quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Dicionário de Ataíja de Cima

 

 

Depois de largo tempo hesitando entre publicar ou não publicar, finalmente, decidi embarcar na aventura de dar à estampa um pequeno livro sobre a minha aldeia natal, a que chamei Dicionário de Ataíja de Cima.

O livro, organizado como se fora um dicionário, contém factos diversos, memória pessoais, trata de pessoas, com seus nomes e alcunhas e, às vezes, apontamentos de genealogia, elenca palavras que já não se usam ou aqui se usam ou usavam com sentidos específicos e em alguns casos bastante diferentes daqueles que lhes dão os dicionários da língua portuguesa, assim como aflora questões de microtoponímia, economia, história, conta estórias e algumas outras coisas que me lembraram  pensei que podiam ter algum interesse para os leitores ataíjenses, para quem o livro foi pensado.

Os leitores do blog ali encontrarão muitos temas que também já aqui foram tratados, aliás, geralmente com mais desenvolvimento.

Do conteúdo deste dicionário já dei aqui no blog um pequeno apontamento, no texto Para Um Dicionário da Ataíja de Cima - Letra E, publicado em 20 de Junho, próximo passado e pelo qual os leitores puderam começar a fazer uma idéia do conteúdo do livro. (mais recentemente, na minha página do Facebook, publiquei uma outra página do dicionário, já impresso).

No próximo fim-de-semana, (dias 15,16 e 17 de Novembro de 2024), o livro será entregue por mim, na Ataíja de Cima,  às pessoas que já manifestaram interesse na sua aquisição e a quaisquer outras interessadas.

Espero que os que vierem a adquirir o livro se agradem com a sua leitura, melhor, com a sua consulta porque um dicionário não é para ler é para consultar



domingo, 15 de setembro de 2024

Uma casa na Rua de Trás

 

A Rua de Trás, agora chamada de Rua de Santo António, é uma antiquíssima rua que fecha pelo norte o núcleo central da aldeia, o Lugar.

Quando eu era pequeno, nos anos cinquenta ou sessenta do século passado, ainda ali viviam mais de 40 pessoas, em 10 casas habitadas.

Nos anos entretanto decorridos as transformações foram profundas. As pequenas casas, umas sem quintal e apenas um pequeno pátio nas traseiras, outras com quintais minúsculos, coladas umas às outras, estreitinhas, algumas delas sem outra serventia que não a porta da rua, deixaram de satisfazer as necessidades e os interesses das novas gerações que preferiram fazer casas fora desde núcleo central, estendendo-se pela beira dos antigos caminhos.

A decadência da Rua de trás, não começou, deve dizer-se, apenas há 70 anos. Naquele tempo, já algumas das casas antes habitadas se encontravam vazias, por morte dos últimos habitantes ,e na sua maioria, tinham já sido adaptadas a novos usos e serviam como arrecadações ou palheiros.
Quando, vindo do Largo do Monumento aos Combatentes, a rua vira à direita para o lado da serra, estavam, desse lado direito, além da casa da esquina, pelo menos mais três. Uma, propriedade de Luísa Ribeiro era usada como armazém de azeite e por isso chamada de Casa das Talhas. Haviam a casa onde então moravam João Redondo e a sua mulher e, aquela, agora em obras, onde moravam Eleutério dos Santos, com a sua mulher Maria Constantina, ou Maria Serafina, também conhecida por Maria Pequena, filha de Constantino dos Santos e de Serafina dos Santos e Pequena por ter uma irmã mais velha também Maria.

Em frente, uma antiquíssima casa que ainda lá está, propriedade de Luísa Ribeiro que ao lado construiu a sua e aquela ficou desabitada e apenas um complemento da nova.

Continuando encontrávamos, pelo norte, além da que motiva este texto, mais duas casas desabitadas. Uma que lá continua, tal e qual, agarrada às obras do Joel Pereira, era propriedade do meu avô José Agostinho. Estreitinha, escondida atrás de um pequeno alpendre onde existe uma minúscula divisão onde, talvez, há muitos anos, dormisse o porco. Entrando, segue-se, do lado esquerdo, a grande chaminé que servia de manjedoura ao burro que naquele tempo ali vivia.

