terça-feira, 7 de janeiro de 2025

O Cabo de Ordens


As minhas memórias de infância remetem para os serões à lareira, quando a minha avó Maria Lourenço me contava histórias familiares.

Nessas histórias, o meu bisavô Joaquim da Graça era um carpinteiro pobre, viúvo em 1888 aos trinta e cinco anos de idade e pai de dois filhos vivos, (a minha avó de sete anos e o irmão Joaquim de quatro), que se casou, em 2ªs núpcias, com uma jovem casaleira de 20 anos de idade, a qual tratava mal os enteados órfãos e não tinha jeito para cozinhar.

Este segundo casamento do meu bisavó durou até ao seu falecimento e frutificou, tendo dele nascido, ao longo de 20 anos, pelo menos sete filhos dos quais seis chegaram a adultos e só uma, Júlia que casou com Luís Gomes, dito Francelino, tem atualmente descendência na Ataíja.

Dos demais, uma Maria faleceu jovem, um Joaquim emigrou para a Argentina e não mais houve notícias dele, um António casou nos Milagres e dele há descendência, um João, de alcunha Redondo, foi sapateiro, casou na Ataíja e faleceu sem descendência.

Os dois mais novos, mais novos, aliás, do que a sobrinha mais velha, Manuel, o Mariola nasceu em 23-11-1908, tinha o pai 55 anos, no mesmo ano da sua sobrinha Maria (Papoila) e Maria, a Marreca, ficaram solteiros, não tiveram descendência e viveram na Rua de Trás na casa que já era de seus pais e está hoje absolutamente arruinada e prestes a desaparecer.

O meu bisavô, como aliás o seu pai, diferentemente da generalidade dos seus conterrâneos que naquele tempo eram analfabetos, sabia ler e escrever e também os seus filhos homens o souberam.

Certamente que esse facto de saber ler e escrever terá sido uma das razões que justificaram a nomeação, em 1906, de Joaquim da Graça como Cabo de Polícia.

E, aqui chegados, importa saber duas coisas: o que era um Cabo de Polícia e quem era o Joaquim da Graça que foi nomeado Cabo de Polícia.

O Cabo de Polícia, a que eu na Ataíja sempre ouvi chamar Cabo de Ordens – os mais velhos recordar-se-ão que Alfredo Ângelo da Silva foi o último Cabo de Ordens – era o representante local do Regedor, a autoridade policial da aldeia.

As funções do Cabo de Polícia e os requisitos da sua nomeação constavam da Lei de 4 de Maio de 1896, que aprovou o Código Administrativo que ao tempo (1906) vigorava[i].

A administração do território baseava-se, por um lado, em municípios e paróquias de base eleitoral, governados respetivamente por uma câmara municipal e uma junta de paróquia que, por outro lado, estavam sujeitos a uma tutela governamental muito forte e próxima, assente em cada distrito no Governador Civil, nos municípios no Administrador do Concelho e nas paróquias no Regedor que era coadjuvado por Cabos de Polícia em número fixado pelo Governador Civil.

O serviço de Cabo de Polícia era gratuito e obrigatório e abrangia a totalidade da freguesia mas, na prática os Cabos de Polícia eram residentes nas aldeias mais importantes e o seu serviço cingia-se à aldeia.

Como coadjuvantes do Regedor cabia-lhes um alargado leque de funções de polícia, que aqui não importa especificar, das quais a mais relevante e à qual não havia maneira de se eximirem, era a nomeação dos homens que deviam carregar o morto até ao cemitério.

De facto, naquele tempo não eram uso  grandes cortejos de acompanhamento dos funerais. Em regra as mulheres ficavam em casa a chorar (como ainda hoje acontece nos países do Médio Oriente) e dos homens, apenas os que haviam de carregar o caixão e, eventualmente, algum parente mais próximo, integrava o cortejo fúnebre.

 Ora, transportar um caixão em ombros, por maus caminhos, durante três, quatro ou até sete quilómetros, como era o caso dos Moleanos, era tarefa para que, em regra, não havia voluntários. Cabia ao Cabo de Polícia, que conhecia a sua aldeia, designar de entre os homens válidos aqueles que deveriam transportar o morto até à Igreja paroquial e daí ao cemitério, o que devia  ser feito de acordo com regras de rotatividade equitativas e compreensíveis.

