, uma espécie de sopa de pedra.

Mas, isso seria outra coisa.