(a propósito dos tempos que correm)
Em 1832, verificaram-se na Ataíja de Cima 10
falecimentos, um número invulgarmente alto face à média normal de três mortos
por ano.
Entre os dias 10 de Março e 21 de Abril, ocorreram a
maioria das mortes do ano: 6 pessoas. Destes, o falecimento em 20 de Março de
uma inocente sem nome, nascida nesse mesmo dia, filha de Custódia Maria, a qual
“foi batizada em casa por necessidade por Paulo dos Santos a quem examinei pelo
dito batismo”, conforme se escreve no respectivo assento de óbito, é, talvez,
um caso diferente, um problema sobrevindo durante o parto, como era vulgar na
época. Note-se, aliás, que a mãe sobreviveu, aparentemente sem sequelas.
Dos 10 falecidos no ano, 1 era viúvo, 2 casados e 7
solteiros, 3 dos quais “inocentes” e um “menor”. Dos solteiros, 3 eram expostos
do Real Hospital da Cidade de Lisboa que se encontravam a ser criados por amas
locais.
Dos 4 falecimentos ocorridos fora do período crítico
que se desenrolou entre 10 de Março e 21 de Abril, dois foram de crianças, de 4
e 11 anos e, os outros dois, de pessoas idosas:
Um destes foi Veríssimo Amado, uma pessoa de quem já
falamos noutros posts publicados neste blog e que, nesse tempo, tinha um filho
já com 45 anos de idade. Tratava-se, pois, de uma pessoa de idade avançada para
a época, pelo que se pode admitir que a morte se deveu a causas naturais.
O outro foi a viúva Micaela dos Santos, de quem também
já falámos, a propósito do seu testamento. A Micalela já era casada em 1790 (42 anos antes) e, em 1832, era,
seguramente, pessoa de avançada idade para a época, pelo que também a sua morte
pode ser tida como devendo-se a causas naturais.
Qual terá sido a razão ou a principal razão,
responsável por aquele anormal número de mortes?
Ao contrário do que se passa com a Cólera-morbo de 1833, não tenho certezas mas, muito provavelmente, tal mortandade é consequência do surto de tifo que, nesse ano de 1832, ocorreu em Portugal, com especial incidência nas regiões de Lisboa e Ribatejo.[i]
Ao contrário do que se passa com a Cólera-morbo de 1833, não tenho certezas mas, muito provavelmente, tal mortandade é consequência do surto de tifo que, nesse ano de 1832, ocorreu em Portugal, com especial incidência nas regiões de Lisboa e Ribatejo.[i]
O tifo epidémico, ou tifo exantemático
ou, apenas, tifo[ii],
é uma doença epidémica transmitida por parasitas comuns no corpo humano, como
piolhos. Uma outra forma de tifo, menos agressiva e que é, ainda, endémica em
certas regiões rurais de África, da América Central e do Sul e da Àsia é o
chamado tifo murino, cujo principal vector[iii] é uma pulga que parasita os ratos e
outros pequenos mamíferos.
As epidemias mais
graves verificaram-se em situações de grande aglomeração de pessoas e cuidados
limitados de higiene, como exércitos (foi a principal causa de morte entre os
soldados de Napoleão durante a campanha da Rússia).
Por essa época começou-se
a compreender a relação entre o tifo e a falta de higiene e o exército francês
introduziu nas medidas de disciplina a obrigatoriedade de fazer a barba e de
cortar o cabelo rente, como forma de acabar com os piolhos que eram o vector da
infecção.
E, de facto, as medidas de higiene capazes de
erradicar ou controlar as populações de ratos e piolhos, continuam a ser
estritamente necessárias para evitar o ressurgimento desta e de outras doenças
infecciosas.
O Tifo chegou a Portugal no final do século XV e foi
evoluindo por surtos até às Invasões Francesas, a partir de quando se tornou
endémico entre nós e assim se manteve até ao Séc. XX[iv] (o último grande surto de tifo, do
qual resultaram cerca de 3.000 mortos, ocorreu em 1918-1919 sobrepondo-se,
parcialmente, à pneumónica).
Pelas mesmas razões de falta de higiene, mesmo depois
disso o Tifo continuou a matar gente em prisões e campos de concentração (matou
centenas de milhares de pessoas em campos de concentração nazis, durante a
segunda guerra mundial).[v]
Passado um ano
sobre o surto de tifo, foi a Ataíja de cima vítima de uma nova e mais mortífera
epidemia, que assolou a Europa nos anos de 1832 e 1833 e chegou à nossa aldeia
em Junho de 1833.
