A morcela de arroz traz-me à memória os tempos da matança
que, tal como eu me lembro dela em casa dos meus pais e nas de outros
familiares e já referi em “A matança do porco”, era a grande festa familiar.
A matança do porco praticamente desapareceu e, nos casos em
que ainda subsiste na nossa região é, hoje em dia, mero divertimento. Quero
dizer, hoje já não se mata o porco com o fito de obter alimento para durar um
ano, nem se faz a festa da matança como modo de consumir todas as partes do
animal que se não conseguia conservar e paga aos familiares colaboradores da
função que era muito exigente de trabalho. Hoje, quando há matança, o
divertimento é o mote e, precisamente ao contrário de outros tempos, as únicas
partes que se guardam são as que se não conseguem comer.
Em aparente paradoxo, nunca foi tão fácil comer morcela de
arroz como hoje; Há-as todo o ano em abundância, fabricadas em salsicharias
mais ou menos artesanais ou, mesmo, industriais, com qualidade bem apreciável e
origens várias.
Normalmente, as morcelas de arroz são referidas como um
produto típico da alta estremadura ou da região de Leiria e, em defesa dessa
origem e da qualidade do produto, foram criadas a Confraria da Morcela de Arroz
da Alta Estremadura, a Associação de Produtores da Morcela de Arroz de Leiria
e, os problemas associados à sua conservação[i] são,
agora, objecto de teses de mestrado.
A verdade, no entanto é que há (ou havia) produção caseira de
morcelas de arroz em toda a faixa que vai desde o Valado dos Frades e Alcobaça,
até à Batalha, a Ourém, Tomar, Ferreira do Zêzere, Oleiros e Fundão.
As da Batalha e as do Fundão tornaram-se já produtos de
salsicharia industrial e são vulgares nos principais supermercados, onde também
já vi morcela de arroz de Lamego que, aliás, nunca provei.
Também em Espanha se fabricam morcelas de arroz e são
famosas as de Burgos[ii] que se
fazem com sangue e banha de porco, cebola, arroz, pimentão e sal. E, ali ao
lado, por todo o Aragão, faz-se uma morcela parecida que também leva arroz e
variados ingredientes como anis, avelãs e pinhões. [iii]
Até ao Séc. XVIII, quando passou a incorporar-se o arroz na
morcela de Burgos o recheio original era de miolo de pão.
No que à nossa região (para este efeito, a Alta
Estremadura) diz respeito, a morcela de arroz é confeccionada, com ligeiras
variações locais, conforme a receita registada por MAPONE (Manuel Poças Neves)
e que é a apresentada nos sites da Região de Turismo de Leiria-Fátima e da
Câmara Municipal da Batalha,[iv] como segue:
Morcela de Arroz da Batalha
Ingredientes:
2 kgs de carne magra de porco (convém carne entremeada
da ponta da costela); 1 pedaço do lenço ou do riçol[v]; 3 cebolas grandes; 1 ramo grande de
salsa; 1 litro +/- de sangue; sal, 50g de cominhos, 25g de cravo, colorau q.b.;
pimenta ou piripiri em pó a gosto; 1kg de arroz de boa qualidade.
Preparação:
Miga-se a carne miúda para dentro de um alguidar, um bocado de lenço de
preferência ou do riçol.
Junta-se o sangue, o sal e os temperos.
Com pouca água põe-se ao lume num tacho e quando levantar fervura põe-se
o arroz, a salsa e as cebolas picadas o mais fino possível. Quando o arroz
estiver meio cozido tira-se do lume e deita-se no alguidar. Junta-se também um
pouco de água. Mistura-se tudo muito bem, com a mão mexendo sempre e prova-se.
Se necessário rectificam-se os temperos. Enchem-se as tripas, atam-se com uma
guita e vão a cozer numa panela com bastante água.
Quando estiverem meias cozidas tiram-se e picam-se com uma agulha ou
alfinete. Voltam a acabar de cozer.
