A matança do porco era a única festa familiar não associada ao calendário religioso, pois não era uso festejar aniversários e os feriados nacionais, quando não coincidentes com festas litúrgicas eram completamente ignorados. Na matança, devido à complexidade das tarefas a realizar, era necessário envolver toda a família, já que, só para segurar e matar o porco, eram precisos quatro homens, um em cada pata.
As mulheres (que tinham começado o dia a cozer o pão) lavavam as tripas e faziam as morcelas e comida para toda a gente. Era a ocasião para comer todas as vísceras do porco que se não podiam conservar na salgadeira ou no fumeiro.
Em casa de meu pai, quando já fazíamos a matança não por estrita necessidade mas pelo prazer do convívio, procurávamos recuperar, até onde possível, a tradição.
Morto o porco, chamuscado (ultimamente a maçarico, antes com tojo gatanho que se ia propositadamente apanhar nos matos), barbeado e bem lavado, dependurado na escápula, aberto e sangrado e retiradas as tripas, comiam-se, com pão acabado de cozer, as postas de bacalhau assadas nas brasas, desfeitas em lascas, temperadas com muito alho e regadas de azeite. De seguida, as mulheres iam a Chiqueda (ou à rigueira, se levasse água) lavar as tripas (prática, obviamente poluente, abandonada a partir do momento em que houve água canalizada) em sucessivas águas, limpas de gorduras, passando-as por um gancho de cabelo apertado nos dedos e esfregadas com laranja e cebola.
Entretanto, o desmanchador retirava as vísceras do porco, após o que este era envolto num lençol que se fechava com alfinetes de dama e ficava a escorrer até ao dia seguinte.
Faziam-se as morcelas, enchendo as tripas (com a ajuda de um pequeno funil de tubo largo que não tinha outro uso) com alguma gordura, o sangue e arroz e comiam-se cozidas, acompanhadas de couve lombarda e batata e dos bofes e outras vísceras, também cozidos.
O fígado, a que chamamos cachola, era cortado em cubos e frito em banha fresca num grande tacho de barro (peça que também não tinha outra utilidade durante o resto do ano), temperado apenas com sal, cominhos e vinho (o vinho só se acrescenta a meio da fritura para o fígado ficar bem rijo), era servido sobre fatias de pão, acompanhado com batatas cozidas. Um prato delicioso, de sabor forte, não especialmente recomendável a estômagos sensíveis.
O dia seguinte era para desmanchar o bicho.
Primeiro, no leito de gordura que envolve os rins, retirados estes, colados à espinha, um de cada lado, ligando a zona das costelas à da bacia, aí estavam dois pequenos músculos, os lombinhos, lombetos ou lombelos, como quiserem chamar à parte mais deliciosa do porco que, abertos, temperados com sal, assados nas brasas e cortados em pequenos cubos, regados com azeite, vinagre e alho migado eram comidos com pão, cada um com seu garfo, debicando na travessa.
Entretanto, a desmancha continuava, separando-se a carne da salgadeira da do fumeiro, cortando-se esta em pequenos pedaços que ficavam a marinar em vinho para, no dia seguinte, se fazer a chouriça.
Durante todo o tempo (excepto durante a matança, onde se não queriam pessoas que tivessem pena do animal que isso atrasava a morte), as crianças andavam sempre por perto e eram, frequentemente, chamadas pelo desmanchador para uma lição prática de anatomia (se queres ver o teu corpo, mata o teu porco).
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