terça-feira, 31 de março de 2020

Pneumónica, Gripe A e outras epidemias

Nos anos de 1918 e 1919, no rescaldo da primeira guerra mundial, o mundo foi assolado por uma epidemia de gripe provocada por um vírus da estirpe A (tal como a actual gripe) que ficou conhecida por gripe espanhola ou, mais vulgarmente, por pneumónica, a mais mortífera de todas as epidemias da história.

As grandes epidemias são de todos os tempos e a mais famosa delas é, talvez, a peste negra que assolou a Europa no Século XIV e terá reduzido a população europeia a cerca de metade, tendo sido precisos quase duzentos anos para recuperar a população perdida.
Nesse tempo Portugal teria cerca de dois milhões de habitantes.

As pessoas do meu tempo aprenderam na escola sobre as epidemias de cólera-morbo e febre-amarela que afectaram Portugal em meados do Século XIX, entre 1853 e 1857, com gravíssimas consequências, tendo, só em Lisboa, falecido mais de 5.000 pessoas. Quatro anos depois, em 1861, o próprio Rei D. Pedro V viria a falecer de febre tifóide, outra das doenças infecciosas que atormentou o século.

Os navegadores e conquistadores espanhóis levaram para a América Central a gripe, que os índios locais desconheciam, e há quem diga que isso foi uma das maiores causas do quase total desaparecimento daqueles povos.
Em contrapartida, logo na primeira viagem de Colombo, no Haiti, adquiriram esses navegadores a sífilis, doença que era desconhecida na Europa onde se veio a disseminar com tanta rapidez e intensidade que no hospital Real de Todos-os-Santos, mandado construir por D. Manuel I em Lisboa, já havia uma “casa das boubas” para internar os doentes por ela afectados.
Da Europa, a doença espalhou-se rapidamente por todo o mundo e dela sofreram milhões de pessoas, durante 450 anos, até à descoberta da penicilina, em 1941.
Desta doença veio a morrer o rei Filipe IV de Espanha, III de Portugal.
As pessoas da minha geração lembram-se de um homem do Cadoiço que sempre conheci por Joaquim Doente, o qual nasceu cego e com a pele escamosa em razão da sífilis de que o seu pai sofria.
A sífilis atormentou a Europa durante cerca de 450 anos, até à descoberta da penicilina, mais a mais porque, sendo privilegiadamente transmitida por via sexual, a doença acarreta uma forte condenação moral e o estigma do portador, por devasso ou promíscuo.
Aliás, depois de uma forte queda  associada à descoberta da penicilina, a prevalência da síifilis encontra-se em crescendo em vários países, falando a revista especializada de medicina Lancet em milhões de infectados e cerca de 100.000 mortos de sífilis em 2015.

A pneumónica, essa, correu o mundo no final da Grande Guerra num curto período de pouco mais de 18 meses e os seus efeitos foram devastadores:
Terão morrido, em todo o mundo, entre vinte a quarenta milhões de pessoas, estudos mais recentes, falam em números mais elevados, alguns em cem milhões de mortos, o que, em qualquer caso, torna a pneumónica na doença epidémica mais mortífera de todos os tempos.

Em Portugal, segundo o professor João Frada in “A gripe pneumónica em Portugal Continental – 1918”. 1ª edição, Lisboa: Sete Caminhos, 2005, terão havido um pouco mais de sessenta mil falecimentos provocados pela pneumónica, mas outros cálculos falam em cem mil e, até, em duzentos mil mortes.

