terça-feira, 31 de março de 2020

Pneumónica, Gripe A e outras epidemias

Nos anos de 1918 e 1919, no rescaldo da primeira guerra mundial, o mundo foi assolado por uma epidemia de gripe provocada por um vírus da estirpe A (tal como a actual gripe) que ficou conhecida por gripe espanhola ou, mais vulgarmente, por pneumónica, a mais mortífera de todas as epidemias da história.

As grandes epidemias são de todos os tempos e a mais famosa delas é, talvez, a peste negra que assolou a Europa no Século XIV e terá reduzido a população europeia a cerca de metade, tendo sido precisos quase duzentos anos para recuperar a população perdida.
Nesse tempo Portugal teria cerca de dois milhões de habitantes.

As pessoas do meu tempo aprenderam na escola sobre as epidemias de cólera-morbo e febre-amarela que afectaram Portugal em meados do Século XIX, entre 1853 e 1857, com gravíssimas consequências, tendo, só em Lisboa, falecido mais de 5.000 pessoas. Quatro anos depois, em 1861, o próprio Rei D. Pedro V viria a falecer de febre tifóide, outra das doenças infecciosas que atormentou o século.

Os navegadores e conquistadores espanhóis levaram para a América Central a gripe, que os índios locais desconheciam, e há quem diga que isso foi uma das maiores causas do quase total desaparecimento daqueles povos.
Em contrapartida, logo na primeira viagem de Colombo, no Haiti, adquiriram esses navegadores a sífilis, doença que era desconhecida na Europa onde se veio a disseminar com tanta rapidez e intensidade que no hospital Real de Todos-os-Santos, mandado construir por D. Manuel I em Lisboa, já havia uma “casa das boubas” para internar os doentes por ela afectados.
Da Europa, a doença espalhou-se rapidamente por todo o mundo e dela sofreram milhões de pessoas, durante 450 anos, até à descoberta da penicilina, em 1941.
Desta doença veio a morrer o rei Filipe IV de Espanha, III de Portugal.
As pessoas da minha geração lembram-se de um homem do Cadoiço que sempre conheci por Joaquim Doente, o qual nasceu cego e com a pele escamosa em razão da sífilis de que o seu pai sofria.
A sífilis atormentou a Europa durante cerca de 450 anos, até à descoberta da penicilina, mais a mais porque, sendo privilegiadamente transmitida por via sexual, a doença acarreta uma forte condenação moral e o estigma do portador, por devasso ou promíscuo.
Aliás, depois de uma forte queda  associada à descoberta da penicilina, a prevalência da síifilis encontra-se em crescendo em vários países, falando a revista especializada de medicina Lancet em milhões de infectados e cerca de 100.000 mortos de sífilis em 2015.

A pneumónica, essa, correu o mundo no final da Grande Guerra num curto período de pouco mais de 18 meses e os seus efeitos foram devastadores:
Terão morrido, em todo o mundo, entre vinte a quarenta milhões de pessoas, estudos mais recentes, falam em números mais elevados, alguns em cem milhões de mortos, o que, em qualquer caso, torna a pneumónica na doença epidémica mais mortífera de todos os tempos.

Em Portugal, segundo o professor João Frada in “A gripe pneumónica em Portugal Continental – 1918”. 1ª edição, Lisboa: Sete Caminhos, 2005, terão havido um pouco mais de sessenta mil falecimentos provocados pela pneumónica, mas outros cálculos falam em cem mil e, até, em duzentos mil mortes.

A incidência da pneumónica no distrito de Leiria foi particularmente grave, o que levou à proibição de feiras e romarias na tentativa de limitar as situações de contágio:


Também a Ataíja de Cima não ficou imune à doença, tendo eu conhecimento de a pneumónica aqui ter provocado, pelo menos, cinco mortes:

- António Matias que era proprietário da casa alta do Outeiro, avô e bisavô dos Matias actuais;
- Delfina, sua filha, solteira;
- Francisco Sabino, avô do nosso amigo Américo Sabino e de muitos outros;
- Tomás (só sei o apelido) que era casado com Maria Constantino e foi avô dos "delfinos";
- Maria, de17 anos, filha de Bernardino dos Santos (irmã, portanto, de Manuel e António "Casal") 

As condições sanitárias e os conhecimentos da medicina são, hoje em dia, completamente diferentes do que eram em 1918 (só cerca de 1930 é que se estabeleceu que o vírus da pneumónica era um vírus da estirpe A já que, em 1918, os conhecimentos da medicina o não permitiam).
A capacidade de isolar o vírus muito cedo e de produzir rapidamente vacinas e medicamentos e, talvez mais importante, a monitorização a nível mundial da evolução da doença, a massiva divulgação de informação sobre os comportamentos a adoptar pelos doentes e os sistemas que por todo o lado se estabeleceram com vista a prestar assistência às pessoas afectadas e, ainda, no caso de Portugal e da generalidade dos países desenvolvidos o acesso universal a cuidados de saúde, tem permitido limitar drasticamente os efeitos mortais das doenças contagiosas.

Mas isso não dispensa que cada um de nós tenha os cuidados adequados para evitar ou limitar as possibilidades de contágio.

Hoje, confrontados que estamos com a pandemia do Covid-19, é nosso dever tomar os cuidados adequados para evitar contagiar e ser contagiados e, quando nos sentirmos menos confiantes, de nos lembrarmos do que os que nos antecederam tiveram de enfrentar.


O texto, que agora republicamos com ligeiras actualizações, foi originalmente publicado neste blog em 22 de Dezembro de 2009.

Nota: A notícia da 5ª vitíma acima referida foi-nos confirmada hoje mesmo por um seu sobrinho-neto, o nosso amigo Jorge Bernardino, a quem agradecemos. 31.3.2020 JQ

1 comentário:

  1. A presença do passado é como o jogo do gato e do rato: ora pegas tu ora pego eu. Se bem que as epidemias estão mais para a roleta russa quando a bala está na culatra morre. Excelente trabalho José Quitério. É sempre bom lembrar. Temos uma mórbida tendência a ter memória curta.

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