A casa que imediatamente se lhe segue e está hoje recuperada, é umas das duas casas habitadas da rua. Era, então, propriedade de José Ribeiro que a usava como palheiro e lhe chamava a Casa da Quitéria.

Do outro lado da rua já tudo eram arrumos de Sabino Vigário e tinham entradas pela Rua da Penicheira, esta ainda então com saída para a pequena travessa que liga a Rua de Trás ao Adro.

Seguiam-se quatro casas de habitação, todas com traseiras para a Rua de Trás mas entrada principal virada à agora chamada Rua de Nossa Senhora da Graça. Hoje são três, a saber:

A que teve Emília Mariano por último residente e onde então vivia a ti’Maria da Serra, viúva do meu tio-avô António Agostinho.

A que se segue e sempre conheci sem gente, também feita arrecadação de José Ribeiro que lhe chamava a Casa do Catrino.

As duas seguintes, onde conheci a ti’Silvina e a ti’Maria Serafina, avó dos Delfinos, são agora uma única.

 

É toda esta viagem pela memória motivada por que, no passado dia 8, vindo do Festival das Sopas, deparei com a Casa do Porfírio arrasada.

Apertada entre a casa que foi dos meus tios-avós Mariola e Marreca e aquela que os mais novos conheceram por do Cai-Bem, bisneto do Porfírio, a casa esteve entaipada largas décadas e só olhos atentos vislumbravam, sob a cal, o desenho do alpendre, um alpendre como era comum nas casas ataíjenses de séculos passados.

Daqui a pouquíssimo tempo, olhares distraídos verão apenas a passagem para o pequeno quintal das traseiras da casa do Cai-Bem e poucos acreditarão que ali houve, por séculos, uma casa.


Mas, eu lembro-me de, pequeno ainda, aí ver o velho e viúvo Porfírio dos Santos, debruçado no parapeito do alpendre, observando o movimento da rua.

Este Porfírio, que a minha avó dizia que era enjeitado, não era bem enjeitado, antes, era natural da Pederneira e filho de mãe solteira tendo vindo cedo para a Ataíja, certamente como criado.

Casou aos vinte anos de idade e, disse então o padre, era sapateiro. A mulher, a minha tia-bisavó Maria de Jesus, andava pelos trinta anos e estava viúva, com dois filhos de José Ribeiro, tio-avô da Amélia Ribeiro, um casamento que tinha durado apenas sete meses, tendo o segundo filho nascido já o pai era morto.

Estes rapazes, foram, como já contei noutro texto, dois dos muitos portugueses que emigraram para o Brasil, para a Amazónia, atrás do boom da borracha. Um deles, morreu ao fim de pouco tempo. O outro passou ao Rio de Janeiro onde constituiu família que, julgo, já vai em trinetos.

Juntos, o Porfírio e a Maria de Jesus tiveram uma filha que os mais velhos conheceram por Joaquina Porfíria, a qual casou com António Orelha, viveram na Rua das Seixeiras, numa casa agora também em ruínas, tiveram um rancho de filhos e deles existe hoje larga descendência.

Com o desaparecimento da Casa do Porfírio, como também recentemente da Casa da Maria Pequena, é cada vez menos o que sobra de uma Ataíja antiga, muito antiga.

É assim a vida.

Como cantava o Fausto Bordalo Dias:

atrás dos tempos vêm tempos
E outros tempos hão-de vir

quinta-feira, 20 de junho de 2024

Para um Dicionário da Ataíja de Cima - Letra E

 

 

Eira s.f. - Local onde se debulhavam os cereais e frutos de vagem. Havia-as de vários tipos, todas reflectindo a importância social e o poder económico do proprietário. Os mais abastados tinham-nas de planta quadrada, fundo de pedra de cantaria aparelhada em placas de grandes dimensões, paredes de pedra rebocada e capeamento também de cantaria e porto para entrada do gado e do trilho, com entalhe para colocação de um taipal de madeira. O piso era ligeiramente inclinado para uma caleira que, no Inverno, conduzia as águas à cisterna sempre próxima.

Outras eram simplesmente um círculo de terra argilosa endurecida e impermeabilizada por um processo que, certamente, chegou até nós através dos árabes:

Limpo o terreno argiloso de quaisquer plantas, seixos ou pedras, era picado e coberto com uma camada fina de uma mistura de palha migada miúda, boniscos e bostas secas e desfeitas. Tudo bem humedecido com água, levavam-se as ovelhas a andar em círculo para pisar e misturar e, por fim, era tudo alisado. Deixava-se secar e estava a eira pronta a receber as palhas para a debulha, feita ao ritmo forte dos cadenciados golpes dos manguais.

