quinta-feira, 18 de março de 2010

Gente da Ataíja de Cima - José Coelho Quitério - O Zé Francês

Em 1936 o meu tio Sapatada foi, com o irmão José que mais tarde havia de ficar conhecido por O Francês, para as vindimas na região do Bombarral.
Acabada a safra, deixou o irmão, então com dezoito anos, na estação das camionetas, com a recomendação de voltar à terra, para ajudar o pai que ele, Sapatada, ia para Lisboa, onde havia de haver trabalho na apanha da azeitona.
O Francês disse que sim mas, mal o irmão virou costas, apanhou a camioneta seguinte para Lisboa onde, durante dez anos ficou fazendo trabalhos diversos e quase sem contactar a família.

Voltou à Ataíja em 1946, para assistir ao casamento do meu pai, tendo regressado logo a Lisboa.

Seguiu-se a emigração clandestina (transportando um saco de mercadoria às costas como se fosse um estivador) para Marrocos, num barco carregado de casca de carvalho para a indústria de curtumes.

Aquando da independência de Marrocos, em 1956, já viúvo e com três crianças pequenas, teve de abandonar a cidade de Rabat, onde vivia e foi para França, e aí ficou a trabalhar de carpinteiro, até à reforma, nos anos 80, quando voltou a viver na Ataíja.
Pelo meio veio, duas ou três vezes, a Portugal. A primeira delas, no início dos anos sessenta, num imponente Citroen arrastadeira que, em Coimbra, foi trucidado pelo comboio da Lousã, assunto que ralava muito a família mas a que o meu tio respondia com um encolher de ombros e bufando como só os franceses sabem fazer. Que o seguro havia de pagar, dizia ele. E pagou que, dois anos volvidos, regressou de novo em carro idêntico.


Quando eu era pequeno, o meu tio José Francês era, apenas, um pequeno espaço, onde em jovem dormia, separado do palheiro do burro por um tabique tosco e onde ainda sobravam os restos da tarimba e, agora, a minha avó tinha os coelhos. E era, na casa de fora, um retrato dele e da mulher (que a família nunca conheceu e para quem a minha avó olhava sempre com um ar reprovador), dependurado na parede. E um outro que tinha vindo numa carta, pequenino, tirado em Algeciras quando iam a caminho de França fugidos da agitação da independência marroquina, ele com os três filhos, as gémeas uma em cada braço e o rapazito agarrado às pernas do pai.


Reformado e instalado na Ataíja, um belo dia (aí por volta de 1985) resolveu o meu tio ir, a pé, visitar o seu amigo de juventude, José Qué-Pão que então vivia nos Olheiros.
No regresso, vindo ele caminhando pela estrada, perto da ladeira pequena, foi interpelado pelo Mário do Rosa que passava conduzindo uma camioneta e, reconhecendo-o, parou e ofereceu-lhe boleia para a Ataíja.
Entrou o meu tio na camioneta e, depois de alguma conversa, perguntou ao Mário:
Você não é filho de um a quem chamavam o Pato-Marreco?
Ao que o Mário respondeu que era neto.
Ah! exclamou o meu tio. Eu estava a conhecê-lo pela fala!


O curioso da história é que tinham decorrido cerca de cinquenta anos sobre a última vez que o meu tio vira ou ouvira o Pato-Marreco.


(Óleo de Inês Neves, representando o José Francês, já amparado a um andarilho e os sobrinhos-bisnetos, filhos da autora)

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