domingo, 29 de março de 2020

A Imagem e a Capela de Nossa Senhora da Graça da Ataíja de Cima – Lenda e História



Nos “Tesouros Artísticos de Portugal”[i] a imagem de Nossa Senhora da Graça é mencionada nos seguintes termos:

ERMIDA DE NOSSA SENHORA DA GRAÇA. Situa-se em Ataíja e guarda uma escultura de pedra quinhentista[ii] representando o orago, prejudicada por uma infeliz repintura. Neste lugar existiu um convento de frades, hoje reduzido à fachada setecentista, brasonada.”

A infeliz repintura, como lhe chama o autor, que dá à imagem o aspecto que actualmente lhe conhecemos, foi, segundo contava o meu pai que o terá ouvido ao seu, feita em finais do séc. XIX, ou inícios do séc. XX, porque a anterior se encontrava muito degradada, por Manuel Ferreira da Bernarda ou um outro pintor da sua fábrica.
O convento de frades, esse, nunca existiu. Na Ataíja nunca houve um convento de frades. Apenas, um lagar de azeite da Ordem de Cister construído em meados do séc. XVIII e que é a construção a que o autor se refere

Naquele tempo, andavam a construir uma casa e foram tirar a pedra a um sítio, a que agora chamam a Pia da Senhora ou a Cova da Santa.
Carregaram num carro de bois uma grande pedra que daria um bom cunhal e deixaram-na no local da obra. No dia seguinte a pedra não estava onde a tinham deixado mas, perante a incredulidade geral, no sítio de onde a tinham tirado.
Tornaram a carregar a pedra e o acontecido voltou a acontecer e repetiu-se, ainda, uma terceira vez.

Não havia dúvidas. Era um milagre.

Perante tal maravilha, logo o povo ali decidiu que haviam de mandar a um imaginário que fizesse da pedra uma bonita Nossa Senhora que, atentando bem, já ali se vislumbrava e, do mesmo passo, decidiram que a casa que queriam construir já não seria para nela habitar uma família, mas seria a Capela onde passariam a venerar a imagem.



A minha avó Maria Lourenço que me contou esta história e muitas outras, era analfabeta e não podia saber que entre os anos de 1545 e 1563 decorreu em Trento, cidade situada no norte de Itália, um dos mais importantes concílios da história da Igreja Católica, o Concílio de Trento ou Tridentino, convocado pelo Papa Paulo III em reação às divisões provocadas pelo surgimento do protestantismo, na sequência da publicação, em 1517, das 95 Teses de Lutero.

Lembremo-nos igualmente – e a minha avó também o não podia saber – que, por esses tempos, por toda a primeira metade do séc. XVI, se travou em Portugal uma longa disputa em torno da criação e consolidação do Tribunal do Santo Oficio[iii].

Ou seja, na segunda metade do séc. XVI, estavam reunidas todas as condições para que na nossa região, como por todo o Portugal, se fizessem sentir os ventos da Contra-Reforma, erguendo-se nesse tempo a maioria das capelas que ainda hoje existem nas nossas aldeias.

É neste contexto da Contra-Reforma e da acção do Santo ofício que os milagres se multiplicam:
Ao milagre da imagem de Nossa Senhora da Graça, que terá acontecido algures na segunda metade do séc. XVI, época de fabricação da imagem, acrescem pelo menos três milagres supostamente acontecidos em Aljubarrota.

O Couseiro dá-nos conta do aparecimento miraculoso da imagem da Senhora do Laço, acontecido em 1568[iv].
O mesmo milagre é contado em diferente versão nas Memórias Paroquiais[v] onde, por outro lado, se acrescentam outros milagres imputáveis à mesma imagem. No entanto, sem adiantar data, o pároco limita-se a dizer que o milagre do laço “é tradição antiquíssima”.

Segundo o que o Padre Luís Cardoso, por sua vez, diz no Dicionário Geográfico,[vi] este milagre teria acontecido cerca de 1617[vii].
- Um crucifixo que abriu os olhos e suou, milagre este que foi presenciado por “António Coelho, natural da Ataíja de Cima, homem de boa via e honestos procedimentos”, diz o Padre Cardoso.


E, não ficam por aqui os milagres locais.

Em 1611, num mesmo dia, mais dois milagres:

- Uma imagem do Senhor Preso à Coluna que saiu incólume do incêndio que devorou os panos sobre que se encontrava.


Os “milagres”, muitas das vezes consistindo em imagens aparecidas ou semoventes[viii] ou as duas coisas, “aconteceram”, ou foram “recuperados”, em grande quantidade, entre o final do séc. XVI e por todos os séc. XVII e XVIII e estão na origem de muitos edifícios religiosos, por vezes imponentes santuários. (é o caso – e para dar, apenas, três exemplos da nossa região – do Senhor Jesus da Pedra, em Óbidos, do Senhor Jesus dos Milagres, na localidade do mesmo nome, perto de Leiria e do Santuário de Nossa Senhora da Nazaré, no Sítio)[ix].

