É com
enorme facilidade que, hoje em dia, se atiram acusações de corrupção[i]
sobre tudo e todos e, vem crescendo a idéia de que todos os políticos são
corruptos e, pior do que isso, ganham espaço as alegações de que tal é fruto da
democracia.
Ora
isso, simplesmente, não é verdade.
A
corrupção existe em toda a parte e, tudo o indica, é especialmente presente e
perniciosa nos países menos desenvolvidos, aqueles onde é maior a desigualdade
entre as classes sociais. Tende também a prosperar, não nas democracias como
alguns nos querem convencer mas, antes, nos regimes autoritários onde cada
funcionário é um pequeno rei e onde as queixas e as críticas têm de ser bem ponderadas,
sob pena de poderem acarretar grandes aborrecimentos e prejuízos para o
queixoso.
Quem,
como eu, tem mais de sessenta anos há-de lembrar-se do tempo em que um pobre
não ía ao médico, a uma repartição pública ou a casa de alguém “importante”,
fosse pedir que favor ou direito fosse, que não levasse algo para ofertar ao
interlocutor. Ele era uma galinha ou uma dúzia de ovos, uma saquinha de nozes, um garrafão de azeite. Na época própria, um cestinho de figos ou de
pêssegos, frutas muito apreciadas pelas pessoas de bem.
Ilustrativo do que digo, é a correspondência trocada entre os nossos conterrâneos,
Joaquina Rosalia e o seu marido José
Coelho que estava a trabalhar na zona do Areeiro, em Lisboa, enquanto ela
ficara na aldeia, cuidando dos filhos, dos pais que já não eram novos e das
magras terras familiares.
As
cartas, que se transcrevem na íntegra (o / indica a mudança de linha no
original), incluindo os erros ortográficos que denunciam uma fraca escolarização, dão conta das dificuladades da vida, do amor familiar e da cumplicidade entre os cônjuges que tratam quase em código os assuntos que querem que fique entre eles, mostram como se pagam algumas dívidas e
se foge de despesas (o assunto de que o António da Silvina quer novas é o do
convite para o seu casamento).
No
que à corrupção diz respeito, as cartas evidenciam o modo como os camponeses pagam os
favores e os capitães aproveitam. Mas, só dentro de certos limites. Pobre e
submetido, às vezes submisso, sim. Parvo, não!
A
recusa do José Coelho de pagar pelos “favores” mais do que eles valem, é um
grito de revolta contra a exploração e a corrupção.
(Se
os eventuais leitores me o permitem, um conselho: Leiam as cartas com calma e
cuidado, procurando a pontuação correcta de cada frase e o significado de uma
ou outra palavra que não compreendam à primeira leitura. Se o fizerem, entrarão
numa viagem no tempo ao Portugal profundo de meados do séc. XX).
Ataija de Cima 21 – 4 – 1949
Meu querido e saudoso marido /
muito estimo que esta minha carta / te vá encuntrar de saude que / eu e os nossos
meninos / ficamos bem graças a Deus. / assim como touda a nossa familia / José
cá ressebi a tua carta no dia 19 a cual te agradeço muito / já estava anciosa
para saber nu- / ticias tuas vi que estavas de / saude foi o que mais dezijei /
saber ficaste então no arieiro / não encontrates coiza mais a teu / geito mas
vê sempre se encontras / porque eu gostava mais que teves- / ses outro emprêgo que
estares nesse / trabalho. /
José eu já falei com o Joaquim
do Álvaro[ii]
por causa da revista[iii] mas / el
não me deu muito boas aguas / disseme que não conhecia o capitão / que já
outras lhe tinhão pedido / mas que não pasava ninhoma este / ano eu pedilhe e
disse que lhe / pagava ele disse-me que is saber cem / era o capitão e depois
que falavamos / eide falar outra vez com ele / mas já me falou em 5 litros de /
azeite para o capitão disme o que eide fazer / José as nossas siaras já animem
mais já cá chuveu ontem e ohje já todas / tem outra graça já trusse o relo- /
jio que tem trabalhado bem / o Joaquim Mindrico[iv]
já me deu / o dinheiro pedi o résto ao pai e deio a Senhora D. Ana[v].
