sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Falares "ataíjenses" num romance brasileiro



Há muitos anos que andava para ler as “Memórias de um Sargento de Milícias”, de Manuel António de Almeida,[i] romance de que sempre ouvi falar como uma grande obra literária.
Finalmente, calhou este verão. Encontrei-o numa edição já antiga[ii] e a preço de saldo. Uns módicos cinco euros[iii], foi quanto me custou na excelente livraria do Sr. Mário Bandeira, em Peniche.
Li-o, como se costuma dizer, de um fôlego.
Não vou, aqui, fazer crítica literária. Quem quiser, compre o livro que vale bem a pena. Por mim, apenas digo que uma das razões porque me diverti muito a lê-lo foi o facto de encontrar uma série de palavras e expressões que se usavam na Ataíja de Cima da minha meninice e, agora, já só se conseguem encontrar em clássicos da literatura brasileira ou em telenovelas de época da Globo.

Vamos, então, a essas palavras e expressões:[iv]

(na festa do baptizado), … foi desaparecendo a cerimónia e a brincadeira aferventou,…[v]

Não sei se ainda se usa mas, aferventar era (e é, confirma-o o dicionário) fazer levantar fervura, ferver brevemente. Aferventavam-se, no devido tempo, os grelos de nabo que se queriam assim, rijos, mal cozidos. Por isso, outras hortaliças mal (insuficientemente) cozidas se diziam engroladas, quer dizer, engreladas, ou seja, como grelos.
No texto, aferventou tem o óbvio significado de aqueceu.

a madrinha foi a última que saiu, deitando a bênção ao afilhado[vi]

Hoje, os padrinhos já não deitam a bênção aos afilhados que lhes a não pedem e o mesmo com pais, tios e avós.
Quando eu era pequeno o adeus substituía o bom-dia, o boa-tarde, o boa-noite e o olá e, da primeira vez que nesse dia encontrávamos pai ou mãe, avô ou avó, tia, tio, padrinho ou madrinha era o adeus, invariavelmente, acompanhado de um “deite-ma su bença”, fórmula rápida para despachar um “deite-me a sua bênção”, a que o visado respondia “Deus te abençoe”, por vezes, estendendo a costa da mão direita, que o pedinte, tirada da cabeça a mitra espanhola, devia beijar.
Era esta parte, a do beijo na mão rude e às vezes pouco lavada, que desagradava muito à criançada que, por isso, tentava pedir a bênção quando se encontrava o mais longe possível do abençoador.

Serrazina e amiga de contrariar, não perdia ocasião de desmentir o vizinho …[vii] … Há espíritos de tal maneira serrazinas, que se divertem em aumentar a irritação alheia, …[viii]

Serrazina era a alcunha de José Ribeiro Vigário que foi casado com Maria “Patoicha” e faleceu jovem, com quarenta anos de idade, a mesma idade, dizem, com que faleceram seu pai e seu avô.
A mãe do Serrazina, Luísa Ribeiro não teve leite, como não teve para nenhum dos filhos (além do José, o Francisco, o mais velho e o único ainda vivo e Joaquina, a mais nova, falecida em 2012 e a quem já dedicamos um texto neste Blog (VER AQUI).
Daí que, naqueles tempos em que não havia ou não tinham chegado à Ataíja os leites de substituição, fossem aquelas crianças amamentadas por amas recrutadas entre as vizinhas paridas.
No caso do Serrazina, coube esse encargo à minha tia Joaquina Maria Coelho, "a Lourença", do que resultou que o Serrazina e o Zé Matias sempre foram amigos e se trataram por irmãos.
Também, isso implicou que, por alturas da aleitação, fosse a família da ama convidada a participar da matança na que era, então, a casa mais rica da aldeia. Algo, de que não sei pormenores, terá acontecido durante a ceia que irritou solenemente o meu tio Joaquim Matias, homem pobre mas vaidoso (opinioso, como se dizia) que impôs o regresso a casa e, ao abrir a porta, desabafou:
Minha casa
Minha casinha
Merda pró rei
Mais a rainha

Não sabemos a razão da alcunha que o Zé Serrazina transportava desde criança e pela qual era conhecido de toda a gente.
Diz o dicionário, que serrazinar é maçar, falar constantemente do mesmo assunto. Talvez, pois, a criança fosse um pouco chata e insistente, tal como o eram as personagens a que se referem as frases transcritas.