Embaçado Adj. – Espantado, surpreso. Encavacado, confundido, envergonhado.

Emos suf.Forma corrente do sufixo, no vocábulo correspondente à 1ª pessoa do presente indicativo plural, na generalidade dos verbos intransitivos.

Assim, diz-se, por ex.: andemos, estemos, fiquemos, semos, em vez de andamos, estamos, ficamos, somos.

Encertar v.tr. - Por encetar (iniciar). Tirar o primeiro bocado.

Enfolar v.tr. - Inchar, ganhar forma de fole. Os coelhos enfolavam, ficavam com a barriga dilatada, quando comiam verdizela fresca.

Engrolar v.tr. – Aferventar. Cozer brevemente os alimentos. Mal engrolados diz-se dos alimentos que foram cozidos à pressa, ou sem cuidado e, por isso, se apresentam mal cozidos (com menos cozedura do que seria correcto). Talvez, por engrelar, derivando de grelos que, esses sim, se querem pouco cozidos.

Engrolar, significa, também, enrolar a comida na boca, comer lentamente, por falta de apetite ou por dificuldades de mastigação, como faziam os velhos devido à falta de dentes.

Enjorcar v.tr. - Atamancar. Mal-enjorcado: mal arranjado, mal vestido.

Enterreirar v.tr. – Fazer um terreiro. Limpar de ervas, com a enxada, o terreno em volta dos troncos da oliveira e um pouco para lá da largura da copa.

As azeitonas eram varejadas e, de seguida, apanhadas do terreiro.

Enterreiravam-se, tb., outras árvores: nogueiras, figueiras para colher os figos caídos e dá-los de comer aos porcos e medronheiros para aproveitar os medronhos de que se fazia aguardente.

Entroviscar v.tr. – Franzir, torcer (o nariz). Entroviscado diz-se do tempo nublado que ameaça chuva.

Enxofrado Adj. - Diz-se de quem está zangado, agastado, amuado.

Esbriguar v.tr. - (às vezes, dito desbriguar). Por Esburgar, ou esbrugar, que significa limpar os ossos da carne. Limpar, pôr a limpo, esclarecer muito bem (por ex., na seguinte frase, extraída de uma carta escrita em 1952: “…só depois das coisas estando desbriguadas eu te mandarei dizer”).

Escápula s.f. - Chambaril. Peça feita de um tronco de madeira de carvalho ou oliveira, com quatro a cinco centímetros de diâmetro, em forma de V aberto e com as pontas em forma de anzol e na qual, após a matança, se dependura o porco pelos jarretes (tendões que ligam as pernas traseiras aos ossos calcâneos, correspondentes aos tendões de Aquiles).

Escarranchar v.tr. – Abrir muito as pernas. Sentar ou montar com uma perna de cada lado do assento ou da sela (ir ou estar escarranchado, ir ou estar às escarranchas).

Escola s.m. - A primeira escola da Ataíja funcionou entre 1933 e 1973 e era no Adro, entre o palheiro do Mira, também já desaparecido e a Capela. Com entrada pela, agora chamada, Rua de Nossa Senhora da Graça, tinha, na parede virada ao Adro, uma placa com os dizeres: "Obra da Ditadura - 1933", a qual, infelizmente, se perdeu aquando da demolição.

Foi construída por adaptação de um palheiro, doado por João Cordeiro, na empena do qual se abriram quatro grandes janelas para iluminar o espaço. Apesar da placa, quase tudo foi suportado pelos residentes que ofereceram, além do edifício, trabalho, madeiras etc.

A escola era, apenas, uma única sala, cuja porta dava directamente para a rua e não havia electricidade, nem água, nem recreio, nem instalações sanitárias. Só a secretária da professora, três filas de carteiras duplas (na fila do lado direito as carteiras eram maiores e aí se sentavam os alunos da quarta classe) e um quadro preto com uma moldura de madeira carunchosa, sobre o qual estavam os retratos do Salazar e do Carmona (que lá se manteve mesmo muitos anos depois de o retratado ter falecido e sido substituído na função por Craveiro Lopes), ladeando um crucifixo. Aí estudavam as crianças de ambas as Ataíjas. 