A incidência da pneumónica no distrito de Leiria foi particularmente grave, o que levou à proibição de feiras e romarias na tentativa de limitar as situações de contágio:


Também a Ataíja de Cima não ficou imune à doença, tendo eu conhecimento de a pneumónica aqui ter provocado, pelo menos, cinco mortes:

- António Matias que era proprietário da casa alta do Outeiro, avô e bisavô dos Matias actuais;
- Delfina, sua filha, solteira;
- Francisco Sabino, avô do nosso amigo Américo Sabino e de muitos outros;
- Tomás (só sei o apelido) que era casado com Maria Constantino e foi avô dos "delfinos";
- Maria, de17 anos, filha de Bernardino dos Santos (irmã, portanto, de Manuel e António "Casal") 

As condições sanitárias e os conhecimentos da medicina são, hoje em dia, completamente diferentes do que eram em 1918 (só cerca de 1930 é que se estabeleceu que o vírus da pneumónica era um vírus da estirpe A já que, em 1918, os conhecimentos da medicina o não permitiam).
A capacidade de isolar o vírus muito cedo e de produzir rapidamente vacinas e medicamentos e, talvez mais importante, a monitorização a nível mundial da evolução da doença, a massiva divulgação de informação sobre os comportamentos a adoptar pelos doentes e os sistemas que por todo o lado se estabeleceram com vista a prestar assistência às pessoas afectadas e, ainda, no caso de Portugal e da generalidade dos países desenvolvidos o acesso universal a cuidados de saúde, tem permitido limitar drasticamente os efeitos mortais das doenças contagiosas.

Mas isso não dispensa que cada um de nós tenha os cuidados adequados para evitar ou limitar as possibilidades de contágio.

Hoje, confrontados que estamos com a pandemia do Covid-19, é nosso dever tomar os cuidados adequados para evitar contagiar e ser contagiados e, quando nos sentirmos menos confiantes, de nos lembrarmos do que os que nos antecederam tiveram de enfrentar.


O texto, que agora republicamos com ligeiras actualizações, foi originalmente publicado neste blog em 22 de Dezembro de 2009.

Nota: A notícia da 5ª vitíma acima referida foi-nos confirmada hoje mesmo por um seu sobrinho-neto, o nosso amigo Jorge Bernardino, a quem agradecemos. 31.3.2020 JQ

domingo, 29 de março de 2020

A Imagem e a Capela de Nossa Senhora da Graça da Ataíja de Cima – Lenda e História



Nos “Tesouros Artísticos de Portugal”[i] a imagem de Nossa Senhora da Graça é mencionada nos seguintes termos:

ERMIDA DE NOSSA SENHORA DA GRAÇA. Situa-se em Ataíja e guarda uma escultura de pedra quinhentista[ii] representando o orago, prejudicada por uma infeliz repintura. Neste lugar existiu um convento de frades, hoje reduzido à fachada setecentista, brasonada.”

A infeliz repintura, como lhe chama o autor, que dá à imagem o aspecto que actualmente lhe conhecemos, foi, segundo contava o meu pai que o terá ouvido ao seu, feita em finais do séc. XIX, ou inícios do séc. XX, porque a anterior se encontrava muito degradada, por Manuel Ferreira da Bernarda ou um outro pintor da sua fábrica.
O convento de frades, esse, nunca existiu. Na Ataíja nunca houve um convento de frades. Apenas, um lagar de azeite da Ordem de Cister construído em meados do séc. XVIII e que é a construção a que o autor se refere

Naquele tempo, andavam a construir uma casa e foram tirar a pedra a um sítio, a que agora chamam a Pia da Senhora ou a Cova da Santa.
Carregaram num carro de bois uma grande pedra que daria um bom cunhal e deixaram-na no local da obra. No dia seguinte a pedra não estava onde a tinham deixado mas, perante a incredulidade geral, no sítio de onde a tinham tirado.
Tornaram a carregar a pedra e o acontecido voltou a acontecer e repetiu-se, ainda, uma terceira vez.

Não havia dúvidas. Era um milagre.

Perante tal maravilha, logo o povo ali decidiu que haviam de mandar a um imaginário que fizesse da pedra uma bonita Nossa Senhora que, atentando bem, já ali se vislumbrava e, do mesmo passo, decidiram que a casa que queriam construir já não seria para nela habitar uma família, mas seria a Capela onde passariam a venerar a imagem.