/ José os nossos filhinhos estão / bonzinhos graças a Deus a menina esta muito
gorducha e o Américo / continua na sua conversa que / nunca me deixa estar
calada / pregunta-me muitas vezes por / ti dogolhe que foste para Lisboa / e
ele desme que foste para a missa / esta a escrever tembem e disme se eu já
escrevi tembem /
José o Antonio da Silvina[vi]
/ veio perguntar-me com respeito[vii]
/ se tu me tinhas deixado algumas / ordens eu disselhe que não ele /
perguntoume a tua dirécão e / se aí for ter alguma coisa já estas / provenido
tive carta da Luiza[viii] manda-te
/ saudades e agradessete muito os ditalhos do / Américo já perguntei pelo teu
chapéu / ao José Matias[ix]
mas não o vio se mais / saudades dos nossos vizinhos da mãi e / da Joaquina do
pai da mãi da maria / beijinhos dos nossos meninos do nosso / américo tambem
estes risquinhos (ricos a lápis) desta / tua mulher aseita vivas saudades /
desta que do fundo do coração te sauda /
Joaquina Rosalia de Sosua
E, na
margem superior:
José não te mando nada porque
como sabes eu cá tembem tenho de comprar tudo[x]
Lisboa, 1 de Maio de 1949
Minha querida mulher /
muito estimo que esta minha
carta / te vá encontar de saude junto / dos nossos querido filhinhos e de tôda
/ a familia que eu fico bem de saude / graças a Deus. /
Joaquina descolpa em eu não ter
/ escrito a mai tempo arazão é que / eu queria mandar-te o mais dinheiro[xi]
/ que eu pudece que bem sei que te deve / ter sido pressiso. Joaquina com
respei- / to á revista não te encomodes / encomodes que eu antes quero /
pagar a multa por que são só / 25$00[xii]
e os 5 litros de azeite são / Mais caros: Agora tu da o dinheiro / o pai e o
outro e para ti a quelo / que te fôr presiso e compra pão de trigo[xiii]
para ti e para os nossos / filhinhos e dá papinha á nossa / minina e ó nosso
Americozinho / dá li muitos beijinhos que eu / tenho tantas saudades dos meus
meninos mandame dezer se / tens muito Coelho e como estão / as novidades[xiv]
e se tens ouvido dezer alguma coiza a respeito / das oliveiras do Rebôxo.[xv]
/
Joaquina esto cá esta mão e o
ordenádo / é a 22 e a 23 e o mais alto e 23 / manda dezer se o basselo esta
pegado /
Joaquina eu mando-te 400$00: /
e se a seváda da cova da / santa esta bonita: e as batatas / da Ratinha: se for
ai o bacenador[xvi] manda
bacenar a pôrca / e vai com ela a porco que / comessa a ficar tarde. /
escreveme a sim que póssas / saudades áo pai e a mai e / a Mai e a Joaquina / e
muitos beijinhos os nossos / querido filhinhos muito beijinhos / e tu a seita
as mais vivas saudades deste teu / Marido muito amigo e /
dedicado José Sabino
de Sousa
[i] A
definição de corrupção à luz da lei penal actual pode ser vista, por ex., no
site da Direcção-Geral de Política de Justiça, Ministério da Justiça, em: http://www.dgpj.mj.pt/sections/informacao-e-eventos/prevenir-e-combater-a/anexos/definicao-de-corrupcao/
(consultado em linha em 14-7-2015)
[ii] Joaquim
do Álvaro tinha uma taberna e oficina de sapateiro no actual Largo da Padeira,
em Aljubarrota, onde hoje é o café e restaurante O Torcato. O Torcato é, aliás,
seu filho. Era, ainda, agente dos Capristanos (e dos Claras?), fazendo o
despacho dos cestos e cabazes que, em roda-viva, circulavam de e para Lisboa,
ao ritmo da emigração sazonal dos homens serranos. Para a sua loja telefonava-se
de Lisboa, com o pedido de mandar recado à Ataíja para que, à hora marcada, lá
estivesse a pessoa com quem se queria falar, o que ele fazia, aproveitando um
passante ou mandando um estafeta. A pessoa vinha da Ataíja e, à hora combinada,
fazia-se novo telefonema para então se falar com quem se queria falar. Estas
múltiplas funções, a que juntava outras como a de mediador referida nesta
carta, davam ao Joaquim do Álvaro uma enorme importância social e económica.
[iii]
Apresentação anual aos serviços do Exército a que estavam obrigados todos os
que haviam prestado o serviço militar obrigatório e se encontravam, até certa idade,
na disponibilidade, quer dizer, estavam disponíveis, podendo ser chamados, de
novo, ao serviço militar.
[iv] Minderico
(natural de Minde), alcunha que herdou de um avô. Era filho de José Constantino
e foi casado com Luísa da Graça, prima da autora.
[v] Residia
em Leiria, como se vê de outras cartas. Desconheço os laços que a ligavam a
José Coelho e Joaquina Rosalia e a levavam a emprestar-lhes dinheiro.
[vi] Assim
chamado por ser filho de uma Silvina. Esta Silvina era natural do Lorvão e foi
casada na Ataíja de Cima com Manuel Maurício, tendo servido de parteira a muitos ataíjenses (estou,
agora, na dúvida se quem me ajudou a vir ao mundo foi a ti'Silvina ou a
ti'Felismina).
[vii] Com
respeito, a propósito de, relativamente a.
[viii] A Luísa
era uma das irmãs freiras da autora.
[ix] Filho
de Matias Ângelo. Casou com uma prima de meu pai e foi morar para a Quinta de
Sampaio, nos Olheiros e, por isso, era também conhecido como José Matias de
Sampaio.
[x] Sobrariam
na despensa alguns legumes secos (chícharos) da colheita do ano anterior e
couves-galegas no quintal e estariam a chegar as favas novas que, por aqui,
eram as primícias da Primavera.
[xi] “o mais
dinheiro”, quer dizer, a maior quantidade de dinheiro.
[xii] Vinte
e cinco escudos, hoje cerca de 12 cêntimos mas, naquele tempo, mais do que a
jorna de um homem.
[xiii] O pão
de trigo era um luxo que se reservava aos doentes e aos domingos e dias santos.
As colheitas eram de muito fraca produtividade e, na maioria das famílias,
muito pequenas (em 1948 a Joaquina Rosalia tinha escrito a seu marido dando
conta de ter colhido, apenas, 8 alqueires de trigo de má qualidade (“só
jelhas”).
[xiv] As
novidades a que o autor se refere são as culturas de primavera que, agora,
estão em pleno desenvolvimento.
[xv] Dos
Casais de Santa Teresa.
[xvi]
Vacinador.
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