Uma vez que havia uma única sala, de manhã estudavam os da primeira e os da quarta classes e, de tarde, os da segunda e os da terceira (ou ao contrário, já não me lembro bem), em turmas mistas. Aí estudei, da primeira à terceira classes.

Foi demolida, para alargamento do adro da capela, algum tempo depois da construção da escola actual.

Antes disso, talvez tivesse existido um embrião de escola, uma vez que, segundo relato de Amélia Ribeiro, foram encontrados na casa alta de seu pai, José Ribeiro (onde agora, com volumetria semelhante, está a de seu neto, Rafael), após a morte dele, os restos de um quadro negro e alguns sólidos geométricos em madeira que sugerem ter, aquele espaço, sido usado como sala de aula.

Escoteira s.f. – (escóteira) Era assim que a minha avó chamava a uma cafeteira de folha de flandres que havia lá em casa e servia para fazer o café de chicória que acompanhava as sopas de leite, quando a cabra o dava (a palavra consta no Priberam mas, com significado substancialmente diverso).

Esfolagate s.m. – Esfola-gato. Salto acrobático, salto mortal, cambalhota.

O DPLP contém a palavra esfola-gato com o significado de repreensão, censura, falsa interpretação (que convém dar a alguma coisa) e [antigo] maus tratos, todas, como se vê, bem diferentes do que, por aqui, significa esfolagate.

O Houaiss, no entanto, acrescenta que esfola-gato, como regionalismo português, tem o significado de cambalhota, cabriola, reviravolta.

Esgravulhar v.tr. – Rebuscar minuciosamente. As galinhas esgravulham a terra em busca de insectos.

Espoar v. tr. - Separar, com a peneira fina, a farinha de trigo do rolão para fazer o pão-alvo.

Estonar v.tr. - Preparar o terreno para a sementeira, desfazendo as leivas e os torrões que resultam da lavra com charrua. O mesmo que esterroar ou desterroar.

Estrada de D. Maria I Top. - Ou Estrada de D. Maria Pia. Planeada e construída no final do Séc. XVIII, ocupava o corredor onde hoje se situa o IC 2. Frente à Ataíja era, nos anos cinquenta do Séc. XX, um simples caminho bastante degrado, não facilmente transitável por automóveis, cujo préstimo não ia além de serventia para os olivais circundantes, ou para as raras deslocações às Pedreiras e aos Molianos. 

Era um deserto de gente e um mar de oliveiras e, nas suas margens, desde o Casal Boieiro até aos Molianos, apenas existiam, na Barraca, aos Casais de Santa Teresa, uma única casa e um lagar de azeite.

Estrada do Diamantino Top. - Entre a Ataíja de Cima e os Casais de Santa Teresa havia um lagar de azeite, onde agora, (logo a norte do IC9 e perto do IC2) se encontra uma oficina de serralharia, o qual era propriedade de Diamantino dos Santos Vazão, comerciante de Alcobaça.

Para propiciar o acesso ao lagar, o Diamantino suportou às suas custas a construção de um caminho em seixos (não esquecer que estamos na zona das Seixeiras) e pedra, que ía desde o Oueiro, pela Rua das Seixieras, até ao lagar. Esse trabalho ainda se encontra parcialmente visível e bastante transitável no troço entre o prolongamento da Rua das Hortas e o entroncamento com a Rua das Seixeiras.

É, sem dúvida, a mais antiga estrada calcetada da Ataíja e, ao que julgo, caso único na região.

Estrada do Lagar dos Frades Top. - É a estrada municipal n.º 553 que liga o IC 2 a Aljubarrota, por Ataíja de Cima e Cadoiço. Era designada, simplesmente, a Estrada e, pelos mais antigos, no percurso entre o centro da aldeia e a lagoa, por Azinhaga da Lagoa. Foi construída, em macadame, no final dos anos quarenta do Séc. XX e, na minha infância, chegava, apenas (o macadame, entenda-se), até à Lagoa Ruiva tendo sido prolongada até à Estrada Nacional nº 1 aquando da construção desta, cerca de 1960.