A minha avó Maria Lourenço que me contou esta história e muitas outras, era analfabeta e não podia saber que entre os anos de 1545 e 1563 decorreu em Trento, cidade situada no norte de Itália, um dos mais importantes concílios da história da Igreja Católica, o Concílio de Trento ou Tridentino, convocado pelo Papa Paulo III em reação às divisões provocadas pelo surgimento do protestantismo, na sequência da publicação, em 1517, das 95 Teses de Lutero.

Lembremo-nos igualmente – e a minha avó também o não podia saber – que, por esses tempos, por toda a primeira metade do séc. XVI, se travou em Portugal uma longa disputa em torno da criação e consolidação do Tribunal do Santo Oficio[iii].

Ou seja, na segunda metade do séc. XVI, estavam reunidas todas as condições para que na nossa região, como por todo o Portugal, se fizessem sentir os ventos da Contra-Reforma, erguendo-se nesse tempo a maioria das capelas que ainda hoje existem nas nossas aldeias.

É neste contexto da Contra-Reforma e da acção do Santo ofício que os milagres se multiplicam:
Ao milagre da imagem de Nossa Senhora da Graça, que terá acontecido algures na segunda metade do séc. XVI, época de fabricação da imagem, acrescem pelo menos três milagres supostamente acontecidos em Aljubarrota.

O Couseiro dá-nos conta do aparecimento miraculoso da imagem da Senhora do Laço, acontecido em 1568[iv].
O mesmo milagre é contado em diferente versão nas Memórias Paroquiais[v] onde, por outro lado, se acrescentam outros milagres imputáveis à mesma imagem. No entanto, sem adiantar data, o pároco limita-se a dizer que o milagre do laço “é tradição antiquíssima”.

Segundo o que o Padre Luís Cardoso, por sua vez, diz no Dicionário Geográfico,[vi] este milagre teria acontecido cerca de 1617[vii].
- Um crucifixo que abriu os olhos e suou, milagre este que foi presenciado por “António Coelho, natural da Ataíja de Cima, homem de boa via e honestos procedimentos”, diz o Padre Cardoso.


E, não ficam por aqui os milagres locais.

Em 1611, num mesmo dia, mais dois milagres:

- Uma imagem do Senhor Preso à Coluna que saiu incólume do incêndio que devorou os panos sobre que se encontrava.


Os “milagres”, muitas das vezes consistindo em imagens aparecidas ou semoventes[viii] ou as duas coisas, “aconteceram”, ou foram “recuperados”, em grande quantidade, entre o final do séc. XVI e por todos os séc. XVII e XVIII e estão na origem de muitos edifícios religiosos, por vezes imponentes santuários. (é o caso – e para dar, apenas, três exemplos da nossa região – do Senhor Jesus da Pedra, em Óbidos, do Senhor Jesus dos Milagres, na localidade do mesmo nome, perto de Leiria e do Santuário de Nossa Senhora da Nazaré, no Sítio)[ix].

A veracidade da maioria destes milagres é, no entanto e hoje em dia, objecto de dúvida generalizada, inclusive por parte da Igreja Católica que não reconhece muitos deles.

Seja como for, o nosso modesto milagre deu origem à também modesta capela. Tão modesta que, ainda em meados do Século XVII, quer dizer, mais ou menos quando o Duque de Bragança, depois D. João IV e os seus companheiros puseram fim à união com a Espanha filipina e recuperaram a independência de Portugal, era descrita no Couseiro, um importante repositório da realidade da Diocese de Leiria o qual contém, designadamente, um completo inventário e descrição das igreja, capelas e ermidas do bispado, nos seguintes termos:

“… (no lugar da Ataíja de cima há uma ermida) da invocação de Nossa Senhora da Graça, a cuja fábrica são obrigados os moradores do mesmo Lugar; a imagem da Senhora é de vulto, pintada, sem nicho, nem retábulo, nem capela, nem igreja forrada, nem sino.”

A imagem era a que conhecemos, eventualmente com diferente pintura. A capela, essa era bem mais pobre. Quatro modestas paredes cobertas de telha vã sem, sequer, um sino que chamasse os fiéis à oração.