Parecerá estranho aos mais novos que as coisas se passassem como descrevo no parágrafo anterior. Mas, era mesmo assim. Lembro-me de os caixões serem transportados em ombros até Aljubarrota e de ter sido comprada – julgo que nos inícios dos anos sessenta - uma carreta que tornou a tarefa substancialmente mais fácil. Como me lembro da luta, aliás longa, dos Moleanos para conseguir autorização para a construção do seu próprio cemitério, precisamente para evitar a excessiva dureza da realização dos funerais em Aljubarrota.
Em 1906 e por muito tempo depois disso, o serviço de transporte do defunto era obrigatório e gratuito, sendo no entanto tradição que os transportadores gozassem, após o funeral, de uma merenda paga pela família do falecido. Quando eu era jovem ainda as coisas se passavam assim e a merenda era tomada nos fundos da taberna do Joaquim do Álvaro, onde agora o filho deste, o Torcato, tem o seu café.

Nos termos do artº 305º do referido Código Administrativo, os cabos de polícia eram nomeados de entre os soldados licenciados para a reserva, de entre os mancebos recenseados e sorteados para o serviço militar que não tivessem sido necessários para o preenchimento dos contingentes ou que podendo ser necessários ainda não tivessem sido chamados.

 

Quem era, então, o Joaquim da Graça que foi nomeado Cabo de Polícia em 1906?

O Código Administrativo dizia que os cabos de polícia eram nomeados de entre os soldados licenciados para a reserva e a lei que em 1869 criou o serviço militar obrigatório não remunerado, dispunha que esse serviço era por cinco anos, findos os quais os militares passavam a uma segunda linha, ou primeira reserva e, depois, para a reserva territorial até completarem 50 anos.[ii]

O meu bisavô Joaquim da Graça, nascido em 1853, tinha 53 anos em 1906 e, portanto, já não podia ser nomeado cabo de polícia.

Logo, o nosso Cabo de Polícia só pode ter sido o seu filho Joaquim, nascido em 29 de Setembro de 1884 e que à data da nomeação estava a pouco mais de um mês de completar os 22 anos e nessa data seria um mancebo  recenseado e sorteado para o serviço militar.

Serviço militar para o qual, aliás, veio posteriormente a ser chamado.

Nessa altura o Joaquim da Graça tinha namorada e estaria convencido de que já não seria chamado ao serviço militar obrigatório e, por isso, começou a construir a sua casa.

O inopinado chamamento à tropa provocou-lhe grande desgosto e, chegado ao quartel, ensimesmado, num dia frio de inverno chorou copiosamente com a cara encostada a um portão de ferro gelado, adoeceu e morreu.

Assim mo contou a minha avó que nas suas orações da noite nunca esquecia esse infeliz irmão que, aliás, sempre chamava de Joaquim Lourenço.

O Alvará de nomeação de Joaquim da Graça como Cabo de Polícia foi, durante muitas décadas, religiosamente guardado no fundo de uma arca pela sua meia-irmã, a minha tia-avó Maria Marreca

A casa que construiu mas nunca habitou é hoje a minha sala.


 



[i] A Legislação Régia pode ser consultada on line, no site da Assembleia da República, em parlamento.pt

[ii] (Borges, José Martins, Major de Infantaria, A Evolução de Modelos de Recrutamento Nas Organizações Militares, Instituto Universitário Militar, Departamento de Estudos Pós-Graduados (Curso de Estado-Maior Conjunto), Pedrouços, 2018. In (consultado em 16/12/2024):
https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/23221/1/MAJ%20José%20Borges.pdf

1 comentário:

  1. O João Manuel Ribeiro Coelho fez no Facebook o seguinte comentário:
    "José Quitério, o relato que fazes dos funerais de antão remete-me a um episódio que perdura na minha memória: estava eu, ainda criança, em companhia do meu pai, Manuel Augusto, na Quinta do Mogo, quando presenciei uma cena que, aos meus olhos, parecia macabra. Em pleno dia, meia dúzia de homens, carregavam um caixão pela beira da estrada que vai dos Casais de Santa Teresa, em direção a Aljubarrota. À altura da fonte do Mogo, pararam para descansar e encostaram, ao alto, o caixão contra a parede da fonte. Perante a estranheza do cenário perguntei ao meu pai: o que é aquilo? São casaleiros, meu filho, disse ele, com um sorriso mal disfarçado. Ele nada mais disse e eu dei-me por esclarecido.
    E, tendo o irmão comentado que:
    José Luis Coelho
    Não sei se foi esse, mas vindos dos Casais também me lembro de ver passar no Mogo Homens com a urna as costas para o Cemiterio de Aljubarrota.
    Acrescentou: José Luis Coelho Compreendi agora, pelo que conta o José Quitério, que afinal aquilo não era assim tão anormal. Era tão natural que nem surpreendia o pai, provavelmente muito familiarizado com aquela cena.

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