O Boletim de Trabalhos Históricos é uma publicação do
Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, de Guimarães, da qual, entre 1933 e 2003, saíram
do prelo cerca de 50 volumes, agora disponíveis na internet, em formato PDF, no
endereço: http://www.csarmento.uminho.pt/amap.asp
Entre os muitos textos publicados encontra-se um largo
número de transcrições (sem indicação de autor) de Inquirições Sobre a Pureza do Sangue tendo em vista apurar da puritate sanguinis dos candidatos a
cargos, conezias e respectivas prebendas, da Insigne e Real Irmandade de Nossa
Senhora da Oliveira, de Guimarães.
A inquirição de genere
era feita como condição para o exercício de cargos públicos, militares, religiosos e de ingresso em universidades. Não
havendo uma lei geral sobre inquirições de genere,
elas eram, no caso da Colegiada da N. Senhora da Oliveira, feitas “em
observação do Breve de puritate sanguinis do m.to Santo Padre Urbano VIII”[i], nos
termos do qual não seriam
admitidos nos seus canonicatos e
mais benefícios, os descendentes de hereges, mouros, hebreus e judeus, e se
ordenava que antes da admissão de qualquer eclesiástico, se lhe fizesse a
inquirição testemunhal de puritate sanguinis.
Sem prejuízo das motivações religiosas que os justificavam,
os estatutos da limpeza do sangue mostraram sempre uma natureza volúvel,
pervertida e manipulada. As suas disposições – que excluíam por motivos
étnico-religiosos – foram sempre uma arma eficacíssima no conflito social e, em
consequência, serviram para deslegitimar o adversário. E não apenas
deslegitimá-lo, quer dizer, desprovê-lo dos seus direitos mas, também, para o
excluir do nível social e político que lhe correspondia e, quando a luta
alcançou dureza significativa, os estatutos serviram para o anatematizar como
herege, forma irreversível de aniquilamento.[ii]
Mais comezinhamente, tais interrogatórios serviam, na
prática, como uma forte e intransponível barreira ao acesso aos cargos públicos
e eclesiásticos, por todos os que não eram cristãos velhos, seja, da velha
nobreza que, assim, reservava para si o controlo das instituições e as
inerentes vantagens e delas afastava quer elementos judeus, quer da burguesia
ascendente, quer, ainda, eventuais adeptos das novas ideias protestantes.
Os interrogatórios eram os
estabelecidos no Assento de 5 de Março de 1637, do Cabido da Colegiada de N.
Sra. Da Oliveira,[iii] no
qual se definiram as regras a observar para execução do Breve papal, estabelecendo
um rigoroso guião de todas as fases do processo, incluindo as perguntas a fazer
às testemunhas.
As dez perguntas serviam para a identificação da testemunha,
se sabia porque tinha sido chamado[iv]
e se tinha recebido instruções sobre o que responder ou não responder, eventual
parentesco com o inquirido, conhecimento que tinha do inquirido, de seus pais e
avós, paternos e maternos e qual a voz pública e fama do inquirido.
A pergunta chave era a nona:
Como, talvez, seria de esperar, a maioria dos candidatos
nomeados para os cargos e prebendas da Colegiada de N. Sra. Da Oliveira, era
natural ou originário de Guimarães e seus arredores, num círculo que se vai
alargando e esbatendo para diversas localidades do Minho e Douro, chegando a
Viana do Castelo, a Mesão Frio, e ao Porto. Mas, também encontramos um natural
da Almagreira (hoje no município de Pombal) e – é essa a razão deste texto – um
natural de Aljubarrota.
Muitos dos candidatos são parentes, em regra sobrinhos, dos cónegos a que sucedem, mas como sempre, aparecem situações mais insólitas, como
a das “Inquirições do Reverendo Pedro Ferreira de Leiva coadjutor de seu avô o
Reverendo Cónego Pedro Ferreira de Leiva” ou, as “Inquirições do Reverendo
Miguel de Macedo Portugal coadjutor de seu avô Miguel de Macedo Portugal cónego
neste Real Colegiada”.
