Nos “Tesouros Artísticos de Portugal”[i]
a imagem de Nossa Senhora da Graça é mencionada nos seguintes termos:
“ERMIDA
DE NOSSA SENHORA DA GRAÇA. Situa-se em Ataíja e guarda uma escultura de
pedra quinhentista[ii]
representando o orago, prejudicada por uma infeliz repintura. Neste lugar
existiu um convento de frades, hoje reduzido à fachada setecentista,
brasonada.”
A infeliz repintura, como lhe chama o autor, que dá à imagem
o aspecto que actualmente lhe conhecemos, foi, segundo contava o meu pai que o
terá ouvido ao seu, feita em finais do séc. XIX, ou inícios do séc. XX, porque
a anterior se encontrava muito degradada, por Manuel Ferreira da Bernarda ou um
outro pintor da sua fábrica.
O convento de frades, esse, nunca existiu. Na Ataíja nunca houve um convento de frades. Apenas, um lagar de azeite da Ordem de Cister construído em meados do séc. XVIII e que é a construção a que o autor se refere
O convento de frades, esse, nunca existiu. Na Ataíja nunca houve um convento de frades. Apenas, um lagar de azeite da Ordem de Cister construído em meados do séc. XVIII e que é a construção a que o autor se refere
Naquele tempo,
andavam a construir uma casa e foram tirar a pedra a um sítio, a que agora chamam a Pia da Senhora ou a Cova da Santa.
Carregaram num carro
de bois uma grande pedra que daria um bom cunhal e deixaram-na no local da
obra. No dia seguinte a pedra não estava onde a tinham deixado mas, perante a incredulidade geral, no sítio de onde a tinham tirado.
Tornaram a carregar a
pedra e o acontecido voltou a acontecer e repetiu-se, ainda, uma terceira vez.
Não havia dúvidas. Era um milagre.
Perante tal maravilha, logo o povo ali decidiu que haviam de
mandar a um imaginário que fizesse da pedra uma bonita Nossa Senhora que,
atentando bem, já ali se vislumbrava e, do mesmo passo, decidiram que a casa
que queriam construir já não seria para nela habitar uma família, mas seria a
Capela onde passariam a venerar a imagem.
A minha avó Maria Lourenço que me contou esta história e
muitas outras, era analfabeta e não podia saber que entre os anos de 1545 e
1563 decorreu em Trento, cidade situada no norte de Itália, um dos mais
importantes concílios da história da Igreja Católica, o Concílio de Trento ou
Tridentino, convocado pelo Papa Paulo III em reação às divisões provocadas pelo
surgimento do protestantismo, na sequência da publicação, em 1517, das 95 Teses
de Lutero.
Lembremo-nos igualmente – e a minha avó também o não podia saber – que, por esses tempos, por toda a primeira metade do séc. XVI, se travou em Portugal uma longa disputa em torno da criação e consolidação do Tribunal do Santo Oficio[iii].
Lembremo-nos igualmente – e a minha avó também o não podia saber – que, por esses tempos, por toda a primeira metade do séc. XVI, se travou em Portugal uma longa disputa em torno da criação e consolidação do Tribunal do Santo Oficio[iii].
Ou seja, na segunda metade do séc. XVI, estavam reunidas
todas as condições para que na nossa região, como por todo o Portugal, se
fizessem sentir os ventos da Contra-Reforma, erguendo-se nesse tempo a maioria
das capelas que ainda hoje existem nas nossas aldeias.
É neste contexto da Contra-Reforma e da acção do Santo
ofício que os milagres se multiplicam:
Ao milagre da imagem de Nossa Senhora da Graça, que terá
acontecido algures na segunda metade do séc. XVI, época de fabricação da
imagem, acrescem pelo menos três milagres supostamente acontecidos em
Aljubarrota.
O Couseiro dá-nos conta do aparecimento miraculoso da imagem
da Senhora do Laço, acontecido em 1568[iv].
O mesmo milagre é contado em diferente versão nas Memórias Paroquiais[v] onde, por outro lado, se acrescentam outros milagres imputáveis à mesma imagem. No entanto, sem adiantar data, o pároco limita-se a dizer que o milagre do laço “é tradição antiquíssima”.
O mesmo milagre é contado em diferente versão nas Memórias Paroquiais[v] onde, por outro lado, se acrescentam outros milagres imputáveis à mesma imagem. No entanto, sem adiantar data, o pároco limita-se a dizer que o milagre do laço “é tradição antiquíssima”.
- Um crucifixo que abriu os olhos e suou, milagre este que foi presenciado por “António Coelho, natural da Ataíja de Cima, homem de boa via e honestos procedimentos”, diz o Padre Cardoso.
E, não ficam por aqui os milagres locais.
Em 1611, num mesmo dia, mais dois milagres:
- Uma imagem do Senhor Preso à Coluna que saiu incólume do incêndio que devorou os panos sobre que se encontrava.
