O Tribunal do Santo Ofício, também chamado a Santa Inquisição ou a Inquisição, ficou tristemente célebre pela perseguição que moveu aos acusados de judaísmo e
pelo método de execução – a fogueira - que era usado para sentenciar aqueles
que condenava à morte.
Muito há, ainda, a investigar sobre a actuação da Inquisição
nos coutos de Alcobaça mas, sobre a perseguição a judeus (ou, melhor, a
cristãos-novos acusados de praticarem o judaísmo às escondidas), sugiro aos
leitores a consulta do blog “Alfeizerão” (alfeizerense.blogspot.pt) onde José
Eduardo Lopes vem publicando uma série de excelentes textos sobre o assunto. A
ele, José Eduardo Lopes, devo, aliás, a descoberta e informação da existência
do processo de Manoel Francisco, de que hoje nos ocupamos.
Também por isso, lhe manifesto a minha gratidão.
Ao contrário do que alguns julgam, a Inquisição não se
ocupava, apenas, de “crimes” de heresia mas, também, de pravidade e apostasia,
o que abrangia um vasto leque de outros “crimes”, designadamente os relativos
aos comportamentos sexuais.
O Manuel Francisco irá cair nas malhas da Inquisição
precisamente, pela prática do único desses comportamentos que, actualmente,
continua a ser crime: a bigamia[i]
Corria o ano de 1670[ii] quando
Manuel Francisco, cristão-velho, de 44 anos de idade, pastor, residente em
Salvaterra de Magos, natural das Ataíjas, termo da Vila de Aljubarrota, filho
de Francisco Fernandes Alvarianes lavrador e de Ascença Fernandes e neto
paterno de Francisco Fernandes Alvarianes lavrador e Eufémia Francisca, todos
eles do dito lugar das Ataíjas[iii], foi
preso, no Aljube[iv] de Santarém,
por ter sido denunciado pelo crime de bigamia.
O Manoel Francisco foi denunciado ao Doutor Vigário Geral da
colegiada de Santarém por António de Carvalhal, homem nobre, proprietário de
uma quinta em Alcanhões, localidade onde o Manuel Francisco[v] tinha,
anteriormente, morado alguns anos, “à soldada”[vi].
É que, para se poder casar uma segunda vez, como chegou a
casar, com Águeda Luís, tendo o casamento sido celebrado, em vinte e sete de
novembro de mil seiscentos e sessenta e nove, na igreja Paroquial de Salvaterra
de Magos, o Manoel Francisco forjou nome, filiação e naturalidade e disse-se
solteiro.
Disse, então, chamar-se Francisco João, ser de Alcanhões e filho de Vicente João e Isabel João.
Quando os respectivos banhos[vii] foram
apregoados na igreja de Alcanhões, logo o fidalgo denunciou a fraude ao
Vigário.
De facto, havia em Alcanhões um Vicente João, cujos filhos
foram também ouvidos como testemunhas e, naturalmente, denunciaram o logro e,
ainda, que ali não existia nenhuma Isabel João.
Uma das ditas testemunhas sabia também, por o ter ouvido a
“uns tanoeiros do lugar do Carvalhal, junto da Vila de Aljubarrota” que o tal
era aí casado com mulher de quem tinha filhos.
Como o Manuel Francisco há-de, mais tarde, confessar perante
os Inquisidores do Santo Ofício de Lisboa ele tinha, há cerca de onze anos
atrás, casado na Igreja de São Vicente de Aljubarrota com Maria Guerra, natural
daquela Vila, filha de Vicente Luís trabalhador e de Maria Francisca, também da
Vila de Aljubarrota. E, com ela fez vida marital, por espaço de cinco ou seis
anos, e tiveram quatro filhos, e depois em razão de desavenças que teve com a
dita sua mulher, abandonou o lar rumando a Salvaterra de Magos (com prolongada
paragem em Alcanhões, como vimos).
Na sua confissão, desculpa-se o Manuel Francisco que só se
persuadiu a casar por estar convencido da que a sua primeira mulher tinha
morrido, o que lhe teria sido dito por António Fernandes Cardador, natural e
morador da Cidade de Évora que, vindo de Nossa Senhora da Nazaré, passara pela
sua terra em tempo que falecera a sua mulher Maria Guerra e embora não tenha
feito quaisquer outras diligências para saber a verdade, convenceu-se, disse,
de que ela era morta.