Não sabemos quando é que a imagem de Nossa Senhora da Graça ganhou o seu nicho. Talvez, como indicia a sua traça, ainda na segunda metade do Séc. XVII ou na primeira do Séc. XVIII. Esse nicho está agora como peça decorativa do Adro (será, brevemente, incorporado no Centro Paroquial em construção), depois de em 2003 ter sido substituído por uma cópia em mármore, aliás fielmente executada.

Sobre o que seria a arquitectura da capela em meados do Séc.  XVIII não se pronuncia o pároco de São Vicente que, em resposta ao inquérito pombalino[x], apenas diz que:

“… (a freguesia de São Vicente) Tem mais a cappela de Nossa Senhora da Graça cuja imagem parece bem antiga e hé de pedra e do povo daquele lugar que se chama a Athaeja de Sima. Esta cappela está em um largo no meyo do lugar[xi]; tem seu juis e mordomos que lhe administram alguns rendimentos que tem que servem para a fabrica da ditta capella e festa da mesma Senhora que se faz em hῦas das oitavas do Natal, e nesse dia acode a ella bastante gente dos povos vizinhos e tem também esta cappela em o altar a imagem do Menino Jesus.”

Por este tempo estaria a ser plantado o olival dos frades e a ser construído o lagar, de que hoje apenas sobram as ruinas da cerca da quinta em que se inseria e as da casa do monge lagareiro. Factos que não deixaram de ter grande importância na vida Ataíjense e, portanto, também na sua capela.
Mas isso, terá de ficar para uma outra vez.


(texto publicado inicialmente em 117-01-2018, revisto e actualizado em 29-03-2020)



[i] Tesouros Artísticos de Portugal, orientação e coordenação de José António Ferreira de Almeida, edição Selecções do Reader’s Digest, Lisboa, 1980
[ii] Quinhentista. Relativo ao séc. XVI.
[iii] V. Marcocci, Giuseppe, A Fundação da Inquisição em Portugal: um novo olhar, in Lusitania Sacra. 23 (Janeiro-Junho 2011) 17-40
[iv]. Couseiro ou Memórias do Bispado de Leiria, Transcrição da 2ª edição de 1898. Colecção Tempos & Vidas, Textiverso, Leiria, 2011. Pág. 263 e nota 23.
[v] Memórias Paroquiais (1758), Volume III, Introdução, Transcrição e Índices, José Cosme e José Varandas, pág. 11, Edição Caleidoscópio e Centro de História da universidade de Lisboa, 2011.
[vi] Padre Luís Cardoso, Dicionário Geográfico, Tomo I, pág. 314, Lisboa, MDCCXLVII.
[vii] “há cerca de trina anos”, diz ele.
[viii] Que se move por si própria
[ix] No Brasil, uma Senhora da Nazaré semovente, aparecida em 1700, deu origem ao Círio de Nossa Senhora da Nazaré de Belém do Pará que é, por muitos, considerado a maior manifestação religiosa católica do país, nela participando mais de 2 milhões de fiéis.
[x] V. Memória Paroquiais (1758),  Volume III, edição Caleidoscópio e Centro de História da Universidade de Lisboa, 2011.
[xi] Lugar esse (Ataíja de Cima) que, diz o padre noutro lugar, tem cinquenta e três vizinhos (casas habitadas) e cento e setenta e sete pessoas.

sábado, 14 de março de 2020

Anos trágicos na Ataíja de Cima - O surto de Tifo de 1832 e a Epidemia de Cólera de 1833


(a propósito dos tempos que correm) 

Em 1832, verificaram-se na Ataíja de Cima 10 falecimentos, um número invulgarmente alto face à média normal de três mortos por ano.

Entre os dias 10 de Março e 21 de Abril, ocorreram a maioria das mortes do ano: 6 pessoas. Destes, o falecimento em 20 de Março de uma inocente sem nome, nascida nesse mesmo dia, filha de Custódia Maria, a qual “foi batizada em casa por necessidade por Paulo dos Santos a quem examinei pelo dito batismo”, conforme se escreve no respectivo assento de óbito, é, talvez, um caso diferente, um problema sobrevindo durante o parto, como era vulgar na época. Note-se, aliás, que a mãe sobreviveu, aparentemente sem sequelas.