Os “milagres”, muitas das vezes consistindo em imagens
aparecidas ou semoventes[viii] ou as duas coisas,
“aconteceram”, ou foram “recuperados”, em grande quantidade, entre o final do
séc. XVI e por todos os séc. XVII e XVIII e estão na origem de muitos edifícios
religiosos, por vezes imponentes santuários. (é o caso – e para dar, apenas, três
exemplos da nossa região – do Senhor Jesus da Pedra, em Óbidos, do Senhor Jesus
dos Milagres, na localidade do mesmo nome, perto de Leiria e do Santuário de
Nossa Senhora da Nazaré, no Sítio)[ix].
A veracidade da maioria destes milagres é, no entanto
e hoje em dia, objecto de dúvida generalizada, inclusive por parte da Igreja
Católica que não reconhece muitos deles.
Seja como for, o nosso modesto milagre deu origem à
também modesta capela. Tão modesta que, ainda em meados do Século XVII, quer dizer, mais ou
menos quando o Duque de Bragança, depois D. João IV e os seus companheiros
puseram fim à união com a Espanha filipina e recuperaram a independência de
Portugal, era descrita no Couseiro, um importante repositório da
realidade da Diocese de Leiria o qual contém, designadamente, um completo
inventário e descrição das igreja, capelas e ermidas do bispado, nos seguintes termos:
“… (no lugar da Ataíja de cima há uma ermida) da
invocação de Nossa Senhora da Graça, a cuja fábrica são obrigados os moradores
do mesmo Lugar; a imagem da Senhora é de vulto, pintada, sem nicho, nem
retábulo, nem capela, nem igreja forrada, nem sino.”
A imagem era a que conhecemos, eventualmente com
diferente pintura. A capela, essa era bem mais pobre. Quatro modestas paredes
cobertas de telha vã sem, sequer, um sino que chamasse os fiéis à oração.
Não sabemos quando é que a imagem de Nossa Senhora da Graça ganhou o seu nicho. Talvez, como indicia a sua traça, ainda na segunda metade do Séc. XVII ou na primeira do Séc. XVIII. Esse nicho está agora como peça decorativa do Adro (será, brevemente, incorporado no Centro Paroquial em construção), depois de em 2003 ter sido substituído por uma cópia em mármore, aliás fielmente executada.
Não sabemos quando é que a imagem de Nossa Senhora da Graça ganhou o seu nicho. Talvez, como indicia a sua traça, ainda na segunda metade do Séc. XVII ou na primeira do Séc. XVIII. Esse nicho está agora como peça decorativa do Adro (será, brevemente, incorporado no Centro Paroquial em construção), depois de em 2003 ter sido substituído por uma cópia em mármore, aliás fielmente executada.
Sobre o que seria a arquitectura da capela em meados
do Séc. XVIII não se pronuncia o pároco
de São Vicente que, em resposta ao inquérito pombalino[x], apenas diz que:
“… (a
freguesia de São Vicente) Tem mais a cappela de Nossa Senhora da Graça cuja
imagem parece bem antiga e hé de pedra e do povo daquele lugar que se chama a
Athaeja de Sima. Esta cappela está em um largo no meyo do lugar[xi];
tem seu juis e mordomos que lhe administram alguns rendimentos que tem que servem
para a fabrica da ditta capella e festa da mesma Senhora que se faz em hῦas das
oitavas do Natal, e nesse dia acode a ella bastante gente dos povos vizinhos e
tem também esta cappela em o altar a imagem do Menino Jesus.”
Por este tempo estaria a ser plantado o olival dos
frades e a ser construído o lagar, de que hoje apenas sobram as ruinas da cerca
da quinta em que se inseria e as da casa do monge lagareiro. Factos que
não deixaram de ter grande importância na vida Ataíjense e, portanto, também na
sua capela.
Mas isso, terá de ficar para uma outra vez.
[i] Tesouros
Artísticos de Portugal, orientação e coordenação de José António Ferreira de
Almeida, edição Selecções do Reader’s Digest, Lisboa, 1980
[ii]
Quinhentista. Relativo ao séc. XVI.
[iii] V.
Marcocci, Giuseppe, A Fundação da Inquisição em Portugal: um novo olhar, in Lusitania
Sacra. 23 (Janeiro-Junho 2011) 17-40
[iv]. Couseiro
ou Memórias do Bispado de Leiria, Transcrição da 2ª edição de 1898. Colecção
Tempos & Vidas, Textiverso, Leiria, 2011. Pág. 263 e nota 23.
[v] Memórias
Paroquiais (1758), Volume III, Introdução, Transcrição e Índices, José Cosme e
José Varandas, pág. 11, Edição Caleidoscópio e Centro de História da
universidade de Lisboa, 2011.
[vii] “há
cerca de trina anos”, diz ele.
[viii] Que
se move por si própria
[ix] No
Brasil, uma Senhora da Nazaré semovente, aparecida em 1700, deu origem ao Círio
de Nossa Senhora da Nazaré de Belém do Pará que é, por muitos, considerado a
maior manifestação religiosa católica do país, nela participando mais de 2
milhões de fiéis.
[x] V.
Memória Paroquiais (1758), Volume III, edição
Caleidoscópio e Centro de História da Universidade de Lisboa, 2011.
[xi] Lugar esse
(Ataíja de Cima) que, diz o padre noutro lugar, tem cinquenta e três vizinhos
(casas habitadas) e cento e setenta e sete pessoas.
Aqui aprendi mais um pouco sobre a profusão de milagres marianos em Portugal.
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