domingo, 25 de junho de 2017

Brasões Plebeus



Os nobres obtinham do rei a “carta de brasão” que os autorizava a mandar lavrar na pedra os símbolos do seu sangue, poder, propriedade e importância, pelo que compunham o brasão com os símbolos familiares dos seus antepassados, de onde lhes vinha a fortuna, a importância social e o poder.
Aos plebeus, sem antepassados ilustres para mostrar, quando queriam e podiam marcar a sua propriedade e importância, restava representavam-se a si mesmos, com o seu nome e a sua profissão, afirmando-se por si e pelo que faziam.

Em Alcobaça, terra de pouca Nobreza (ele era mais clero ordinário e povo trabalhando duro para pagar os foros) não se veem brasões que não os da Ordem, afinal, o verdadeiro e único Senhor feudal destes Termos.

Por outro lado, são por aqui vulgares uns outros brasões plebeus como o são as pedras da era[i] que vulgarmente e até há poucas décadas se colocavam sobre a porta principal da casa. Quase sempre, apenas uma pedra lisa com uma moldura simples e a inscrição em baixo relevo das iniciais do proprietário e o ano da construção da casa. Em casos mais antigos, por exemplo, na casa de Amélia Cordeiro, apenas a data (1794), inscrita na própria verga da porta.
 
Só conheço um caso em que às iniciais do proprietário se juntam as da esposa: a cisterna mandada construir pelo ti Manuel Luís: (16-8-1923/MLS|MG).

Pedras da era de desenho mais complexo são muito raras. A mais curiosa e diferente das demais existentes na Ataíja, é a que encima a porta da casa que foi de Manuel Rebelo.
O Manuel Rebelo que era natural de Turquel e casou na Ataíja com Joaquina Méla, filha de António Orelha e Joaquina Porfíria[ii]. Tinha a profissão de serrador[iii] e por isso, mandou lavrar a sua pedra da era com os símbolos da profissão: o machado e o serrote.



Também um destes dias, encontrei aqui bem perto, nas Pedreiras, uma inusitada padieira ostentando, esculpidos em alto relevo, os atributos profissionais do proprietário: O esquadro, o compasso, a maceta e o escopro. Ao centro, sobre a data, as iniciais do proprietário, entrelaçadas num complicado desenho onde se vê um J e uma outra letra que me parece um C mas, não o juro.
O proprietário da casa foi, certamente, o autor de tal padieira onde orgulhosamente lavrou, com técnica ingénua, denunciadora da falta de estudos artísticos[iv], os instrumentos da sua profissão de canteiro.
  


Os cemitérios são, de há muito, outro lugar privilegiado para cada um exibir o seu brasão, sendo conhecidas lápides funerárias romanas com reproduções de instrumentos de trabalho, como, por exemplo, uma groma (instrumento usado pelos agrimensores na medição de terrenos), em lápide encontrada no Vale de Aosta (Noroeste de Itália).
Entre os avieiros, os pescadores fluviais do Tejo que colhem o nome da Praia da Vieira (Leiria), local de origem dos primitivos pescadores que dalí emigraram no final do século XIX, é comum que nas lápides tumulares se mostrem esculpidos os objectos com que o falecido trabalhou em vida: redes, remos, canastras e peixes e, principalmente, barcos.
Segundo Alberto Costa e Silva,[v] em Moçâmedes (hoje Namibe, em Angola) há um cemitério com sepulturas de pedra, qualificadas por Gilberto Freyre como afro-cristãs, nesse cemitério, diz, não se enterravam os patrões brancos mas eram inumados os seus ex-escravos e serviçais e outros africanos cristianizados.
Diz ele que, aí as sepulturas, em regra uma lápide vertical com cerca de um metro de altura, são decoradas no alto com uma cruz e, em baixo, com relevos de instrumentos de trabalho (um martelo, uma enxada, um serrote), transportando para a lápide a antiga norma de colocar sobre a tumba as insígnias do ofício do morto.
Ainda segundo o mesmo autor, idêntico costume já tinha sido registado, na metade do século XVII, pelo capuchinho Giovanni Antonio Cavazzi de Monteccúcolo, na sua Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola: “punham-se sobre os túmulos dos nobres uma cadeira, o arco, as flechas e outros objectos de seu uso; sobre os dos plebeus, caveiras de feras para um caçador, cítara ou tambores para um músico, martelo e bigorna para um ferreiro”.

Também em Aljubarrota, em tempos idos, teve larga divulgação o uso de gravar instrumentos de trabalho nas lápides tumulares como, nas Memórias Paroquiais[vi], diz o Cura de S. Vicente:

“… pelas visitas[vii] desta freguesia da Era de 1595 em que esta igreja estava quase destruída porque se conservava só uma ermida já muito desbaratada que era a capela-mor desta igreja[viii], consta que era sagrada pelo que o visitador daquele tempo manda que seja reparada mas com a continuação dos tempos e poucas rendas veio de todo arruinar como está conservando só os vestígios com um grande cemitério cheio de muitas sepulturas com pedras brancas levantadas as cabeceiras com as insígnias dos ofícios de cada um ainda que estas hoje estão quebradas , mas ainda se distinguem em muitas os sinais.”[ix]
Sobre este assunto tinha dito o Padre Cardoso, 21 anos antes[x]:
Defronte da vila, duzentos passos de distância, se deixam ver as escassas relíquias da antiquíssima Igreja de Santa Marinha que, por tradição comum compreendia até a vila de Turquel, a duas léguas de distância. Divisam-se ainda hoje no seu adro as sepulturas com pedras lavradas por cabeceiras, com vários instrumentos de ofícios esculpidos, como são, arados e outras insígnias deste género.

Tal costume, de traçar nas lápides funerárias os símbolos da profissão do morto, desapareceu quase tão completamente como desapareceram os vestígios da misteriosa Igreja de Santa Marinha, de que ninguém parece fazer a mais pequena ideia de onde poderá ter existido.






[i] Pedra da Era porque, invariavelmente, dela consta a data da realização da obra em que se insere.
[ii] Como é evidente, tudo alcunhas.
[iii] E a alcunha, sendo conhecido por toda a gente como Manuel Serrador.
[iv] Repare-se como o esquadro se dobra para se sobrepor ao compasso, ou como o escopro “atravessa” o cabo da maceta.
[v] in Francisco Félix de Souza, mercador de escravos, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2004.
[vi] Transcrevemos, em português moderno, a partir de Memórias Paroquiais (1758), Vol. III, João Cosme e José Varandas (introdução, transcrição e índices), Caleidoscópio, Lisboa, 2011), página 25.
[vii] Visitas de inspecção às Paróquias, promovidas pelo Bispado de Leiria.
[viii] Igreja que terá sido a primeira sede da freguesia e terá existido, cerca de “trezentos passos, mais ou menos”, segundo o Cura, ou duzentos segundo o Padre Cardoso, a norte da actual e que terá entrado em ruína no Séc. XVI.
[ix] Negrito nosso.
[x]  Dicionário Geográfico. 

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