Os Inquisidores,esses, não se convenceram e, verdade seja
dita, o processo não mostra um Manuel Francisco recto e impoluto: Usou três
nomes diferentes, tenta passar culpas para a segunda mulher, sugerindo que ela
é que o pressionou a casar e foi a única responsável pelos banhos (e, portanto,
pelas inverdades neles contidas), pretende responsabilizar um terceiro de o ter
convencido da morte da sua primeira mulher.
Apesar disso, não parece que fosse um mero vigarista. O
Manuel Francisco, fugido da terra, da mulher e dos filhos e, sabe-se lá mais do
quê, antes parece ser um pobre diabo, pois não logra outros modos de
subsistência que não como o criado que foi em Alcanhões ou o pastor que era em
Salvaterra.
Quem conheceu o campo ainda há meio século, ou pouco mais,
sabe que criado e pastor eram dois dos degraus mais baixos da nossa sociedade
rural, donde só se podia descer para mendigo. Não há razão para pensar que, neste
aspecto, as coisas fossem diferentes naquela época. E, isso conduz-nos a outra
dedução: talvez o Manuel Francisco falasse verdade quando sugeria que foi a
segunda mulher, a viúva Águeda Luís que o pressionou para casar. É que, naquele
tempo, era praticamente impossível a vida de uma viúva que não tivesse um homem
para a proteger, fosse ele marido, pai, filho, ou outro parente próximo.
O
processo, cuja capa acima reproduzimos, ocupa 88 fls de papel, encontra-se
arquivado na Torre do Tombo (Tribunal do Santo
Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 1494 - PT/TT/TSO-IL/028/01494) e decorreu
entre 4-6-1670 e 19-6-1676 “contra Manoel Francisco, cristão-velho, de 44 anos
de idade, pastor, residente em Salvaterra de Magos, natural das Ataíjas, termo
da Vila de Aljubarrota, filho de Francisco Fernandes Alvarianes, lavrador e
Ascença Fernandes.
Acusado de bigamia por ter casado duas vezes, a
primeira em S. Vicente de Aljubarrota com Maria Guerra, a segunda em Salvaterra
de Magos com Águeda Luís, estando viva a primeira mulher e dizendo-se Francisco
João e ser natural de Alcanhões”.
Foi preso em 17-6-1670 e condenado, no auto-de-fé de
21-6-1671, em abjuração de levi, ser açoitado publicamente, degredado para as
galés por sete anos, cárcere a arbítrio, penitências espirituais e pagamento
das custas do processo.
Todo o processo está digitalizado e disponível online em:
[i] Código
Penal
TÍTULO I
Dos crimes
contra a vida em sociedade
CAPÍTULO I
Dos crimes
contra a família, os sentimentos religiosos e o respeito devido aos mortos
SECÇÃO I
Dos crimes
contra a família
Artigo 247º
Bigamia
Quem:
a) Sendo casado, contrair outro casamento; ou
b) Contrair casamento com pessoa casada;
é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de
multa até 240 dias.
[ii] A
Guerra da Restauração que, desde 1 de Dezembro de 1640, vinha opondo Portugal e
Espanha, tinha terminado pela assinatura do Tratado de Paz de 13 de Fevereiro
de 1668 e o Rei D. Afonso VI (em cujo reinado houve importantes obras em Alcobaça) tinha perdido para o irmão o Trono e o leito.
[iii] Apesar
de em todo o processo se referir correntemente “as Ataijas” como o local de
origem do Manuel Francisco, os seus pais são identificados, a fls 30v., como “moradores
no lugar de Ataíja de Sima”.
[iv] Aljube
é palavra que provém do árabe, significando prisão escura, cárcere, caverna, poço
ou cisterna. É a mesma raiz etimológica de onde, segundo alguns pretendem,
provém a palavra Aljubarrota.
[v] Que
dizia, nessa época, chamar-se Francisco Fernandez.
[vi] Soldada
era designação para o salário dos criados.
[vii]
Banhos. Os anúncios que se faziam nas Igrejas antes dos casamentos, para se
averiguar a existência de algum impedimento à sua realização.