Nota: as tripas de porco foram previamente lavadas, areadas com sal,
laranjas e cebolas cortadas aos bocados
Na verdade, a confecção das morcelas de arroz tem
alguns pontos críticos que importa realçar:
O sangue: A matança começa com a morte do animal e, aí,
é o momento de recolher o sangue com que hão-de ser feitas as morcelas. Quando
o sangue começa a correr, já no fundo do vaso onde se recolhe há-de haver vinho
tinto para o diluir e evitar que oxide e coalhe.
As tripas: Morto e lavado o porco,[vi] retiram-se as tripas que, imediatamente, vão a lavar. Esta é uma
operação morosa e meticulosa que exige água corrente[vii] para a retirada de todas as fezes e depois, a raspagem, viragem e
intensa lavagem com laranja, limão, pedaços de cebola e sal[viii].
A cozedura: A cozedura das morcelas que deve ser feita
em água abundante, temperada com sal, louro e cebola[ix], é um problema delicado; uma vez que o arroz aumenta muito de volume
com a cozedura, é necessário prevenir esse facto e, há que não encher
totalmente as tripas, deixando espaço suficiente para acomodar aquela dilatação[x].
Quanto ao modo como se deve preparar o arroz, há
grandes divergências entre os anotadores: O arroz deve ser previamente
meio-cozido, dizem uns. O arroz deve ser cozido à parte, escorrido e só depois
adicionado ao preparado do sangue, dizem outros. O que eu vi fazer, com bons
resultados em matéria de rebentamento dos enchidos, foi o prévio demolhar do
arroz em água a escaldar, onde ficou algumas horas, até ao enchimento das
tripas. Mas, também já vi escrito que três quartos de hora de demolha são
suficientes.
Consensual é a indicação de que, a meio da cozedura, é
necessário picar as morcelas, com o que se evita que rebentem e, por outro
lado, sabe-se que estão cozidas quando já não sai sangue.
O texto já vai longo pelo que é altura de terminar, não
sem, antes, deixar os leitores com mais duas receitas de morcelas de arroz:
(Uma
Receita da Morcela de Arroz de Leiria por Laura Esperança, presidente
da Junta de Freguesia de Leiria):[xi]
“Quando
de manhã bem cedo se matava o porco, entre o Natal e o Carnaval, aproveitava-se
o sangue
da matança do porco, proveniente do coração, recolhia-se o sangue num
alguidar contendo sal, mexendo sempre, com uma colher de pau, para não
“coalhar”, isto é, coagular.
Na
altura de se retirarem as “tripas” (intestinos), e às vezes o bucho, para um
alguidar, retirava-se também o véu que envolve e une as tripas, e o rissol, e
cortavam-se estas gorduras muito miudinhas. As tripas eram lavadas, de
preferência em água corrente, e esfregadas em sal grosso, limão e laranja com
casca, que nesta altura eram bastante azedas.
Nesse
mesmo dia, ao final da tarde, faziam-se as morcelas de arroz que se confeccionavam
da seguinte maneira; num alguidar, colocavam-se então a gordura, muita cebola e
a salsa picada, mexia-se e temperava-se com cravinho, cominhos moídos e sal.
Deitava-se,
de seguida, o sangue sobre o preparado anterior e dava-se mais uma mexidela.
Nesta
altura já fervia, numa panela de ferro grande ou de cobre, parte das
“arreigadas”, ou “bofes” (pulmões, traqueia e outras vísceras), cebola e sal,
que temperavam a água que escaldava o arroz e onde se iam cozer as morcelas.
Adicionava-se
por último o arroz carolino, semi-cozido (escaldado), pouco a pouco, mexendo
sempre.
Na
altura as mulheres presentes e com experiência, com a ajuda de um funil, ou
somente com a mão em concha, enchiam as tripas. O meu cargo era quase sempre
cortar a guita, o “Fio de Norte”, e ajudar a atar as tripas. As tripas não
podiam ficar muito cheias para não rebentarem ao cozer, dado que o arroz com a
cozedura aumenta de volume.
