quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Uma tragédia na Ataíja de Cima - A Epidemia de Cholera - Morbus de 1833



A epidemia de Cólera que, nos anos de 1832 e 1833 assolou a Europa, teve um forte impacto na Ataíja de Cima onde provocou um elevado número de mortos.

A doença era conhecida há longo tempo, por ser endémica na Índia aonde, no entanto, se manteve circunscrita até à década de 1820 quando atingiu a Rússia e continuou a progredir para ocidente.

A cólera chegou a Portugal “trazida a bordo de um navio que, de Ostende[i], transportava soldados para ajudarem D. Pedro no cerco do Porto”[ii], quando já tinha atacadocom grande virulência em Paris, no mês de Abril desse ano de 1832.

Pela primeira vez, foi antecipada a propagação de uma epidemia e a sua evolução sistematicamente acompanhada e, por toda a Europa, foram publicados numerosos livros e folhetos contendo quer instruções sobre os comportamentos a adoptar face à, ou para evitar a doença, quer relatórios médicos descrevendo as observações aos doentes, incluindo numerosas autópsias, ou relatando os efeitos dos medicamentos[iii] experimentados, seja, fazendo a história médica da epidemia[iv].

Exemplo de medida “preventiva” é o Aviso de D. Miguel I[v] ao Cardeal Patriarca de Lisboa que a seguir se transcreve:

TENDO apparecido em algumas Nações, e ultimamente mais proximo a nós, em a França, huma enfermidade nova, que se está conhecendo com o nome de Cholera-morbo Asiatica, e cujos terríveis estragos são talvez hum castigo, com que a Divina Omnipotência quer punir, e reprimir esse espirito de perversidade, e de impiedade, que desgraçadamente tem chegado a tamanho gráo no Século, em que vivemos, deve, em taes circumstancias, hum Povo Catholico, e que tanto se préza de o ser, como o Povo Portuguez, acudir, e reunir-se junto aos Altares a implorar a Clemencia do Omnipotente, e a adorar a Sua Alta Providencia, mesmo quando assim se mostra severa, e justiceira: He por tanto da vontade de Sua Magestade que Vossa Eminência ordene que, para o sobredito fim, hajão Preces públicas em todo o Patriarchado. Sua Magestade Manda lembrar a Vossa Eminência que he necessário que nessa ocasião os Ecclesiasticos, a quem isso competir, usando do importante Ministerio da palavra, que lhes incumbe, fação conhecer aos Povos que não basta a Oração para se applacar a Justiça Divina ofiendida, mas que são precisas as boas obras, affastando elles com especialidade, e repelindo firmemente para longe de si as idéas de corrupção, e de impiedade, que os máos, para seus fins perversos, tanto tem procurado espalhar; e tambem que lhes fação vêr os muitos motivos , que temos para esperar, e confiar na Misericordia de Deos, que sempre se tem mostrado propicio aos Portuguezes , e cujos Beneficios , ainda nestes passados tempos tão visivelmente acabamos de experimentar, livrando-nos por duas vezes da Facção revolucionaria, que dominava, e que pertendia destruir o Throno , e a Religião, e causar a total ruina de Portugal. O que de Ordem do Mesmo Senhor communico a Vossa Eminência para sua intelligencia, e para que assim se execute,  = Déos guarde a Vossa Eminência. Çamora Corrêa em 28 de Maio dé 1832. = Eminentíssimo e Reverendíssimo Senhor Cardeal Patriarcha. = Luiz de Paula Furtado de Castro do Rio de Mendoça.

Depois do Porto, em cuja região terá matado cerca de 13.000 pessoas, a Cólera alastrou a Lisboa e outras regiões e terá feito, no país, um total de cerca de 40.000 mortos até desaparecer no final de 1833[vi].

À Ataija de Cima a cólera terá chegado em Junho de 1833 provocando o que há-de ter sido uma hecatombe social, com a morte, num espaço de quarenta dias, de um total de 16 pessoas (9 em Junho, 7 em Julho)[vii].

