As reformas administrativas do Liberalismo, primeiro a de
Mouzinho da Silveira em 1832 e a de Rodrigo da Fonseca em 1835, tiveram por
efeito, neste último ano, a extinção do concelho de
Aljubarrota e da freguesia de São Vicente e a integração dos respectivos
territórios, respectivamente, no concelho de Alcobaça e na freguesia de Nossa
Senhora dos Prazeres[i].
Ao mesmo tempo e em consequência, o Cura José Joaquim Leitão
que por longo tempo havia paroquiado S. Vicente, deixou essas funções, agora
inexistentes, passando as almas vicentinas a ser pastoreadas pelo titular da
freguesia de Prazeres, o Padre Francisco de Freitas Fróis.
Em matéria de registo de óbitos e no que à área da antiga
freguesia de São Vicente diz respeito, pode afirmar-se que o Padre Fróis –
aliás natural de Aljubarrota onde nasceu no seio de uma importante família
local - teve uma entrada, digamos, em grande, espectacular.
O primeiro óbito por ele registado, em 18 de Agosto de 1835,
é o de uma importante figura local: Exactamente, o Tabelião José Gomes Coelho, de importância, aliás, claramente acrescida pelo facto de, com a extinção do concelho
e, assim, do cartório, ter sido o último Tabelião de Aljubarrota.
O segundo óbito registado pelo Padre Fróis, esse, é o da
menos importante das figuras locais:
Um bêbado a quem, por o ser, foi recusado o direito
a sepultura eclesiástica e foi enterrado no campo, como os animais.
Ataija de Sª
Thomaz
Francisco
Cazado
|
Aos vinte e hum de
Setembro de mil
e outo centos e
trinta e sinco faleceo
e foi sepultado no
Campo , não gozando
portanto de
Sepultura Eclesiástica
Thomaz Francisco
cazado que era
Com Luiza Maria do
Lugar de Ataija de
Sima hoje desta
Freguesia de Prazeres por
se achar morto no
dito dia , e ser publico e no
torio se tomava demasiadamente
do vinho de que
morrera embriagado
…..….[ii]
Consultadas
as Autoridades
Eclesiasticas competentes deter
minarão de lhe não
……….[iii]
Sepultura em Sa
grado de que fis
este assento e Lembrança
para constar esteve
exposto sem ser enter
rado dois dias athe
dia vinte e três isto athe
aquela decisão: mês
e Era supra
a) Francisco de Freitas Frois
|
A época era conturbada:
A derrota de D. Miguel era ainda recente e as feridas não
estavam saradas.
Os frades de Alcobaça haviam abandonado o Mosteiro há menos
de dois anos.
Há pouco mais de um ano tinham sido extintas as ordens
Religiosas.
1832 e 1833 tinham sido anos terríveis em matéria de saúde
pública na(s) freguesia(s) com o surto de tifo e a epidemia de cólera. Os mortos eram tantos que não cabiam dentro das
Igrejas Paroquiais e, principalmente por isso, houve muitos enterramentos nas
capelas das aldeias e junto mas fora da Igreja, em lugares (talvez, sempre o
mesmo) que em diferentes assentos de óbito se designam por adro, cemitério
paroquial ou cemitério da freguesia.
Agora, a extinção do concelho e da freguesia (paróquia) de
São Vicente.
Tudo foi sentido como derrotas por uma boa parte da Igreja[iv] que, em
geral, era bem mais próxima de D. Miguel que dos Liberais triunfantes.
Talvez eu não tenha razão mas, o facto de em dezenas de anos
e muitas centenas de registos consultados[v], não ter
encontrado situação semelhante, de recusa de enterramento cristão e inumação no
“campo”, em lugar não identificado, leva-me a pensar se não se tratou, este
caso, de uma pequena vingança, ou de um aviso aos vivos sobre o que na morte
lhes aconteceria, caso na vida se não portassem como bons cristãos.
Ou, talvez este fosse o destino normal dos pecadores. Mas,
sobre isso, não possuo qualquer informação.
Curiosamente, é do próprio dia 21 de Setembro de
1835, data do falecimento do bêbedo Thomaz Francisco, o Decreto que determina
que “Em todas as Povoações serão estabelecidos Cimiterios Publicos para nelles
se enterrarem os mortos.”[vi],
Decreto esse que, no seu artigo 13º, determinava:
“Art.
13.° O Parocho, ou qualquer Ecclesiastico beneficiado, que
desde
que o Cemiterio estiver designado, e benzido, consentir que algum
cadaver
seja enterrado dentro dos templos, ou fóra do Cemiterio,
será,
pelo simples facto, privado do beneficio, e ficará inhabil para obter
outro.”
Apesar do que, ainda em 1852 e 1853, se procedeu a
enterramentos no interior da Capela dos Casais de Santa Teresa, tal como em
1851 tinha havido enterramentos nas capelas da Pedreira (Molianos) e na da Ataíja
de Cima e, em 1849, na Capela de Chequeda.
Ao contrário da destes dois anónimos chineses
sepultados no Boot Hill de Tombstone, a sepultura campestre do Thomaz Francisco
não terá tido qualquer lápide identificativa. Mas, certamente, não deixou de
ser coberta de pedras e de silvas, para evitar o ataque de cães e outros
necrófagos.
[i] A
Portaria de 13 de Janeiro de 1836 mandou que os Passais das Paróquias extintas
fossem anexos aos das paróquias onde aquelas se integraram. Ou seja, a anexação
de paróquias não importou qualquer diminuição nos bens da Igreja.
[ii] Uma
palavra ilegível.
[iii] Idem.
[iv] Que
reagiu de maneiras diversas, como se vê na Portaria de 30 de Janeiro de 1836,
que responde a dúvidas colocadas pela Junta de Governo do Bispado de Beja (a
qual, parece, sugere que a a extinção de paróquias seja precedida de
“referendo” local): “… a Circular de 26 d’Outubro ultimo indica mui claramente
o modo porque deve proceder-se á anexação das Parochias desnecessárias, e que
longe de conceder audiência aos povos na sua totalidade, o que seria absurdo,
Ordena que se ouçam somente as Camaras Municipaes:”
[v] Onde há,
por ex. mendigos que, por certo, alguns seriam alcoólicos e, viajantes de que
se não conhecia o passado.
[vi] Mais de
10 anos depois, ainda a questão da proibição de enterramentos no interior das
igrejas havia de ser uma das razões da Revolta da Maria da Fonte.
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