A epidemia de Cólera que, nos anos de 1832 e 1833 assolou a
Europa, teve um forte impacto na Ataíja de Cima onde provocou um elevado número
de mortos.
A doença era conhecida há longo tempo, por ser endémica na
Índia aonde, no entanto, se manteve circunscrita até à década de 1820 quando
atingiu a Rússia e continuou a progredir para ocidente.
A cólera chegou a Portugal “trazida a bordo de um navio que,
de Ostende[i],
transportava soldados para ajudarem D. Pedro no cerco do Porto”[ii], quando
já tinha atacadocom grande virulência em Paris, no mês de Abril desse ano de
1832.
Pela primeira vez, foi antecipada a propagação de uma
epidemia e a sua evolução sistematicamente acompanhada e, por toda a Europa,
foram publicados numerosos livros e folhetos contendo quer instruções sobre os
comportamentos a adoptar face à, ou para evitar a doença, quer relatórios
médicos descrevendo as observações aos doentes, incluindo numerosas autópsias,
ou relatando os efeitos dos medicamentos[iii]
experimentados, seja, fazendo a história médica da epidemia[iv].
Exemplo de medida “preventiva” é o Aviso de D. Miguel I[v] ao
Cardeal Patriarca de Lisboa que a seguir se transcreve:
TENDO apparecido em algumas Nações, e ultimamente mais proximo a
nós, em a França, huma enfermidade nova, que se está conhecendo com o nome de Cholera-morbo
Asiatica, e cujos terríveis estragos são talvez hum castigo, com que a
Divina Omnipotência quer punir, e reprimir esse espirito de perversidade, e de
impiedade, que desgraçadamente tem chegado a tamanho gráo no Século, em que
vivemos, deve, em taes circumstancias, hum Povo Catholico, e que tanto se préza
de o ser, como o Povo Portuguez, acudir, e reunir-se junto aos Altares a
implorar a Clemencia do Omnipotente, e a adorar a Sua Alta Providencia, mesmo
quando assim se mostra severa, e justiceira: He por tanto da vontade de Sua
Magestade que Vossa Eminência ordene que, para o sobredito fim, hajão Preces
públicas em todo o Patriarchado. Sua Magestade Manda lembrar a Vossa Eminência
que he necessário que nessa ocasião os Ecclesiasticos, a quem isso competir,
usando do importante Ministerio da palavra, que lhes incumbe, fação conhecer
aos Povos que não basta a Oração para se applacar a Justiça Divina ofiendida, mas
que são precisas as boas obras, affastando elles com especialidade, e repelindo
firmemente para longe de si as idéas de corrupção, e de impiedade, que os máos,
para seus fins perversos, tanto tem procurado espalhar; e tambem que lhes fação
vêr os muitos motivos , que temos para esperar, e confiar na Misericordia de
Deos, que sempre se tem mostrado propicio aos Portuguezes , e cujos Beneficios
, ainda nestes passados tempos tão visivelmente acabamos de experimentar,
livrando-nos por duas vezes da Facção revolucionaria, que dominava, e que pertendia
destruir o Throno , e a Religião, e causar a total ruina de Portugal. O que de
Ordem do Mesmo Senhor communico a Vossa Eminência para sua intelligencia, e
para que assim se execute, = Déos guarde
a Vossa Eminência. Çamora Corrêa em 28 de Maio dé 1832. = Eminentíssimo e
Reverendíssimo Senhor Cardeal Patriarcha. = Luiz de Paula Furtado de Castro do
Rio de Mendoça.
Depois do Porto, em cuja região terá matado cerca de 13.000
pessoas, a Cólera alastrou a Lisboa e outras regiões e terá feito, no país, um
total de cerca de 40.000 mortos até desaparecer no final de 1833[vi].
À Ataija de Cima a cólera terá chegado em Junho de 1833
provocando o que há-de ter sido uma hecatombe social, com a morte, num espaço
de quarenta dias, de um total de 16 pessoas (9 em Junho, 7 em Julho)[vii].