A veracidade da maioria destes milagres é, no entanto e hoje em dia, objecto de dúvida generalizada, inclusive por parte da Igreja Católica que não reconhece muitos deles.

Seja como for, o nosso modesto milagre deu origem à também modesta capela. Tão modesta que, ainda em meados do Século XVII, quer dizer, mais ou menos quando o Duque de Bragança, depois D. João IV e os seus companheiros puseram fim à união com a Espanha filipina e recuperaram a independência de Portugal, era descrita no Couseiro, um importante repositório da realidade da Diocese de Leiria o qual contém, designadamente, um completo inventário e descrição das igreja, capelas e ermidas do bispado, nos seguintes termos:

“… (no lugar da Ataíja de cima há uma ermida) da invocação de Nossa Senhora da Graça, a cuja fábrica são obrigados os moradores do mesmo Lugar; a imagem da Senhora é de vulto, pintada, sem nicho, nem retábulo, nem capela, nem igreja forrada, nem sino.”

A imagem era a que conhecemos, eventualmente com diferente pintura. A capela, essa era bem mais pobre. Quatro modestas paredes cobertas de telha vã sem, sequer, um sino que chamasse os fiéis à oração.

Não sabemos quando é que a imagem de Nossa Senhora da Graça ganhou o seu nicho. Talvez, como indicia a sua traça, ainda na segunda metade do Séc. XVII ou na primeira do Séc. XVIII. Esse nicho está agora como peça decorativa do Adro (será, brevemente, incorporado no Centro Paroquial em construção), depois de em 2003 ter sido substituído por uma cópia em mármore, aliás fielmente executada.

Sobre o que seria a arquitectura da capela em meados do Séc.  XVIII não se pronuncia o pároco de São Vicente que, em resposta ao inquérito pombalino[x], apenas diz que:

“… (a freguesia de São Vicente) Tem mais a cappela de Nossa Senhora da Graça cuja imagem parece bem antiga e hé de pedra e do povo daquele lugar que se chama a Athaeja de Sima. Esta cappela está em um largo no meyo do lugar[xi]; tem seu juis e mordomos que lhe administram alguns rendimentos que tem que servem para a fabrica da ditta capella e festa da mesma Senhora que se faz em hῦas das oitavas do Natal, e nesse dia acode a ella bastante gente dos povos vizinhos e tem também esta cappela em o altar a imagem do Menino Jesus.”

Por este tempo estaria a ser plantado o olival dos frades e a ser construído o lagar, de que hoje apenas sobram as ruinas da cerca da quinta em que se inseria e as da casa do monge lagareiro. Factos que não deixaram de ter grande importância na vida Ataíjense e, portanto, também na sua capela.
Mas isso, terá de ficar para uma outra vez.


(texto publicado inicialmente em 117-01-2018, revisto e actualizado em 29-03-2020)



[i] Tesouros Artísticos de Portugal, orientação e coordenação de José António Ferreira de Almeida, edição Selecções do Reader’s Digest, Lisboa, 1980
[ii] Quinhentista. Relativo ao séc. XVI.
[iii] V. Marcocci, Giuseppe, A Fundação da Inquisição em Portugal: um novo olhar, in Lusitania Sacra. 23 (Janeiro-Junho 2011) 17-40
[iv]. Couseiro ou Memórias do Bispado de Leiria, Transcrição da 2ª edição de 1898. Colecção Tempos & Vidas, Textiverso, Leiria, 2011. Pág. 263 e nota 23.
[v] Memórias Paroquiais (1758), Volume III, Introdução, Transcrição e Índices, José Cosme e José Varandas, pág. 11, Edição Caleidoscópio e Centro de História da universidade de Lisboa, 2011.
[vi] Padre Luís Cardoso, Dicionário Geográfico, Tomo I, pág. 314, Lisboa, MDCCXLVII.
[vii] “há cerca de trina anos”, diz ele.
[viii] Que se move por si própria
[ix] No Brasil, uma Senhora da Nazaré semovente, aparecida em 1700, deu origem ao Círio de Nossa Senhora da Nazaré de Belém do Pará que é, por muitos, considerado a maior manifestação religiosa católica do país, nela participando mais de 2 milhões de fiéis.
[x] V. Memória Paroquiais (1758),  Volume III, edição Caleidoscópio e Centro de História da Universidade de Lisboa, 2011.
[xi] Lugar esse (Ataíja de Cima) que, diz o padre noutro lugar, tem cinquenta e três vizinhos (casas habitadas) e cento e setenta e sete pessoas.

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