Dos 10 falecidos no ano, 1 era viúvo, 2 casados e 7 solteiros, 3 dos quais “inocentes” e um “menor”. Dos solteiros, 3 eram expostos do Real Hospital da Cidade de Lisboa que se encontravam a ser criados por amas locais.

Dos 4 falecimentos ocorridos fora do período crítico que se desenrolou entre 10 de Março e 21 de Abril, dois foram de crianças, de 4 e 11 anos e, os outros dois, de pessoas idosas:
Um destes foi Veríssimo Amado, uma pessoa de quem já falamos noutros posts publicados neste blog e que, nesse tempo, tinha um filho já com 45 anos de idade. Tratava-se, pois, de uma pessoa de idade avançada para a época, pelo que se pode admitir que a morte se deveu a causas naturais.

O outro foi a viúva Micaela dos Santos, de quem também já falámos, a propósito do seu testamento. A Micalela já era casada em 1790 (42 anos antes) e, em 1832, era, seguramente, pessoa de avançada idade para a época, pelo que também a sua morte pode ser tida como devendo-se a causas naturais.

Qual terá sido a razão ou a principal razão, responsável por aquele anormal número de mortes?
Ao contrário do que se passa com a Cólera-morbo de 1833, não tenho certezas mas, muito provavelmente, tal mortandade é consequência do surto de tifo que, nesse ano de 1832, ocorreu em Portugal, com especial incidência nas regiões de Lisboa e Ribatejo.
[i]

O tifo epidémico, ou tifo exantemático ou, apenas, tifo[ii], é uma doença epidémica transmitida por parasitas comuns no corpo humano, como piolhos. Uma outra forma de tifo, menos agressiva e que é, ainda, endémica em certas regiões rurais de África, da América Central e do Sul e da Àsia é o chamado tifo murino, cujo principal vector[iii] é uma pulga que parasita os ratos e outros pequenos mamíferos.

As epidemias mais graves verificaram-se em situações de grande aglomeração de pessoas e cuidados limitados de higiene, como exércitos (foi a principal causa de morte entre os soldados de Napoleão durante a campanha da Rússia).
Por essa época começou-se a compreender a relação entre o tifo e a falta de higiene e o exército francês introduziu nas medidas de disciplina a obrigatoriedade de fazer a barba e de cortar o cabelo rente, como forma de acabar com os piolhos que eram o vector da infecção.

E, de facto, as medidas de higiene capazes de erradicar ou controlar as populações de ratos e piolhos, continuam a ser estritamente necessárias para evitar o ressurgimento desta e de outras doenças infecciosas.

O Tifo chegou a Portugal no final do século XV e foi evoluindo por surtos até às Invasões Francesas, a partir de quando se tornou endémico entre nós e assim se manteve até ao Séc. XX[iv] (o último grande surto de tifo, do qual resultaram cerca de 3.000 mortos, ocorreu em 1918-1919 sobrepondo-se, parcialmente, à pneumónica).
Pelas mesmas razões de falta de higiene, mesmo depois disso o Tifo continuou a matar gente em prisões e campos de concentração (matou centenas de milhares de pessoas em campos de concentração nazis, durante a segunda guerra mundial).[v]


Passado um ano sobre o surto de tifo, foi a Ataíja de cima vítima de uma nova e mais mortífera epidemia, que assolou a Europa nos anos de 1832 e 1833 e chegou à nossa aldeia em Junho de 1833.

A doença era conhecida há longo tempo. Os portugueses conheciam-na desde o séc. XVI, por ser endémica na Índia onde se manteve circunscrita até à década de 1820, quando atingiu a Rússia e continuou a progredir para ocidente.