Por
último, coziam-se então em lume brando, iam-se mexendo e picando com um
alfinete de dama, com muito cuidado. As morcelas estavam cozidas, se ao serem
picadas, a água da cozedura ficasse clara e não ensanguentadas.
Comiam-se
quentes, depois de saírem da panela, ou frias, conforme o gosto.
O
caldo da morcela também se comia como sopa, onde depois de se retirarem todas
as morcelas, se coziam os nabos (cabeças) cortados aos bocadinhos e às vezes
couve branca, onde se colocavam também umas rodelas grossas de morcela ou
apareciam alguns bocados de alguma morcela que se tivesse rebentado, os
bocadinhos de “bofes” e um pouco de pão e umas folhinhas de hortelã.”
(Morcela de arroz do Fundão
ou, morcela de arroz da Beira Baixa):[xii]
As tripas:
Cruas, lavadas e esfregadas com sal grosso, limão,
laranja e cebola.
O arroz:
Tem que ser Carolino e demolhado durante ¾ hora.
A sanguínea:
Sal
PimentaColorauPiri-piriCominhosCebola, alho e salsa picadosMistura-se a sanguínea num alguidar, acrescenta-se o arroz e enchem-se as tripas com a molhanga, coando com os dedos.
Vinho tinto (do BOM)
Sangue do porco
Modo:
Atam-se as pontas e pronto.
Cozem-se as morcelas com uma cebola e um ramo de salsa.
Bom Apetite!
[i]
Lembremo-nos que a morcela de arroz é um produto perecível por excelência e,
por isso mesmo, era tradicionalmente comida apenas no dia da matança ou, caso
sobrasse, logo nos dias seguintes.
[ii] En el año 2.000 se
calculaba que en la provincia de Burgos existían más de 50 fabricantes de
morcillas que, de forma artesanal, pero con toda las garantías sanitarias
lanzan al mercado algo más de tres millones de kilos. De ellos, muchos son los
que se consumen en la ciudad y provincia, pero también se envían grandes cantidades
a los más extraños puntos de destino.
(in http://www.funjdiaz.net/folklore/07ficha.php?ID=2016,
consultado em 17-8-2014)
[iii] Embora
mais conhecida como morcela de Burgos, a morcela de arroz é, também, típica da
região de Valladolid e, os de Teruel afirmam que “as morcelas de arroz são um
clássico da gastronomia tradicional de Teruel” e, pelos vistos, o mesmo podem
afirmar os de Cáceres, os de Alcântara e os de Palência.
[iv] Ver: http://www.rt-leiriafatima.pt/PDA/Frontoffice/default.aspx?module=Article/Article&ID=343, e
http://www.cm-batalha.pt/docs/turismo/receitas.pdf (consultados em 16-8-2014).
[v] Riçol é
o mesmo que redanho, gordura pegada aos intestinos do porco e de outros
animais.
[vi] Chamuscado,
barbeado e bem lavado, dependurado na escápula, aberto e sangrado
[vii] Por
isso, antigamente, se fazia em Chequeda, no rio.
[viii] “… bem lavadas com água e limão e viradas de
fora para dentro e bem raspadas, na época das minhas avós eram raspadas com um
ramo fino de verga verde…” (in http://zelinha-july.blogspot.pt/2011/08/morcela-de-arroz.html,
consultado em 17-8-2014). A raspagem via-a eu fazer com ganchos de cabelo.
[x] Há pouco tempo ouvi eu, numa aldeia do concelho de Ourém que a
salsicharia local deixou de fazer morcelas de arroz porque “rebentavam”.
[xi] In http://www.regiaodeleiria.pt/blog/2010/09/07/criada-associacao-para-certificar-morcela-de-arroz-de-leiria/, consultado em 17-8-2014.
[xii] http://hojehapipis.blogspot.pt/2009/11/as-tripas-cruas-lavadas-e-esfregadas.html, consultado em 17-8-2014.
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