… a mais refinada má-criação que se pode imaginar… (era tido pelo) … mais refinado velhaco;[ix]

Má-criação é palavra que não ouço há muito tempo, substituída que foi por má-educação que, essa, continua demasiado vulgar. Do mesmo modo, também já não ouço dizer velhaco, o que não quer dizer que eu e todos nós não continuemos amiúde a tropeçar em pessoas em quem se não pode confiar.

Um dia que a pilhou de jeito à janela[x]Leonardo, pilhando a cigana em nova infidelidade, …[xi]

Pilhar é verbo de que o dicionário Priberan não sabe a origem mas, como todos sabemos, significa roubar. Significa também, agarrar, apanhar, pegar e ainda, que é o que nos interessa, encontrar, surpreender, alcançar.
Nas frases transcritas o significado de pilhar é, respectivamente, encontrar e surpreender. Na Ataíja da minha infância e talvez ainda agora, pilhar, que dizíamos apilhar, era alcançar.
Como, por ex., na seguinte frase: Fui atrás dele e apilhei-o à Figueira Pedral.

pareceu não entender o oferecimento ou não dar fé dele.[xii]

Dar fé significa(va)  perceber (aperceber-se), compreender e, com tal sentido a minha avó deu fé, muitas vezes, de muitas coisas. Mas, a expressão caiu em desuso. Tal como, ao que me parece, já ninguém é atacado à falsa fé, ou, pelo menos, ninguém chama isso a ataques de surpresa, sem aviso e, fazer fé também está fora de moda. Mas, a má-fé e a boa-fé, essas, continuam em uso, nas proporções do costume.

as inocentes caçoadas que a todo o instante faziam os gaiatos.[xiii]

Caçoadas de gaiatos era coisa que os adultos da minha meninice nunca achavam inocente.
Na Ataíja de há sessenta ou cinquenta anos caçoar significava aquilo que o dicionário diz que significa: troçar, escarnecer e, se havia coisas imperdoáveis naquele tempo era tudo o que fosse, ou parecesse, desrespeito aos mais velhos. Caçoar era, pois, actividade arriscada.

Fazia o mestre em voz alta o pelo-sinal, pausada e vagarosamente, …[xiv]
Pelo-sinal!
Aqui, nem sequer é uma questão de dizer que não ouço há muito tempo. É mais do que isso. Nunca tal tinha visto escrito e nunca o ouvi senão na Ataíja e, ainda aí, raras vezes.
Persignar-se é benzer-se, fazendo com o dedo polegar da mão direita uma cruz na testa, outra na boca e outra no peito. Já Benzer, é fazer o sinal da cruz tocando, com a mão direita aberta, primeiro a testa, depois o peito à altura do diafragma, o ombro esquerdo e o ombro direito.
Fazer o pelo-sinal é persignar-se e benzer-se:
Pelo sinal / da Santa Cruz /livre-nos Deus / Nosso Senhor / dos nossos / inimigos. Em Nome do Pai / do Filho / e do Divino / Espírito Santo.

tenho má fé com pírolas; ainda não vi uma só pessoa que as tomasse que escapasse.[xv]

A ironia da frase não esconde o facto de que pírolas é, apenas, uma maneira incorreta de dizer pílulas e, por uma razão qualquer que desconheço, as pessoas do povo tinham uma forte tendência para dizer pírolas em vez de pílulas.
Era assim na Ataíja de há cinquenta ou sessenta anos e, pelos vistos, era assim no Rio de Janeiro cem anos antes (quando a frase foi escrita) ou cento e cinquenta anos antes (quando terá sido proferida).

isto é um pedaço de mariola a quem hei-de ensinar,[xvi]

Na Ataíja de Cima, também havia um Mariola.
O Manuel Mariola era meio-irmão da minha avó materna e terá ganho a alcunha que carregou toda a vida, não tanto por ser dado a marioladas nem por ser um biltre ou um patife, ou moço de fretes que nunca foi, nem me lembro dele vadio ou especialmente malandro mas porque, em momento infeliz, sendo ainda criança, pegou a sua irmã bébé ao colo e levou-a à janela, donde a deixou cair em plena rua.
Em consequência do que aquela sofreu uma grave lesão na coluna vertebral que lhe acarretou a condição e a alcunha de Marreca.