A cólera chegou a Portugal “trazida a bordo de um navio que, de Ostende[vi], transportava soldados para ajudarem D. Pedro no cerco do Porto”[vii], quando já tinha atacado com grande virulência em Paris, no mês de Abril desse ano de 1832.[viii]

Pela primeira vez, foi antecipada a propagação de uma epidemia e a sua evolução sistematicamente acompanhada e, por toda a Europa, foram publicados numerosos livros e folhetos contendo quer instruções sobre os comportamentos a adoptar face à doença, ou para evitar a doença, quer relatórios médicos descrevendo as observações aos doentes, incluindo numerosas autópsias, ou relatando os efeitos dos medicamentos[ix] experimentados, seja, fazendo a história médica da epidemia[x].

Exemplo de medida “preventiva” é o Aviso de D. Miguel I[xi] ao Cardeal Patriarca de Lisboa que a seguir se transcreve:

TENDO apparecido em algumas Nações, e ultimamente mais proximo a nós, em a França, huma enfermidade nova, que se está conhecendo com o nome de Cholera-morbo Asiatica, e cujos terríveis estragos são talvez hum castigo, com que a Divina Omnipotência quer punir, e reprimir esse espirito de perversidade, e de impiedade, que desgraçadamente tem chegado a tamanho gráo no Século, em que vivemos, deve, em taes circumstancias, hum Povo Catholico, e que tanto se préza de o ser, como o Povo Portuguez, acudir, e reunir-se junto aos Altares a implorar a Clemencia do Omnipotente, e a adorar a Sua Alta Providencia, mesmo quando assim se mostra severa, e justiceira: He por tanto da vontade de Sua Magestade que Vossa Eminência ordene que, para o sobredito fim, hajão Preces públicas em todo o Patriarchado. Sua Magestade Manda lembrar a Vossa Eminência que he necessário que nessa ocasião os Ecclesiasticos, a quem isso competir, usando do importante Ministerio da palavra, que lhes incumbe, fação conhecer aos Povos que não basta a Oração para se applacar a Justiça Divina ofiendida, mas que são precisas as boas obras, affastando elles com especialidade, e repelindo firmemente para longe de si as idéas de corrupção, e de impiedade, que os máos, para seus fins perversos, tanto tem procurado espalhar; e tambem que lhes fação vêr os muitos motivos , que temos para esperar, e confiar na Misericordia de Deos, que sempre se tem mostrado propicio aos Portuguezes , e cujos Beneficios , ainda nestes passados tempos tão visivelmente acabamos de experimentar, livrando-nos por duas vezes da Facção revolucionaria, que dominava, e que
pertendia destruir o Throno , e a Religião, e causar a total ruina de Portugal. O que de Ordem do Mesmo Senhor communico a Vossa Eminência para sua intelligencia, e para que assim se execute,  = Déos guarde a Vossa Eminência. Çamora Corrêa em 28 de Maio dé 1832. = Eminentíssimo e Reverendíssimo Senhor Cardeal Patriarcha. = Luiz de Paula Furtado de Castro do Rio de Mendoça.


Depois do Porto, em cuja região terá matado cerca de 13.000 pessoas, a Cólera alastrou a Lisboa e outras regiões e terá feito, no país, um total de cerca de 40.000 mortos até desaparecer no final de 1833.[xii]

À Ataija de Cima a cólera terá chegado em Junho de 1833 provocando o que há-de ter sido uma hecatombe social, com a morte, num espaço de quarenta dias, de um total de 16 pessoas (9 em Junho, 7 em Julho).[xiii]

Quem morreu?
2 eram viúvos, 6 casados e 8 solteiros, dos quais, 3 eram inocentes e um menor.
Dos inocentes, 2 eram expostos do Real Hospital da Cidade de Lisboa, que estavam a ser criados na aldeia.
João Machado que, no final do ano anterior tinha assistido à morte de uma filha verá, em Junho deste ano morrerem, no mesmo dia, a mulher e uma outra filha.
Bernardo de Moira verá desaparecerem-lhe, no espaço de 3 dias, um filho inocente e um menor.
A Custódia Maria, morreram o marido e um exposto que criava.
Luis Machado e a mulher também morreram no espaço de três dias.