Quem morreu?
2 eram viúvos, 6 casados e 8 solteiros, dos quais, 3 eram inocentes e um menor.
Dos inocentes, 2 eram expostos do Real Hospital da Cidade de Lisboa, que estavam a ser criados na aldeia.
João Machado que, no final do ano anterior tinha assistido à morte de uma filha verá, em Junho deste ano morrerem, no mesmo dia, a mulher e uma outra filha.
Bernardo de Moira verá desaparecerem-lhe, no espaço de 3 dias, um filho inocente e um menor.
A Custódia Maria, morreram o marido e um exposto que criava.
Luis Machado e a mulher também morreram no espaço de três dias.

A dimensão da tragédia fica mais nítida se nos lembrarmos de que, a média de falecimentos na aldeia, durante todo o Século XIX, é de 3 por ano.



NOTAS:

[i] CORREIA, Fernando da Silva - Portugal Sanitário (Subsídios para o seu estudo. Lisboa: Ministério do Interior ; Direcção Geral de Saúde, 1938, p. 465.)
Citado em: Portugal e as Conferências Sanitárias Internacionais (Em torno das epidemias oitocentistas de cholera-morbus), por Maria Rita Lino Garnel.
Ostende situa-se na actual Bélgica que, por esse tempo, alcançava a independência.
[ii] O cerco do Porto teve início em finais de Julho de 1832. Os "soldados" em causa eram, certamente, mercenários que tinham combatido nas lutas pela independência da Bélgica, iniciadas em 1830.
[iii] Melhor seria dizer mezinhas.
[iv] No caso de Portugal, por exemplo, o livro: Um fragmento da història da epidemia que, sob o nome de Còlera-morbus asiàtico, havendo percorrido a Àsia e a maiòr parte da Europa, chegou a Portugal no corrente anno de 1833, pêlo Dr. Lima Leitão.
Para o caso de França, por exemplo: RELATION sur le CHOLERA–MORBUS OBSERVÉ A PARIS , DANS LE MOIS d'AVRIL l832, SUIVIE D’UN RAPPORT SUR L’ÉPIDÉMIE CHOLÉRIQUE QUI A RÉGNÉ DANS l'arrondissement DE BERNAY (EURE), DEPUIS LE 29 AVRIL jusqu'au 27 SEPTEMBRE l832, PAR M. NEUVILLE,

[v] Estavamos em plena Guerra Civil que opunha os absolutistas chefiados por D. Miguel, aos liberais fiéis a D. Pedro IV. As posições de cada uma das partes em conflito perante a epidemia é um aspecto que acrescenta interesse ao estudo do tema. 
O Aviso transcrito é um claro exemplo demonstrativo do extremismo político e religioso de D. Miguel.
[vi] Havia de voltar várias vezes durante as décadas seguintes e, com particular virulência, em 1853-1856.
[vii] Nesse ano houve, na aldeia, mais duas mortes que, no entanto, não terão sido provocadas pela cólera.

Todas as publicações citadas estão acessíveis online.

4 comentários:

  1. Tive uma antepassada que teve doente com cólera e recebeu os santos sacramentos, não morreu na altura mas não tardou, em 1833, morreu sufocada com sangue que deitava pelo nariz e boca.
    José Maria Fróes

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    1. Muito obrigado pelo seu comentário.
      Se possível, agradeço informe do nome da falecida, data e local do falecimento.
      Tudo com vista a tentar compreender a expressão regional desta tragédia.
      Muito obrigado
      José Quitério

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    2. A minha antepassada faleceu numa freguesia do distrito de Lisboa.
      José Maria Fróes

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  2. Essa minha antepassada faleceu em Outubro de 1833 e chamava-se Sebastiana, cujo sobrenome tenho que ir ver nos meus papéis, pois já não me recordo, já que muitos antepassados tenho pesquisado.
    José Maria Fróes

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