No dia seguinte o Leonardo foi despedido da ucharia,[xvii]

Não está viva nenhuma das pessoas a quem ouvi a expressão mas, grande ucharia (ou ocharia) era expressão irónica que significava que era pouco o que fingia de muito.
De facto, tal como no livro, ucharia é palavra antiga que quer dizer despensa, lugar onde se guardam os alimentos. Ucharia significa portanto, abundância, fartura exagerada, como é suposto ser a ucharia real, a despensa do rei.

…………………………

Além das referidas, outras palavras e expressões existirão no livro “Memórias de um Sargento de Milícias que fazem recordar o português que se falava, em meados do Séc. XX, na aldeia onde eu nasci. Mas vamos acabar aqui, não sem antes transcrever mais duas curiosas passagens:

(a sobrinha da D. Maria) … Trajava nesse dia um vestido de chita roxa muito comprido, quase sem roda, e de cintura muito curta; tinha ao pescoço um lenço encarnado de Alcobaça.[xviii]
(o Major) … não completou o uniforme, e voltou de novo à sala de farda, calças de enfiar, tamancos e um lenço da Alcobaça sobre o ombro, segundo o seu uso.[xix]

Desde a Farsa dos Almocreves, de Gil Vicente, no Portugal do Séc. XVI[xx], até ao pescoço de uma jovem ou ao ombro de um Major no Brasil do Séc. XIX, foi longo o caminho percorrido pelos panos e lenços de Alcobaça.
Apesar desse enorme êxito literário, os panos de Alcobaça continuam, como disse Maria Augusta Trindade Ferreira[xxi], sendo um dos maiores mistérios da arqueologia industrial portuguesa.



(Sargento de Milícias  – ilustração da capa de uma edição moderna brasileira (L&PM Pocket), de Memórias de Um Sargento de Milícias)





[i] O romance foi publicado, primeiro como folhetim semanal no jornal “Correio Mercantil, do Rio de Janeiro, entre Junho de 1852 e Julho de 1853 e, posteriormente, na mesma cidade, em forma de livro, nos anos de 1854 e 1855.
A acção passa-se “no tempo do Rei”. Quer dizer, no ínicio do Séc. XIX, no tempo em que a Corte de  Portugal esteve deslocada no Brasil por força das Invasões Francesas (O tempo do Rei, estrito senso, decorreu entre 1816 e 1821, antes, D. João VI era, apenas, O Príncipe Regente).
[ii] Colecção Biblioteca Fundamental da Língua Portuguesa, séculos xix e xx, coordenada e dirigida por Dr. António Braz Teixeira, comemoração do 30º aniversário da televisão em Portugal, edição Amigos do Livro, Editores, Lda e TV-Guia, Sociedade Editora de Publicações, Lda, Lisboa, 1986.
[iii] Diversos sites na internet oferecem a possibilidade de fazer download de cópias em formato PDF. A quem quiser optar por esta solução recomendamos o site do Ministério da Cultura do Brasil em:
[iv] A frase que inclue a palavra ou expressão a destacar será transcrita em itálico e a palavra ou expressão em causa irá a bold. Indicar-se-á, em nota, a página do livro onde consta, na edição referida na Nota ii.
[v] Pág. 16
[vi] Pág. 17
[vii] Pág. 66
[viii] Pág. 155
[ix] Pág. 73
[x] Pág. 85
[xi] Pág. 104
[xii] Pág. 112
[xiii] Pág. 135
[xiv] Pág. 146
[xv] Pág. 150
[xvi] Pág. 157
[xvii] Pág. 200
[xviii] Pág. 105
[xix] Pág. 237
[xx] “Antes vossa renda encurta / coma pano de Alcobaça”.
A Farsa dos Almocreves foi representada pela primeira vez em Coimbra em 1526.
[xxi] Antiga directora do Mosteiro de Alcobaça.

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