Nascida em 27 de Outubro de 1881, a minha avó Maria Lourenço
casou-se, em S. Vicente de Aljubarrota, em 20 de Janeiro de 1902, com Joaquim
Coelho que também assinava Joaquim Coelho Quitério, tinha ela 20 e ele 24 anos
de idade, ambos solteiros e jornaleiros.
Era filha de Joaquim da Graça, carpinteiro e de Maria
Lourenço ou Maria Felizarda, que depois de um
curto casamento de oito anos faleceu em 3 de Novembro de 1888, aos 32 anos, pouco mais de um mês depois do
filho(a?) mais novo, este falecido em 27 de Setembro anterior, com a idade de um ano e
dez dias e deixando órfãos a minha avó e um irmão, Joaquim como o pai, esse então com quatro anos de idade, nascido em 29 de Setembro de 1884.
O seu avô paterno, o soldado reformado
João Maria de Sousa Cláudio, de quem ela me havia de contar, setenta
anos depois, tantas histórias de batalhas com franceses e das destruições
cometidas pelos invasores cerca de setenta anos antes do seu nascimento, esse
avô faleceu em 1884, com a bonita idade de noventa e cinco anos. Não foi, pois,
a ele que a minha avó ouviu as histórias que me contava. A minha trisavó Maria
da Graça, companheira do soldado Cláudio durante largas décadas, essa, faleceu
em 1894 e bem podia ter contado à neta alguns passos da vida aventurosa do
marido e outras histórias que terá aprendido com os próprios pais e vizinhos
dessa geração, ela que, nascida em 1814, chegou a este mundo ainda estavam
fumegantes os destroços das Invasões Francesas.
O meu bisavô Joaquim da Graça, viúvo aos
trinta e cinco anos e com dois filhos tão pequenos não tinha maneira de levar a
vida e não era a sua mãe já velha e viúva que o podia ajudar. A solução era,
como foi, após menos de dois anos de viuvez, um segundo casamento.
É assim que a jovem Mariana Coelho, dos
Casais de Santa Teresa, ainda menor de vinte anos, se viu levada ao altar e, com
o necessário consentimento do pai, arranjou de uma assentada marido e duas crianças.
Havia, o casal, de lhes juntar mais outros sete filhos.
As pessoas tendem a ver com romantismo
estas histórias dos tempos antigos. Mas elas tinham muito pouco de romance, e
muito menos de romance cor-de-rosa.
A pobre da Mariana, que me esforço por
compreender e não julgar, não era, segundo os testemunhos que me chegaram,
pessoa exemplar. Ainda há poucos anos a minha amiga Morena, bisneta da Mariana,
me contava como, tendo ela própria ficado órfã de mãe antes dos sete anos de
idade e tornada desde então a mulher da casa, com dois irmãos mais novos para
cuidar, aprendeu cedo a levantar a cara e enfrentar os desafios que a vida lhe
vai lançando. Foi assim que, muito tempo após o falecimento da Mariana, sendo a
Morena ainda pré-adolescente, se viu numa discussão com a ti Joaquina Porfíria
que, irritada por a pequena não ceder numa questão sobre galinhas que não
atentaram nas extremas e foram debicar umas couves que não deviam, terminou a
discussão gritando alvoroçada:
- “És uma malcriada! És bisneta da Mariana
Raposa! Aquela punheta! ... Deus me perdoe …, por alma dela Pai Nosso!”
Não sei qual era a razão de tais azedumes,
mas talvez o facto de terem sido vizinhas e as relações de afinidade ajudassem (a
Joaquina Porfíria, era sobrinha do marido da Mariana e devia, por isso, de
acordo com o costume, chamar-lhe tia).
Certo,
é que a alcunha de Raposa se devia ao facto de sobre a Mariana impender a
acusação de ter roubado uma galinha.
Da minha avó recordo a tristeza com que me
contava como o seu irmão Joaquim, que diariamente era recordado nas orações da
noite que sempre antecediam a ida para a cama, tinha morrido, de desgosto e
saudades de casa, dizia ela, durante o serviço militar, sem ter tido tempo de
habitar a casa que construiu e hoje é a minha sala.
E recordo os lamentos e a amargura com que
sempre evocava os tempos em que teve de conviver com a madrasta, uma mulher que
segundo ela a não amava nem amava o marido e não sabia cozinhar.
O facto de o meu bisavô ser carpinteiro
não o livrava da pobreza, às vezes, quase miséria. Ali na borda da serra, que
ainda em meados do século XX eu conheci tão pobre, um oficial, fosse
carpinteiro, pedreiro, sapateiro ou de outro mister, só o era a tempo parcial,
à medida das necessidades dos pobres vizinhos.
Não havia oficina, mas apenas um limitado
conjunto de ferramentas e a obra fazia-se em casa do cliente, levando-se as
ferramentas numa alcofa ou nuns alforges e ia também, a maioria das vezes às
costas, o banco de carpinteiro, um meio tronco suportados por quatro pés
oblíquos, o lado plano virado para cima, em cujo extremo estava pregado um
pedaço de tábua com um recorte em V, onde se fixavam as peças a trabalhar.
Às vezes, o contrato com o cliente incluía
o almoço. Não foi o caso naquele dia em que, contava-me a minha avó, ela
criança foi encarregue pela madrasta de um trabalho típico das crianças, o de ir
levar o almoço ao pai, almoço que era também o seu.
Naquele dia, sentados a uma sombra, munidos
cada um de sua colher com que haviam de comer do mesmo tacho, o meu bisavô
desatou o lenço que amarrava o testo e provou o almoço, uma espécie de sopa de
serralhas cozidas em pouco azeite.
- Não tenho fome, disse ele tristemente. E
ficaram, ambos, abraçados e em silêncio, sem almoço.