Foi alcatroada na segunda metade dos anos setenta, por iniciativa de um grupo no qual colaborei e incluía, entre outros, o meu pai e José (Coelho) Sabino, então ambos emigrados por Lisboa. A população deu trabalho, dinheiro, pedra e outros materiais, cedeu as faixas de terreno necessárias ao alargamento e a pequenas rectificações do traçado e reconstruiu as paredes.

O traçado foi definido pelo Sr. Carrão, funcionário da Câmara, que percorreu o centro da via transportando nos braços uma comprida vara cujas pontas assinalavam os bordos da estrada que se iam marcando com estacas.                                               



NotaApresenta-se apenas uma parte (cerca de 1/3) dos vocábulos e expressões recenseados, começados pela letra E.

quinta-feira, 30 de maio de 2024

Gente da Ataíja de Cima – Luís da Graça

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Luís da Graça de Sousa, nasceu na Ataíja de Cima em 12 de Maio de 1931, (tendo, no entanto, sido registado como nascido a 27 do mesmo mês), filho de Manuel Luís de Sousa e de Maria da Graça.

Para sustentar a numerosa prole, o pai emigrava sazonalmente para a região de Lisboa onde, a meias com seu irmão João Luís de Sousa, era responsável por uma vacaria (os irmãos revezavam-se na função, em períodos de cerca de três meses. Enquanto um ficava por Lisboa, o outro estava na Ataíja cuidando das magras terras familiares e olhando pelas famílias) e foram os tostões assim amealhados que lhe permitiram construir uma cisterna de abóboda que ainda existe junto à casa que foi sua, na Rua das Seixeiras e, a escassos metros, um moinho de vento que existiu onde na segunda metade dos anos de 1940 o seu filho, que foi conhecido por João Frade, construiu a sua casa.

(Sobre essa cisterna publicámos um texto neste blog, em 23-02-2011 - ver AQUI)

(Sobre o moínho publicámos um texto neste blog em 24-08-2018 - ver AQUI)


Tudo isso não obstava à continuada pobreza da família pelo que ao Luís coube, aos 12 anos de idade, ir “servir”, ou seja, como criado de cama e mesa, em casa de um agricultor de Serro Ventoso, onde se manteve até aos 17 anos e ganhou para as primeiras botas.
Regressado à Ataíja, iniciou-se nos negócios de compra e venda de peles de coelho, chinelos velhos, azeite e tudo o que pudesse ajudá-lo a escapar à incerta vida de jornaleiro.

Mais tarde havia de seguir a aventura de se tornar leiteiro, em Lisboa, o mesmo caminho percorrido por muitos alcobacenses da “borda da serra” (conheci pessoalmente leiteiros oriundos de Aljubarrota, Ataíja de Baixo, Casal do Rei, Molianos, etc.e, da Ataíja de Cima, foram leiteiros, entre outros, os meus pais, João Lourenço Quitério e Maria Joaquina da Graça (Maria Carlota).
Naquele tempo, os naturais de uma determinada região emigravam para a capital para exercer uma determinada profissão (ía-se para a profissão de um amigo ou conhecido: galegos e minhotos para tabernas e restaurantes, os tomarenses para a construção civil, os de Tábua para padeiros, alcobacenses também, muitos, para vaqueiros (da Ataíja de Cima foram vaqueiros em Lisboa - cito de memória - Porfírio Coelho, António e Francisco Jorge, João Dias (Janita), João Ângelo e outros) e os alentejanos para operários, fixando-se nos arrabaldes industriais do Barreiro, Amadora e Moscavide).

Em Lisboa se manteve até 1958 – tinha, entretanto, casado em, em 8 de Abril de 1956, com Luísa Cordeiro Catarino - quando regressou à Ataíja, instalando-se na casa dos meus pais, agora minha, onde ficou até que construiu a sua, indo nós ocupar a “parte de casa” onde ele vivia, na cave de um prédio que já não existe, na Rua Luís Monteiro, nº 28, no Alto do Pina). 

Aproveitando a recente descoberta do valor comercial do vidraço de Ataíja, que o "Veneno" tinha começado a explorar pouco antes, começou também ele a escavar uma pedreira, num pequeno terreno no Vale Cordeiro que era propriedade do seu sogro, António Catarino. O negócio foi crescendo e a escola que, no tempo próprio, se tinha ficado pela segunda classe, foi retomada aos 37 anos quando, feita a quarta classe, pode tirar a carta de condução, e ter o seu primeiro automóvel.



