domingo, 15 de setembro de 2024

Uma casa na Rua de Trás

 

A Rua de Trás, agora chamada de Rua de Santo António, é uma antiquíssima rua que fecha pelo norte o núcleo central da aldeia, o Lugar.

Quando eu era pequeno, nos anos cinquenta ou sessenta do século passado, ainda ali viviam mais de 40 pessoas, em 10 casas habitadas.

Nos anos entretanto decorridos as transformações foram profundas. As pequenas casas, umas sem quintal e apenas um pequeno pátio nas traseiras, outras com quintais minúsculos, coladas umas às outras, estreitinhas, algumas delas sem outra serventia que não a porta da rua, deixaram de satisfazer as necessidades e os interesses das novas gerações que preferiram fazer casas fora desde núcleo central, estendendo-se pela beira dos antigos caminhos.

A decadência da Rua de trás, não começou, deve dizer-se, apenas há 70 anos. Naquele tempo, já algumas das casas antes habitadas se encontravam vazias, por morte dos últimos habitantes ,e na sua maioria, tinham já sido adaptadas a novos usos e serviam como arrecadações ou palheiros.
Quando, vindo do Largo do Monumento aos Combatentes, a rua vira à direita para o lado da serra, estavam, desse lado direito, além da casa da esquina, pelo menos mais três. Uma, propriedade de Luísa Ribeiro era usada como armazém de azeite e por isso chamada de Casa das Talhas. Haviam a casa onde então moravam João Redondo e a sua mulher e, aquela, agora em obras, onde moravam Eleutério dos Santos, com a sua mulher Maria Constantina, ou Maria Serafina, também conhecida por Maria Pequena, filha de Constantino dos Santos e de Serafina dos Santos e Pequena por ter uma irmã mais velha também Maria.

Em frente, uma antiquíssima casa que ainda lá está, propriedade de Luísa Ribeiro que ao lado construiu a sua e aquela ficou desabitada e apenas um complemento da nova.

Continuando encontrávamos, pelo norte, além da que motiva este texto, mais duas casas desabitadas. Uma que lá continua, tal e qual, agarrada às obras do Joel Pereira, era propriedade do meu avô José Agostinho. Estreitinha, escondida atrás de um pequeno alpendre onde existe uma minúscula divisão onde, talvez, há muitos anos, dormisse o porco. Entrando, segue-se, do lado esquerdo, a grande chaminé que servia de manjedoura ao burro que naquele tempo ali vivia.

A casa que imediatamente se lhe segue e está hoje recuperada, é umas das duas casas habitadas da rua. Era, então, propriedade de José Ribeiro que a usava como palheiro e lhe chamava a Casa da Quitéria.

Do outro lado da rua já tudo eram arrumos de Sabino Vigário e tinham entradas pela Rua da Penicheira, esta ainda então com saída para a pequena travessa que liga a Rua de Trás ao Adro.

Seguiam-se quatro casas de habitação, todas com traseiras para a Rua de Trás mas entrada principal virada à agora chamada Rua de Nossa Senhora da Graça. Hoje são três, a saber:

A que teve Emília Mariano por último residente e onde então vivia a ti’Maria da Serra, viúva do meu tio-avô António Agostinho.

A que se segue e sempre conheci sem gente, também feita arrecadação de José Ribeiro que lhe chamava a Casa do Catrino.

As duas seguintes, onde conheci a ti’Silvina e a ti’Maria Serafina, avó dos Delfinos, são agora uma única.

 

É toda esta viagem pela memória motivada por que, no passado dia 8, vindo do Festival das Sopas, deparei com a Casa do Porfírio arrasada.

Apertada entre a casa que foi dos meus tios-avós Mariola e Marreca e aquela que os mais novos conheceram por do Cai-Bem, bisneto do Porfírio, a casa esteve entaipada largas décadas e só olhos atentos vislumbravam, sob a cal, o desenho do alpendre, um alpendre como era comum nas casas ataíjenses de séculos passados.

Daqui a pouquíssimo tempo, olhares distraídos verão apenas a passagem para o pequeno quintal das traseiras da casa do Cai-Bem e poucos acreditarão que ali houve, por séculos, uma casa.


Mas, eu lembro-me de, pequeno ainda, aí ver o velho e viúvo Porfírio dos Santos, debruçado no parapeito do alpendre, observando o movimento da rua.

Este Porfírio, que a minha avó dizia que era enjeitado, não era bem enjeitado, antes, era natural da Pederneira e filho de mãe solteira tendo vindo cedo para a Ataíja, certamente como criado.

Casou aos vinte anos de idade e, disse então o padre, era sapateiro. A mulher, a minha tia-bisavó Maria de Jesus, andava pelos trinta anos e estava viúva, com dois filhos de José Ribeiro, tio-avô da Amélia Ribeiro, um casamento que tinha durado apenas sete meses, tendo o segundo filho nascido já o pai era morto.

Estes rapazes, foram, como já contei noutro texto, dois dos muitos portugueses que emigraram para o Brasil, para a Amazónia, atrás do boom da borracha. Um deles, morreu ao fim de pouco tempo. O outro passou ao Rio de Janeiro onde constituiu família que, julgo, já vai em trinetos.

Juntos, o Porfírio e a Maria de Jesus tiveram uma filha que os mais velhos conheceram por Joaquina Porfíria, a qual casou com António Orelha, viveram na Rua das Seixeiras, numa casa agora também em ruínas, tiveram um rancho de filhos e deles existe hoje larga descendência.

Com o desaparecimento da Casa do Porfírio, como também recentemente da Casa da Maria Pequena, é cada vez menos o que sobra de uma Ataíja antiga, muito antiga.

É assim a vida.

Como cantava o Fausto Bordalo Dias:

atrás dos tempos vêm tempos
E outros tempos hão-de vir