10 mortos em 1832, a maioria deles em razão de um surto de tifo e,
18 mortos em 1833, a maioria deles por efeito da epidemia de cólera-morbo que assolou o país.

vinte e oito mortos em dois anos, numa aldeia onde na maioria dos anos do Século XIX, morreram 3 ou 4 pessoas por ano, equivale, grosso modo, ao número de mortes que havia de ter lugar em sete a nove anos.
É difícil calcular com rigor a dimensão da tragédia, tanto mais que não dispomos, ainda, de estimativas fiáveis sobre a população que a aldeia teria naquele tempo, mas, seguramente, morreu naqueles dois anos mais de 10% da população da aldeia).


Conseguem imaginar?


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NOTAS:
(todas as publicações referidas nas Notas se encontram disponíveis online.)


[i] Em 1810-1813, um outro surto de tifo tinha percorrido todas as localidades mais importantes do país, provocando um tal número de mortes que há quem sustente que mais vítimas fez o tifo do que as tropas francesas.
[ii] O presente texto é, no que se refere à descrição e história da doença Tifo, subsidiário de: “Tifo epidémico em Portugal: um contributo para o seu conhecimento histórico e epidemiológico”, artigo de J. A. David de Morais, publicado In Medicina Interna, Revista da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, VOL.15 | Nº 3 | JUL/SET 2008
[iii] Vector, em medicina, é o artrópode que transmite o germe de uma doença (bactéria, vírus, ou protozoário) de um indíviduo doente a um indivíduo são. (in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], consultado em 14-12-2013. Consultado hoje, o mesmo dicionário dá uma definição mais simples: "organismo vivo que é capaz de transmitir agentes infecciosos, bactérias,virus, etc a pessoas ou animais".).
[iv] Especialistas contam um total de dezassete surtos de tifo, em Portugal, durante o Séc. XIX.
[vi] Ostende situa-se na actual Bélgica que, por esse tempo, alcançava a independência.
[vii] O cerco do Porto teve início em finais de Julho de 1832. Os "soldados" em causa eram, certamente, mercenários que tinham combatido nas lutas pela independência da Bélgica, iniciadas em 1830.
[viii] A expressão entre aspas é de CORREIA, Fernando da Silva - Portugal Sanitário (Subsídios para o seu estudo. Lisboa: Ministério do Interior ; Direcção Geral de Saúde, 1938, p. 465), citado em: Portugal e as Conferências Sanitárias Internacionais (Em torno das epidemias oitocentistas de cholera-morbus), por Maria Rita Lino Garnel, Revista de História da Sociedade e da Cultura, 9, Centro de História da Sociedade e da Cultura, Universidade de Coimbra, 2009.
[ix] Melhor seria dizer mezinhas.
[x] No caso de Portugal, por exemplo, o livro: Um fragmento da història da epidemia que, sob o nome de Còlera-morbus asiàtico, havendo percorrido a Àsia e a maiòr parte da Europa, chegou a Portugal no corrente anno de 1833, pêlo Dr. Lima Leitão.
Para o caso de França, por exemplo: RELATION sur le CHOLERA–MORBUS OBSERVÉ A PARIS , DANS LE MOIS d'AVRIL l832, SUIVIE D’UN RAPPORT SUR L’ÉPIDÉMIE CHOLÉRIQUE QUI A RÉGNÉ DANS l'arrondissement DE BERNAY (EURE), DEPUIS LE 29 AVRIL jusqu'au 27 SEPTEMBRE l832, PAR M. NEUVILLE,
[xi] Estavamos em plena Guerra Civil que opunha os absolutistas chefiados por D. Miguel (que tinha usurpado o Trono), aos liberais fiéis a D. Pedro IV.
As posições de cada uma das partes em conflito perante a epidemia é um aspecto que acrescenta interesse ao estudo do tema. 
O Aviso transcrito é um claro exemplo demonstrativo do extremismo político e religioso de D. Miguel.
[xii] Havia de voltar várias vezes durante as décadas seguintes e, com particular virulência, em 1853-1856.
[xiii] Nesse ano houve, na aldeia, mais duas mortes que, no entanto, não terão sido provocadas pela cólera.