Quem morreu?
2 eram viúvos, 6 casados e 8 solteiros, dos quais, 3 eram
inocentes e um menor.
Dos inocentes, 2 eram expostos do Real Hospital da Cidade de
Lisboa, que estavam a ser criados na aldeia.
João Machado que, no
final do ano anterior tinha assistido à morte de uma filha verá, em Junho deste
ano morrerem, no mesmo dia, a mulher e uma outra filha.
Bernardo de Moira verá desaparecerem-lhe, no espaço de 3
dias, um filho inocente e um menor.
A Custódia Maria, morreram o marido e um exposto que criava.
Luis Machado e a mulher também morreram no espaço de três
dias.
A dimensão da tragédia fica mais nítida se nos lembrarmos de
que, a média de falecimentos na aldeia, durante todo o Século XIX, é de 3 por
ano.
NOTAS:
[i] CORREIA, Fernando da Silva - Portugal Sanitário
(Subsídios para o seu estudo. Lisboa: Ministério do Interior ; Direcção Geral
de Saúde, 1938, p. 465.)
Citado em: Portugal e as
Conferências Sanitárias Internacionais (Em torno das epidemias oitocentistas de
cholera-morbus), por Maria Rita Lino Garnel.
Ostende situa-se na actual
Bélgica que, por esse tempo, alcançava a independência.
[ii] O cerco
do Porto teve início em finais de Julho de 1832. Os "soldados" em causa eram, certamente, mercenários que tinham combatido nas lutas pela independência da Bélgica, iniciadas em 1830.
[iii] Melhor
seria dizer mezinhas.
[iv] No caso de Portugal, por
exemplo, o livro: Um fragmento da història da epidemia que, sob o nome de
Còlera-morbus asiàtico, havendo percorrido a Àsia e a maiòr parte da Europa,
chegou a Portugal no corrente anno de 1833, pêlo Dr. Lima
Leitão.
Para o caso de França, por exemplo:
RELATION sur le CHOLERA–MORBUS OBSERVÉ A PARIS , DANS LE MOIS d'AVRIL
l832, SUIVIE D’UN RAPPORT SUR L’ÉPIDÉMIE CHOLÉRIQUE QUI A RÉGNÉ DANS
l'arrondissement DE BERNAY (EURE), DEPUIS LE 29 AVRIL jusqu'au 27 SEPTEMBRE
l832, PAR M. NEUVILLE,
[v]
Estavamos em plena Guerra Civil que opunha os absolutistas chefiados por D.
Miguel, aos liberais fiéis a D. Pedro IV. As posições de cada uma das partes em conflito perante a epidemia é um aspecto que acrescenta interesse ao estudo do tema.
O Aviso transcrito é um claro exemplo demonstrativo do extremismo político e religioso de D. Miguel.
[vi] Havia
de voltar várias vezes durante as décadas seguintes e, com particular
virulência, em 1853-1856.
[vii] Nesse
ano houve, na aldeia, mais duas mortes que, no entanto, não terão sido
provocadas pela cólera.
Todas as publicações citadas estão acessíveis online.
Tive uma antepassada que teve doente com cólera e recebeu os santos sacramentos, não morreu na altura mas não tardou, em 1833, morreu sufocada com sangue que deitava pelo nariz e boca.
ResponderEliminarJosé Maria Fróes
Muito obrigado pelo seu comentário.
EliminarSe possível, agradeço informe do nome da falecida, data e local do falecimento.
Tudo com vista a tentar compreender a expressão regional desta tragédia.
Muito obrigado
José Quitério
A minha antepassada faleceu numa freguesia do distrito de Lisboa.
EliminarJosé Maria Fróes
Essa minha antepassada faleceu em Outubro de 1833 e chamava-se Sebastiana, cujo sobrenome tenho que ir ver nos meus papéis, pois já não me recordo, já que muitos antepassados tenho pesquisado.
ResponderEliminarJosé Maria Fróes