O resto da história é conhecido:

Dotado de inteligência e carácter e impulsionado por uma enorme vontade de trabalhar, extraordinária visão empresarial, espírito inovador,  – Luís da Graça foi sempre um pioneiro, o primeiro a usar nas suas pedreiras cada uma das novas tecnologias e equipamentos que iam surgindo - e capacidade de gestão, o negócio não parou de crescer.

E, a par do negócio, apoiado na divisa que tanto gostava de repetir: “Quanto mais dou, mais tenho!”, cresceu o Benemérito:

Bombeiros, Misericórdias, Autarquias e Associações, de todas as terras onde exerceu actividade industrial, beneficiaram largamente dos donativos de Luís da Graça.



No dia 25 de Maio de 2008, a pretexto da inauguração do monumento aos Cabouqueiros que ofertou à Ataíja, foi objecto de uma grande e merecida homenagem que incluiu o descerramento do seu busto, cuja fotografia ilustra este texto

Manteve-se até perto dos oitenta anos de idade, à frente da sua empresa Sousa & Catarino, Lda (http://sousaecatarino.pt).

Pouco depois, o curso inexorável do tempo impôs-se e Luís da Graça deixou aos seus filhos a direcção efectiva da empresa.
Os últimos anos viveu-os no Lar da Santa Casa da Misericórdia de Alcobaça.

Luís da Graça de Sousa foi um grande industrial, um grande filantropo, um grande ataijense e foi um amigo.

Faleceu no dia 23 de outubro de 2021



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O texto acima foi inicialmente publicado em 22 de Março de 2011, actualizado em 23 de Outubro de 2021 e hoje, 30 de Maio de 2024, de novo actualizado, agora a pretexto da inserção do seu diploma da 4ª Classe, cuja disponibilização agradecemos ao seu neto Marcelo Paulino.

terça-feira, 9 de abril de 2024

O brunil

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Hoje em dia, o burro é, em Portugal, um animal em perigo de extinção. No entanto era, ainda há pouco tempo, o mais precioso auxiliar dos camponeses e pequenos proprietários rurais, já que desempenhava quase todas as funções em que, entretanto, foi substituído pelas bicicletas, motorizadas e automóveis e atrelados de motocultivadores e mini-tractores.
De facto, o burro era meio de transporte de pessoas e bens e tanto servia para levar o dono ao mercado como, equipado com cangalhas ou seirões, ou atrelado ao carro, transportar toda a casta de bens.
Ao que parece, originário da África do norte, o burro está domesticado há cerca de 5.000 anos e espalhou-se por toda a bacia mediterrânica e, levado por portugueses e espanhóis, pelas Américas.

Oatman, antiga cidade mineira do Arizona, nos Estados Unidos da América, será, aliás, o único lugar do mundo onde os burros não correm riscos de extinção: Interrompida abruptamente a exploração mineira de prata, Oatman foi abandonada pelos seus habitantes e, os burros dos mineiros foram, igualmente, abandonados.
Os animais, assilvestrados, fazendo juz à resistência e frugalidade da espécie, conseguiram sobreviver naqueles difíceis terrenos semi-desérticos e vagueiam, às dezenas, pelos campos e pelas ruas e, gozando de adequada protecção legal,  tornaram-se uma atracção turística para os muitos viajantes da velha Route 66. (pode ver no Youtube vários vídeos sobre os burros de Oatman).

Mas, por cá, estão mesmo em risco de extinção e, na Ataíja de Cima, sobram dedos da mão para contar os que subsistem.

Daí, a minha dificuldade em um brunil para fotografar, o que só há alguns dias consegui:



Brunil s.m. - O colar, em forma de ferradura, feito de couro, com enchimento de palha, que se coloca no cachaço (pescoço) do burro para, sobre ele, assentar a canga do carro.


