Aos serões, a minha avó contava-me histórias.
Como a daquele seu avô que, integrado nos exércitos
luso-britânicos, tinha combatido a 3ª Invasão Francesa, perseguindo Massena e
as suas tropas até cerca dos Pirinéus.
Na verdade, a minha avó era analfabeta e não sabia se era ou
não a 3ª Invasão Francesa, muito menos, quem foi Massena ou onde eram os
Pirinéus. O que ela sabia, de ouvir contar e era isso que me contava, eram os
terríveis sofrimentos que à Ataíja foram impostos pelas Invasões:
As talhas rompidas e o azeite correndo em rios pelas ruas. O
vinho roubado e bebido sem medida, tornando ainda mais selvagens os invasores.
O milho que havia de servir para fazer o pão e o trigo de pagar os foros,
arrombadas as arcas e dado a comer aos cavalos. Tudo o que era de comer, destruído ou roubado. Violações. Assassinatos por motivos fúteis. Jovens donzelas tentando
proteger a sua honra, mulheres feitas e homens de família escondidos nos matos
como bichos tentando escapar à fúria francesa.
Talvez por isso, a memória do meu trisavô soldado pairava na
velha casa e a sua coragem acompanhava-me e protegia-me nos pesadelos que, em
longas noites de Inverno, me perseguiam mascarados de soldados franceses.
Contava a minha avó que o tal avô (tinha ela dois anos
quando ele faleceu), sendo então muito velho, era vítima da chacota dos jovens
e de indefinidas ameaças, às quais respondia com recordações dos tempos de
juventude:
- “Diz-lhe, homem, que eu fui atrás dos franceses até
Montevideu”.
Com o que ganhou a estranha alcunha de “Diz-lhe homem!”.
Nas minhas lembranças daqueles serões, a frase exacta do velho soldado era
essa: "Diz-lhe homem! Que eu fui atrás dos franceses até Montevideu”. Era com
tal frase que o meu trisavô invectivava garotos e outros malandros e, nessas lembranças,
chamava-se esse meu antepassado João Pereira Cláudio, nome que julgo ter ouvido
centenas de vezes, por diariamente ser invocado na lista de beneficiários das
orações da noite.
Mas, talvez (quase de certeza) a memória me traia.
Aliás, na minha vida, não me lembro de jamais ter conhecido alguém que usasse o apelido Cláudio. Apenas, me lembro de que a minha avó e
algumas outras pessoas do seu tempo, se referiam a António Agostinho, (que foi conhecido
pela alcunha de Russo), chamando-lhe António Cláudio.
Nas minhas buscas não encontrei documento que falasse num
João Pereira Cláudio mas, já tinha encontrado um António Maria Cláudio e,
agora, encontrei um João Maria Cláudio, um João Maria de Souza Cláudio e um João
de Souza que julgo serem uma única e a mesma pessoa.
Parece-me bem que este João Maria de Souza Cláudio é o tal
antepassado, o “Diz-lhe homem!”
De facto, tendo falecido em 10 de Novembro de 1884, com a
bonita idade de 95 anos, significa isso que terá nascido em 1789 (o ano em que se
iniciou a Revolução Francesa e teve lugar a Tomada da Bastilha) e, portanto, tinha
18 anos quando D. João VI mudou a Corte para o Brasil, deixando o caminho
aberto para a 1ª Invasão Francesa (Junot) e 23 ou 24 anos quando, na contra-ofensiva
que se seguiu à 3ª Invasão, perseguiu os exércitos franceses através de
Espanha.
Acresce que, como consta do assento de óbito, tinha essa
extraordinária profissão (ao menos para ataijense) de soldado reformado.
Ah! E, claro, era exposto da Santa Casa da Misericórdia de
Lisboa.
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