A doença era conhecida há longo
tempo. Os portugueses conheciam-na desde o séc. XVI, por ser endémica na Índia onde
se manteve circunscrita até à década de 1820, quando atingiu a Rússia e
continuou a progredir para ocidente.
A cólera chegou a Portugal “trazida
a bordo de um navio que, de Ostende[vi],
transportava soldados para ajudarem D. Pedro no cerco do Porto”[vii],
quando já tinha atacado com grande virulência em Paris, no mês de Abril desse
ano de 1832.[viii]
Pela primeira vez, foi antecipada
a propagação de uma epidemia e a sua evolução sistematicamente acompanhada e,
por toda a Europa, foram publicados numerosos livros e folhetos contendo quer
instruções sobre os comportamentos a adoptar face à doença, ou para evitar a
doença, quer relatórios médicos descrevendo as observações aos doentes,
incluindo numerosas autópsias, ou relatando os efeitos dos medicamentos[ix] experimentados, seja, fazendo a
história médica da epidemia[x].
Exemplo de medida “preventiva” é o
Aviso de D. Miguel I[xi] ao Cardeal Patriarca de Lisboa que a
seguir se transcreve:
TENDO apparecido em algumas Nações, e ultimamente mais proximo a
nós, em a França, huma enfermidade nova, que se está conhecendo com o nome de Cholera-morbo
Asiatica, e cujos terríveis estragos são talvez hum castigo, com que a
Divina Omnipotência quer punir, e reprimir esse espirito de perversidade, e de
impiedade, que desgraçadamente tem chegado a tamanho gráo no Século, em que
vivemos, deve, em taes circumstancias, hum Povo Catholico, e que tanto se préza
de o ser, como o Povo Portuguez, acudir, e reunir-se junto aos Altares a
implorar a Clemencia do Omnipotente, e a adorar a Sua Alta Providencia, mesmo
quando assim se mostra severa, e justiceira: He por tanto da vontade de Sua
Magestade que Vossa Eminência ordene que, para o sobredito fim, hajão Preces
públicas em todo o Patriarchado. Sua Magestade Manda lembrar a Vossa Eminência
que he necessário que nessa ocasião os Ecclesiasticos, a quem isso competir,
usando do importante Ministerio da palavra, que lhes incumbe, fação conhecer
aos Povos que não basta a Oração para se applacar a Justiça Divina ofiendida,
mas que são precisas as boas obras, affastando elles com especialidade, e
repelindo firmemente para longe de si as idéas de corrupção, e de impiedade,
que os máos, para seus fins perversos, tanto tem procurado espalhar; e tambem
que lhes fação vêr os muitos motivos , que temos para esperar, e confiar na
Misericordia de Deos, que sempre se tem mostrado propicio aos Portuguezes , e
cujos Beneficios , ainda nestes passados tempos tão visivelmente acabamos de
experimentar, livrando-nos por duas vezes da Facção revolucionaria, que
dominava, e que
pertendia destruir o Throno , e a Religião, e causar a total ruina
de Portugal. O que de Ordem do Mesmo Senhor communico a Vossa Eminência para
sua intelligencia, e para que assim se execute, = Déos guarde a Vossa
Eminência. Çamora Corrêa em 28 de Maio dé 1832. = Eminentíssimo e
Reverendíssimo Senhor Cardeal Patriarcha.
= Luiz de Paula Furtado de Castro do Rio de Mendoça.
Depois do Porto, em cuja região
terá matado cerca de 13.000 pessoas, a Cólera alastrou a Lisboa e outras
regiões e terá feito, no país, um total de cerca de 40.000 mortos até
desaparecer no final de 1833.[xii]
À Ataija de Cima a cólera terá
chegado em Junho de 1833 provocando o que há-de ter sido uma hecatombe social,
com a morte, num espaço de quarenta dias, de um total de 16 pessoas (9 em
Junho, 7 em Julho).[xiii]
Quem morreu?
2 eram viúvos, 6 casados e 8 solteiros,
dos quais, 3 eram inocentes e um menor.
Dos inocentes, 2 eram expostos do
Real Hospital da Cidade de Lisboa, que estavam a ser criados na aldeia.
João Machado que, no final do ano
anterior tinha assistido à morte de uma filha verá, em Junho deste ano
morrerem, no mesmo dia, a mulher e uma outra filha.
Bernardo de Moira verá
desaparecerem-lhe, no espaço de 3 dias, um filho inocente e um menor.
A Custódia Maria, morreram o
marido e um exposto que criava.