Notas:
A palavra brunil, com a qual, na Ataíja de Cima, designamos esta peça, não consta de nenhum dos dicionários consultados - DPLP, Houaiss ou José Pedro Machado.
Em S. Brás de Alportel ouvi chamar-lhe bolim mas essa é palavra que os dicionários Priberam e José Pedro Machado também não reconhecem. O Houaiss reconhece bolim mas dá-lhe significado muito diferente. É, diz, a bola menor no jogo da bocha, sendo bocha um jogo de lançar bolas contra outra mais pequena, à semelhança da laranjinha ou da petanca.
Palavra parecida é molim, que o Priberam diz que é o nome que no Alentejo e no Algarve se dá a uma "espécie de almofada ou chumaço em que assenta a canga dos bois ou o cangalho dos cavalos".
Para J. P. Machado molim é, sem mais, "almofada em que assenta a canga".

Estou muito curioso de saber como tal objecto, o brunil, se designará noutros lugares de Portugal.
Haverá um leitor bondoso que nos queira ajudar?

PS: Este texto foi inicialmente publicado em 09-04-2012,  revisitando-o agora, em 2024, confirmo que, poucos anos depois de publicado o texto inicial, desapareceu o último burro de quatro patas que houve na Ataíja de Cima.

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terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Alcunhas Ataíjenses - O Maçarico

 

As alcunhas nascem, em geral, da necessidade de distinguir uma certa pessoa das demais do mesmo nome, ou profissão ou que, por qualquer outra razão, possam ser confundidas.

As alcunhas mais vulgares podem referir-se  à família do nomeado (ex. Manuel Augusto, Zé da Ilda), ao local de origem ou de residência ( Maria da Serra, Nuno do Cadoiço), a uma profissão ou característica física (Serrador, Mouço, Russo, Maneta) um comportamento (Tunante),  uma habilidade ou, até, um facto (Tranca Ruas).

Em alguns casos, é difícil saber  ou sequer imaginar a razão de uma certa alcunha. É o que se passa com o nosso Maçarico.

Maçarico porquê, se o maçarico é uma ave de arribação, de porte médio e pernas e bico longos, que em Portugal ocorre durante as migrações ou como invernante, vive em zonas ribeirinhas, ou alagadiças, não existe na Ataíja e nada nos seus hábitos ou comportamentos pode ser comparado ao nomeado? 

Igualmente, não parece aplicável ao caso qualquer dos outros significados de maçarico, seja o de aparelho a gás usado pelos soldadores, seja o de novato, inexperiente, como também eram, no meu tempo, chamados os jovens recrutas no serviço militar.

Seja por que for, a alcunha pegou e era mesmo universal, já que toda a gente conhecia o José Carvalho Quitério – n. 1942, f. 2023 - (Quitério porque tínhamos um bisavô comum), por Maçarico ou Zé Maçarico.

O Zé Maçarico, quando jovem pré-adolescente e adolescente, era pequeno e ágil como um gato, mestre em correr e saltar, subir às árvores e descobrir ninhos em lugares recônditos. Irrequieto e ladino, era capaz de acrobacias e esfolagates, de caminhar sobre andas, ou de fazer rolar uma barrica equilibrando-se nela, como um artista de circo. E, quase não havia dia em que não fosse autor de uma qualquer pequena proeza, em geral, com desagrado dos adultos.

Era um pinante, que é nome de gente capaz de fazer o pino e de cometer outras proezas acrobáticas.

Ou, talvez não fosse tanto assim. É que, nestas coisas, vale o ditado que ouvi à minha avó: ganha fama e deita-te a dormir.

Da ligeireza todos fomos testemunhas. Lembro-me de quando, ele adolescente, houve um domingo primaveril em que, depois da missa em Aljubarrota, o trabalho colectivo foi retirar do telhado da Capela os ninhos de pardal que o infestavam. O telhado da Capela estava então em muito mau estado. Ainda coberto de telhas de canudo, algumas partidas e muitas deslocadas, debaixo delas achavam-se dezenas, se não centenas, de ninhos de pardais, pássaros que naquele tempo se viam pela Ataíja em grandes bandos e, fazendo jus ao seu nome completo de pardal-do-telhado, tinham carregado para a cobertura da capela grandes massas de palha, pequenos troncos, cabelos e crinas e pelos, de gente, de burros e de cães, bolas de lã que as ovelhas tinham deixado agarradas aos arbustos, pedaços de tecido e o mais que acharam para fazer os seus toscos e grandes ninhos, enormes para os pequenos habitantes e mais ou menos informes salvo o centro onde são depositados os ovos e criados os filhotes, única parte desses ninhos que mostra evidentes cuidados de construção.

