As minhas memórias de infância remetem para os serões à lareira, quando a minha avó Maria Lourenço me contava histórias familiares.
Nessas histórias,
o meu bisavô Joaquim da Graça era um carpinteiro pobre, viúvo em 1888 aos
trinta e cinco anos de idade e pai de dois filhos vivos, (a minha avó de sete
anos e o irmão Joaquim de quatro), que se casou, em 2ªs núpcias, com uma jovem casaleira
de 20 anos de idade, a qual tratava mal os enteados órfãos e não tinha jeito
para cozinhar.
Este segundo
casamento do meu bisavó durou até ao seu falecimento e frutificou, tendo dele nascido,
ao longo de 20 anos, pelo menos sete filhos dos quais seis chegaram a adultos e
só uma, Júlia que casou com Luís Gomes, dito Francelino, tem atualmente descendência na Ataíja.
Dos demais, uma
Maria faleceu jovem, um Joaquim emigrou para a Argentina e não mais houve
notícias dele, um António casou nos Milagres e dele há descendência, um João,
de alcunha Redondo, foi sapateiro, casou na Ataíja e faleceu sem descendência.
Os dois mais
novos, mais novos, aliás, do que a sobrinha mais velha, Manuel, o Mariola
nasceu em 23-11-1908, tinha o pai 55 anos, no mesmo ano da sua sobrinha Maria
(Papoila) e Maria, a Marreca, ficaram solteiros, não tiveram
descendência e viveram na Rua de Trás na casa que já era de seus pais e está
hoje absolutamente arruinada e prestes a desaparecer.
O meu bisavô,
como aliás o seu pai, diferentemente da generalidade dos seus conterrâneos que
naquele tempo eram analfabetos, sabia ler e escrever e também os seus filhos
homens o souberam.
Certamente que esse
facto de saber ler e escrever terá sido uma das razões que justificaram a nomeação,
em 1906, de Joaquim da Graça como Cabo de Polícia.
E, aqui chegados,
importa saber duas coisas: o que era um Cabo de Polícia e quem era o Joaquim da
Graça que foi nomeado Cabo de Polícia.
O Cabo de
Polícia, a que eu na Ataíja sempre ouvi chamar Cabo de Ordens – os mais velhos
recordar-se-ão que Alfredo Ângelo da Silva foi o último Cabo de Ordens – era o
representante local do Regedor, a autoridade policial da aldeia.
As funções do
Cabo de Polícia e os requisitos da sua nomeação constavam da Lei de 4 de Maio
de 1896, que aprovou o Código Administrativo que ao tempo (1906) vigorava[i].
A administração
do território baseava-se, por um lado, em municípios e paróquias de base
eleitoral, governados respetivamente por uma câmara municipal e uma junta de
paróquia que, por outro lado, estavam sujeitos a uma tutela governamental muito
forte e próxima, assente em cada distrito no Governador Civil, nos municípios no
Administrador do Concelho e nas paróquias no Regedor que era coadjuvado por
Cabos de Polícia em número fixado pelo Governador Civil.
O serviço de Cabo
de Polícia era gratuito e obrigatório e abrangia a totalidade da freguesia mas,
na prática os Cabos de Polícia eram residentes nas aldeias mais importantes e o
seu serviço cingia-se à aldeia.
Como coadjuvantes
do Regedor cabia-lhes um alargado leque de funções de polícia, que aqui não importa
especificar, das quais a mais relevante e à qual não havia maneira de se eximirem,
era a nomeação dos homens que deviam carregar o morto até ao cemitério.
De facto, naquele
tempo não eram uso grandes cortejos de
acompanhamento dos funerais. Em regra as mulheres ficavam em casa a chorar
(como ainda hoje acontece nos países do Médio Oriente) e dos homens, apenas os
que haviam de carregar o caixão e, eventualmente, algum parente mais próximo, integrava
o cortejo fúnebre.
Ora, transportar um caixão em ombros, por maus
caminhos, durante três, quatro ou até sete quilómetros, como era o caso dos
Moleanos, era tarefa para que, em regra, não havia voluntários. Cabia ao Cabo
de Polícia, que conhecia a sua aldeia, designar de entre os homens válidos aqueles
que deveriam transportar o morto até à Igreja paroquial e daí ao cemitério, o
que devia ser feito de acordo com regras
de rotatividade equitativas e compreensíveis.
Parecerá estranho
aos mais novos que as coisas se passassem como descrevo no parágrafo anterior.
