Ainda estão vivos alguns que se podem lembrar de ter ouvido
os seus búzios assobiar ou de ter visto as suas velas a rodar ao vento, mas as
memórias começam a ficar difusas e, dele, não se conhecem fotografias ou
desenhos, mas não havia de ser muito diferente (ao menos no que diz respeito ao
mecanismo de moagem) do que se mostra no desenho abaixo, o moinho de vento que,
algures pelos finais dos anos 30 ou inícios dos anos 40 do século passado, o ti
Manuel Luís mandou construir no quintal.
Teve curta duração e dele não há ruínas ou quaisquer indícios que atestem a sua existência, já que se erguia no lugar onde depois foi construída a casa de João Frade, filho do proprietário, mesmo ao lado de onde agora está a do neto Zé Frade, um lugar alto aonde o vento podia chegar, sem obstáculos, de todas as direcções.
Ali se moía o milho de que se fazia a broa dos vizinhos e o
próprio e das maquias com que se alimentava a numerosa prole e algum trigo para
o pão-alvo dos domingos e dias santos.
Mas, naqueles dias de Agosto, havia mais de uma semana que
sobre a terra tinha caído uma calmaria tal que nem as folhas das nogueiras
buliam. Nada, nem uma brisa ligeira. Apenas, dia sobre dia, aquele calor seco
que tão bem conhecemos, quando o sol queima na pele, os pássaros não voam, os
cães se arrastam nas sombras e só o canto das cigarras rasga o silêncio.
Era Domingo. Talvez no ano de 1941 ou 1942, quando a Europa
sofria sob a guerra e Portugal sofria sob a pobreza de sempre, agora agravada
pelo racionamento. Na casa da ti Maria da Graça o pão, fossem os restos do
pão-alvo do domingo passado, fosse a broa semanal, já tinham acabado. Nem uma
côdea sobrava na arca.
O Padre Casimiro marcava as missas em São Vicente para muito
cedo, quase de madrugada, o que por outro lado era bom que, assim, não tinha a
gente de torrar sob o sol naquela viagem de seis quilómetros, ida e volta.
Estava todo o povo na missa, as mulheres e as crianças pequenas no corpo da igreja, os homens ocupando a capela-mor e o coro, como era uso naquele tempo e ainda me lembra e o meu pai contava-me que, quando ele era pequeno e ainda ficava com a mãe no corpo da igreja, que se os homens se ajoelhavam, (apenas o joelho esquerdo no chão, mão direita segurando firmemente o pau, cotovelo apoiado na coxa) ficava a capela-mor feita uma floresta de paus. Nos anos cinquenta os paus já tinham desaparecido – pelo menos da missa - mas o resto mantinha-se muito parecido.
Estava o povo na missa, dizia eu, e o ti António da Graça,
então um jovem dos seus dezoito ou dezanove anos, assistia no coro quando ouviu
lá fora o rumor de uma rabanada de vento. Benzeu-se à pressa, desceu à rua e,
não havia dúvidas, fazia um vento suão que levantava a poeira seca dos
caminhos.
Não pensou duas vezes: desatou a correr quanto pode e, num ápice, galgou os três quilómetros que o separavam de casa e do moinho. Despiu a camisa domingueira que o suor colara ao corpo e foi-se ao moinho. Verificou brevemente o engenho. Desenrolou as velas e amarou-as às varas das escotas. Despejou a saca de trigo no tegão. Manobrou o sarilho, fazendo girar o capelo para alinhar as velas com a direcção do vento.
Sob a força da entrosga todo o engenho rangeu e a mó andadeira começou a rodar, o grão a escorrer pela calha e a farinha a surdir no panal.
Acabada a missa, a ti Maria da Graça vasculhou o adro em
busca do filho que não encontrou. Levantou o rosto para sueste e os seus olhos saltaram
o vale e chegaram ao seu moinho e pode ver, destacando-se no cenário de fundo
da serra dos Candeeiros, as velas brancas a girar.
Graças a Deus!
O meu António já tem o moinho a trabalhar!
Estugou o passo e, também ela, chegou ofegante a casa e ao
moinho onde o António já tinha a farinha suficiente. Peneirou-a e amassou-a
brevemente, abafou-a com uma manta para levedar mais depressa e, usando o azeite que, esse, felizmente, ainda abundava na talha,
fez filhoses que polvilhou moderadamente com açúcar e esse foi o almoço de
todos.
Corte longitudinal de um moinho de vento, permitindo ver o
mecanismo
(imagem retirada, com a devida vénia, de Museu da Memória Rural, uma
realização da Câmara Municipal de Carrazeda de Ansiães, com um excelente site
na internet, in https://museudamemoriarural.pt/)
Tantas vezes ouvi falar desse moinho, ora por ter sido do meu bisavô (falecido há cerca de 60 anos) ora por nas suas traseiras haver uma fazenda de Francisco “Casais” (que a nossa ama Piedade Félix cultivava e para onde tantas vezes nos levava). Recordo que parte do muro que limitava a propriedade do Zé Frade assentava numa parede de pedra circular. Restos do que fora um moinho ou apenas fruto da infantil imaginação?
ResponderEliminarViva André! Gosto de te ver por aqui.
EliminarO moinho era aí mesmo onde dizes e a história contei-a como ela me foi contada pelo protagonista, que fazia o favor de ser meu amigo e muitas vezes interrompeu o seu caminho para ficar à conversa comigo.