Luis Machado e a mulher também
morreram no espaço de três dias.
10 mortos em
1832, a maioria deles em razão de um surto de tifo e,
18 mortos em
1833, a maioria deles por efeito da epidemia de cólera-morbo que assolou o
país.
vinte e oito mortos em dois anos, numa aldeia onde na maioria dos anos do Século XIX, morreram 3 ou 4 pessoas por
ano, equivale, grosso modo, ao número de mortes que havia de ter lugar em sete a nove anos.
É difícil
calcular com rigor a dimensão da tragédia, tanto mais que não dispomos, ainda, de
estimativas fiáveis sobre a população que a aldeia teria naquele tempo, mas, seguramente, morreu naqueles dois anos mais de 10% da população da aldeia).
Conseguem
imaginar?
NOTAS:
(todas as publicações referidas
nas Notas se encontram disponíveis online.)
[i] Em 1810-1813, um outro
surto de tifo tinha percorrido todas as localidades mais importantes do país,
provocando um tal número de mortes que há quem sustente que mais vítimas fez o
tifo do que as tropas francesas.
[ii]
O presente texto é, no que se refere à descrição e história da doença Tifo,
subsidiário de: “Tifo epidémico em Portugal: um contributo para o seu
conhecimento histórico e epidemiológico”, artigo de J. A. David de
Morais, publicado In Medicina Interna, Revista da Sociedade Portuguesa de
Medicina Interna, VOL.15 | Nº 3 | JUL/SET 2008
[iii] Vector, em medicina, é
o artrópode que transmite o germe de uma doença (bactéria, vírus, ou
protozoário) de um indíviduo doente a um indivíduo são. (in Dicionário Priberam
da Língua Portuguesa [em linha], consultado em 14-12-2013. Consultado hoje, o mesmo dicionário dá uma definição mais simples: "organismo vivo que é capaz de transmitir agentes infecciosos, bactérias,virus, etc a pessoas ou animais".).
[iv] Especialistas
contam um total de dezassete surtos de tifo, em Portugal, durante o Séc. XIX.
[v] Ver: http://www.invivo.fiocruz.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=758&sid=8 (consultado em linha
em 19-12-2013).
[vi] Ostende
situa-se na actual Bélgica que, por esse tempo, alcançava a independência.
[vii] O cerco
do Porto teve início em finais de Julho de 1832. Os "soldados" em
causa eram, certamente, mercenários que tinham combatido nas lutas pela
independência da Bélgica, iniciadas em 1830.
[viii] A
expressão entre aspas é de CORREIA, Fernando da Silva - Portugal Sanitário
(Subsídios para o seu estudo. Lisboa: Ministério do Interior ; Direcção Geral
de Saúde, 1938, p. 465), citado em: Portugal e as Conferências Sanitárias
Internacionais (Em torno das epidemias oitocentistas de cholera-morbus), por
Maria Rita Lino Garnel, Revista de História da Sociedade e da Cultura, 9,
Centro de História da Sociedade e da Cultura, Universidade de Coimbra, 2009.
[ix] Melhor
seria dizer mezinhas.
[x] No
caso de Portugal, por exemplo, o livro: Um fragmento da història da epidemia que, sob o nome de Còlera-morbus
asiàtico, havendo percorrido a Àsia e a maiòr parte da Europa, chegou a
Portugal no corrente anno
de 1833, pêlo Dr. Lima
Leitão.
Para o caso de França, por
exemplo: RELATION sur le
CHOLERA–MORBUS OBSERVÉ A PARIS , DANS LE MOIS d'AVRIL l832, SUIVIE D’UN RAPPORT
SUR L’ÉPIDÉMIE CHOLÉRIQUE QUI A RÉGNÉ DANS l'arrondissement DE BERNAY (EURE),
DEPUIS LE 29 AVRIL jusqu'au 27 SEPTEMBRE l832, PAR M. NEUVILLE,
[xi] Estavamos
em plena Guerra Civil que opunha os absolutistas chefiados por D. Miguel (que
tinha usurpado o Trono), aos liberais fiéis a D. Pedro IV.
As posições de cada uma das partes em conflito perante a epidemia
é um aspecto que acrescenta interesse ao estudo do tema.
O Aviso transcrito é um claro exemplo demonstrativo do extremismo
político e religioso de D. Miguel.
[xii] Havia de
voltar várias vezes durante as décadas seguintes e, com particular virulência,
em 1853-1856.
[xiii] Nesse ano houve, na aldeia, mais duas mortes que, no
entanto, não terão sido provocadas pela cólera.
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