Mas, isso são contas de outro rosário. O que agora nos interessa são as
Inquirições do Reverendo Francisco Xavier da Veiga provido na meia
conezia curada que vagou por falecimento do Reverendo Francisco José V. de
Pina, 1779[v]
Ilustríssimo e Reverendíssimo Senhor
Diz Francisco Xavier da Veiga filho legítimo do Dr. Pedro dos Santos da
Veiga e de sua mulher Eufrásia Maria Teodora de Niz, natural da Vila de
Aljubarrota, Bispado de Leira que achando-se colado na Conezia meia Prebendada
que vagou por falecimento do Reverendo Francisco José V. De Pina, deseja tomar
a sua posse, e porque o não pode fazer, sem que Vossa Senhoria lhe mande fazer
as diligências de genere,
Pede a Vossa Senhoria seja servido nomear-lhe Juízes Comissários para o
devido efeito
Espera e Roga Mercê
O requerido obteve provimento e foram nomeados os
Inquiridores e mandado que se procedesse às Inquirições do requerente, de seus pais
Dr. Pedro Santos da Veiga e sua mulher Eufrásia Maria Teodora de Niz e avós
paternos, Manuel Antunes e Catarina Francisca, do lugar de Alvados e maternos António
de Niz do Vale e Margarida Amada, todos do Bispado de Leiria.
Em cumprimento do que, em 3 de Fevereiro de 1779, já se
encontravam em Aljubarrota os cónegos João Lopes e João Baptista da Silva, da
dita Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, de Guimarães e nessa data ouviram
as testemunhas.
Foram elas:
Simão Baptista de Sequeira, então com setenta e nove anos de idade[vi], viúvo, natural da vila da Batalha, Capitão de Ordenanças da Vila da Cela[vii], Familiar do Santo ofício, morador em Aljubarrota há mais de cinquenta anos,
Simão Baptista de Sequeira, então com setenta e nove anos de idade[vi], viúvo, natural da vila da Batalha, Capitão de Ordenanças da Vila da Cela[vii], Familiar do Santo ofício, morador em Aljubarrota há mais de cinquenta anos,
Reverendo Padre
Joaquim de Proença Saraiva, Presbítero Secular, de cinquenta e quatro anos
de idade, natural da freguesia de Souto da Casa, Termo do Fundão, Bispado da
Guarda, morador nesta vila de Aljubarrota há quarenta e dois anos,
Veríssimo de Sousa
Henriques, de sessenta e nove anos de idade, viúvo, Capitão da Ordenança da freguesia de S. Vicente desta mesma vila de
Aljubarrota, natural e baptizado na Colegiada da S. João Baptista da Vila de
Coruche, morador nesta vila há cinquenta e dois anos,
Doutor João Baptista
de Oliveira Baena, Cavaleiro Professo na Ordem de Cristo, que serviu a Sua Majestade nos Lugares de
Letras, natural da vila de Aljubarrota, casado, de setenta anos de idade,
Doutor Silvestre
Torres Correia Triaga, de sessenta e quatro anos de idade, viúvo, natural e
morador na vila de Aljubarrota,
Reverendo Padre José
Gomes Ferreira, Presbítero Secular, de sessenta e seis anos de idade,
natural e morador na vila de Aljubarrota,
Sebastião de Barros,
lavrador, casado, de sessenta anos
de idade, morador no lugar da Cumeira, freguesia de S. Miguel do Juncal, termo
da Vila de Porto de Mós e natural do lugar de Alvados, freguesia de N. Senhora
da Consolação, do mesmo termo,
Maria da Silva
Bonifácia, solteira, de sessenta e quatro anos de idade, que vive de seus bens, moradora no
lugar da Cumeira, freguesia de S. Miguel do Juncal, termo da vila de Porto de
Mós e natural do lugar de Alvados, freguesia de N. Senhora da Consolação, do
mesmo termo,
José de Barros,
de sessenta anos de idade, casado, que vive
de sua fazenda, morador no lugar da Cumeira, freguesia de S. Miguel do
Juncal, termo da Vila de Porto de Mós e natural do lugar e freguesia de
Alvados, do mesmo termo,
As testemunhas foram perguntadas aos nove interrogatórios
“costumados em semelhantes diligências” e responderam, coerentemente,
testemunhando que o Dr. Francisco Xavier da Veiga, Bacharel em Teologia e
Clérigo in inmoribus, nasceu na vila de Aljubarrota, no Beco junto da Rua
Direita e foi baptizado na Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres da mesma vila.,
sendo filho do Dr. Pedro Santos da Veiga e de sua mulher Eufrásia Maria Teodora
de Niz, moradores no dito Beco, ele natural de Alvados, freguesia de Nossa Senhora
da Consolação, termo da vila de Porto de Mós e ela da freguesia de Nossa
Senhora dos Prazeres da vila de Aljubarrota.