Mas, era mesmo assim. Lembro-me de os caixões serem transportados em ombros até
Aljubarrota e de ter sido comprada – julgo que nos inícios dos anos sessenta - uma
carreta que tornou a tarefa substancialmente mais fácil. Como me lembro da luta,
aliás longa, dos Moleanos para conseguir autorização para a construção do seu
próprio cemitério, precisamente para evitar a excessiva dureza da realização
dos funerais em Aljubarrota.
Em 1906 e por muito tempo depois disso, o serviço de transporte do defunto era
obrigatório e gratuito, sendo no entanto tradição que os transportadores
gozassem, após o funeral, de uma merenda paga pela família do falecido. Quando
eu era jovem ainda as coisas se passavam assim e a merenda era tomada nos
fundos da taberna do Joaquim do Álvaro, onde agora o filho deste, o Torcato,
tem o seu café.
Nos termos do
artº 305º do referido Código Administrativo, os cabos de polícia eram nomeados
de entre os soldados licenciados para a reserva, de entre os mancebos
recenseados e sorteados para o serviço militar que não tivessem sido
necessários para o preenchimento dos contingentes ou que podendo ser
necessários ainda não tivessem sido chamados.
Quem era, então,
o Joaquim da Graça que foi nomeado Cabo de Polícia em 1906?
O Código
Administrativo dizia que os cabos de polícia eram nomeados de entre os soldados
licenciados para a reserva e a lei que em 1869 criou o serviço militar
obrigatório não remunerado, dispunha que esse serviço era por cinco anos,
findos os quais os militares passavam a uma segunda linha, ou primeira reserva
e, depois, para a reserva territorial até completarem 50 anos.[ii]
O meu bisavô Joaquim
da Graça, nascido em 1853, tinha 53 anos em 1906 e, portanto, já não podia ser
nomeado cabo de polícia.
Logo, o nosso
Cabo de Polícia só pode ter sido o seu filho Joaquim, nascido em 29 de Setembro
de 1884 e que à data da nomeação estava a pouco mais de um mês de completar os
22 anos e nessa data seria um mancebo recenseado
e sorteado para o serviço militar.
Serviço militar
para o qual, aliás, veio posteriormente a ser chamado.
Nessa altura o
Joaquim da Graça tinha namorada e estaria convencido de que já não seria
chamado ao serviço militar obrigatório e, por isso, começou a construir a sua
casa.
O inopinado
chamamento à tropa provocou-lhe grande desgosto e, chegado ao quartel, ensimesmado,
num dia frio de inverno chorou copiosamente com a cara encostada a um portão de
ferro gelado, adoeceu e morreu.
Assim mo contou a
minha avó que nas suas orações da noite nunca esquecia esse infeliz irmão que,
aliás, sempre chamava de Joaquim Lourenço.
O Alvará de
nomeação de Joaquim da Graça como Cabo de Polícia foi, durante muitas décadas, religiosamente
guardado no fundo de uma arca pela sua meia-irmã, a minha tia-avó Maria Marreca
A casa que construiu
mas nunca habitou é hoje a minha sala.
[i] A Legislação Régia pode ser
consultada on line, no site da Assembleia da República, em parlamento.pt
[ii] (Borges, José Martins, Major de
Infantaria, A Evolução de Modelos de Recrutamento Nas Organizações Militares,
Instituto Universitário Militar, Departamento de Estudos Pós-Graduados (Curso
de Estado-Maior Conjunto), Pedrouços, 2018. In (consultado em 16/12/2024):
https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/23221/1/MAJ%20José%20Borges.pdf
O João Manuel Ribeiro Coelho fez no Facebook o seguinte comentário:
ResponderEliminar"José Quitério, o relato que fazes dos funerais de antão remete-me a um episódio que perdura na minha memória: estava eu, ainda criança, em companhia do meu pai, Manuel Augusto, na Quinta do Mogo, quando presenciei uma cena que, aos meus olhos, parecia macabra. Em pleno dia, meia dúzia de homens, carregavam um caixão pela beira da estrada que vai dos Casais de Santa Teresa, em direção a Aljubarrota. À altura da fonte do Mogo, pararam para descansar e encostaram, ao alto, o caixão contra a parede da fonte. Perante a estranheza do cenário perguntei ao meu pai: o que é aquilo? São casaleiros, meu filho, disse ele, com um sorriso mal disfarçado. Ele nada mais disse e eu dei-me por esclarecido.
E, tendo o irmão comentado que:
José Luis Coelho
Não sei se foi esse, mas vindos dos Casais também me lembro de ver passar no Mogo Homens com a urna as costas para o Cemiterio de Aljubarrota.
Acrescentou: José Luis Coelho Compreendi agora, pelo que conta o José Quitério, que afinal aquilo não era assim tão anormal. Era tão natural que nem surpreendia o pai, provavelmente muito familiarizado com aquela cena.