Quanto aos avós do inquirido, as testemunhas naturais de e, ou,
residentes em Aljubarrota deixaram para outras as afirmações peremptórias
acerca dos avós paternos, mas não hesitaram em confirmar que António de Niz do
Vale e sua mulher Margarida Amada, lavradores, avós maternos do habilitando e,
ambos, já falecidos naquela data, foram naturais e moradores naquela vila de
Aljubarrota, freguesia de Nossa Senhora dos Prazeres.
Das oito testemunhas ouvidas, duas eram naturais de Alvados
e colmataram o menor conhecimento que as demais pudessem ter sobre Manuel
Antunes e sua mulher Catarina Francisca, já então falecidos, avós paternos do
habilitando, os quais foram naturais e moradores no dito lugar de Alvados
E, todos, que o habilitando era filho legítimo dos pais
referidos e, também, neto legítimo dos avós mencionados e por tal sempre foi havido
e reputado.
E, que o habilitando não era nem foi herege, “nem apóstata da
nossa Santa Fé Católica” e que não era filho de pais ou neto de avós, paternos
ou maternos, que cometessem crime de lesa-majestade Divina ou Humana por que
fossem sentenciados e condenados nas penas estabelecidas pelas leis do Reino.
E que não sabiam nem nunca ouviram que o habilitando ou seus
pais, ou seus avós, alguma vez tivessem sido presos ou penitenciados pelo Santo
Ofício, ou incorressem em alguma infâmia pública, ou pena vil, e facto ou de direito.
E que tudo o que testemunharam era publico e notório.
E assim se concluíram, ainda naquele dia 3 de Fevereiro de
1779, as inquirições que foram vistas e aprovadas pelo Cabido de Nossa Senhora
da Oliveira logo no dia 10 seguinte, permitindo, assim, que o Dr. Francisco
Xavier da Veiga tomasse posse da sua conezia meia-prebendada numa das mais
antigas e ricas colegiadas de Portugal.
Os inimigos do nosso padre doutor (que os tinha, certamente),
não hão-de ter deixado de dizer, entre dentes, que ele tinha arranjado “um
grande tacho”
[i] Breve Exponi Nobis, de 12 de Julho de 1636.
[ii] In Juan
Hernandez Franco, Cultura e Limpieza de
Sangre en la España Moderna, Universidad de Murcia, 1996.
[iii] O
assento está transcrito no Boletim de
Estudos Históricos, Vol. I, 1933-1936, p.39-48, disponível na internet
(consultado em 5-5-2017) em: http://www.csarmento.uminho.pt/docs/amap/bth/bth1933-1936_13.pdf.
[iv] O
processo queria-se inteiramente secreto.
[v] In Boletim de Estudos Históricos, Vol. XXVII, 1967-1974,
p.160-172, disponível na internet (consultado em 5-5-2017), em: http://www.csarmento.uminho.pt/docs/amap/bth/bth1967-1974_04.pdf.
[vi] A idade
das testemunhas era declarada pelas próprias que, em regra, acrescentavam
“pouco mais ou menos”.
[vii] Talvez
por parecer insólito que a testemunha residisse num concelho sendo capitão de
ordenanças noutro, na transcrição o cargo está seguido de um ponto de
interrogação. Mas, era mesmo assim, como se vê em Nuno Gonçalo Pereira Borrego,
As Ordenanças e as Milícias em Portugal,
Subsídios para o seu Estudo, Vol I, Guarda-Mor, Lisboa 2006, p.292
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