Já chovia dentro da Capela e era, por isso, necessário remover os ninhos e repor as telhas em devida posição e lá foi o Maçarico para cima do telhado da igreja, onde convinha gente equilibrista e leve que fizesse o trabalho e não partisse mais telhas.

A coisa saldou-se por uma enorme quantidade de palha, muitos ovos e algumas pequenas crias espalhados em redor da igreja. Hoje, já não se cultivam cereais na Ataíja de Cima e a população de pardais diminuiu drasticamente.

Mas, as proezas do jovem Maçarico passaram muito por moer o juízo ao meu avô Agostinho que era dono da fazenda, o Cerrado, que fica mesmo em frente da casa onde nasceu.

Talvez encorajada pela irrequietude do Maçarico, uma sua irmã subiu um dia pelo portão do pátio e, de pé, sobre o pequeno pedaço de parede que o ladeia, separando-o da casa, levantou a saia, fez força e lançou uma mijareta que atravessou o então estreito caminho, onde não cabia mais do que um carro de vacas. O pobre do meu avô ficou embaçado com a proeza e não conseguiu calar-se, pelo que o feito andou de boca em boca.

O Maçarico fazia outras judiarias.

De uma vez, munido de uma bomba de foguete introduziu-a num buraco que havia num dos esteios que ladeavam o porto por onde os peões acediam ao Cerrado, onde a fez explodir estilhaçando a pedra. Mais uma irritação, das grandes, para o meu avô e sorte para o Maçarico que, com a brincadeira podia ter ficado sem alguns dedos, como aconteceu ao João Pardal.

De uma outra vez, trepou, só porque sim, a um pinheiro que o meu avô lá tinha, um grande e solitário pinheiro, como então se via nas margens de terrenos de cultivo, aguardando a necessidade do proprietário de o transformar em tábuas.

Quando se preparava para descer, o Maçarico apercebeu-se que o meu avô estava mesmo ali.

- Anda cá meu malandro, desce daí que eu já te coço!
- Não desço nada! – E, em vez disso, viu-se obrigado a subir mais um pouco, para se livrar de uma pequena vara que ameaçava chegar-lhe aos fundilhos.

No meio da propriedade, a mais de cinquenta metros de distância, havia, como era comum em propriedades de certa dimensão e mais afastadas do centro da aldeia ou da casa do proprietário, uma pequena construção que servia para abrigo ou guarda temporária de produtos da terra ou utensílios.  Esta tinha anexa, como aliás também era relativamente comum, uma pequena eira onde o meu avô debulhava cereais e legumes.

- Desce daí, malandro!
- Não desço nada!

Depois de algum tempo passado naquele desce não desço,  diz-lhe o meu avô:

- Ah! Não desces? Vou ali à casa buscar uma machada, corto o pinheiro e já vês se desces ou não desces! E virou costas, fingindo iniciar o caminho para ir pela machada.

O malandrim, por receoso de que o homem viesse mesmo de lá com a machada, ou por a ocasião lhe ter parecido boa para se livrar daquele imbróglio, deixou-se escorregar pelo pinheiro e correu a refugiar-se no quintal paterno.

- Quando cheguei cá abaixo não tinha botão nenhum!

Contou ele, entre gargalhadas de ambos, quando, aqui já há uns bons anos, tivemos oportunidade de recordar tropelias de juventude. 


(Johann Friedrich Naumann - Naturgeschichte der Vögel Mitteleuropas 1905, or earlier works., Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=67082)




quarta-feira, 12 de abril de 2023

Café Centro



Você gosta de coelho grelhado?
Talvez nunca tenha comido e por isso não o saiba.
Ou, talvez nunca tenha comido coelho grelhado no Café Centro, na Ataíja de Cima e, se assim é, então você não sabe o que é um coelho grelhado delicioso.

Todos nós estamos convencidos de que Portugal é um país onde se come bem e, os muitos estrangeiros que nos visitam também gabam a nossa comida. Portanto, é bem capaz de ser verdade que em Portugal se come bem.
Mas, certamente, há lugares onde se come melhor do que noutros. E, nem sequer tem a ver com preço. É possível comer bem numa simples tasca ou nos melhores restaurantes.
Se for comida verdadeiramente portuguesa, a receita é fácil e assenta na qualidade da matéria-prima, cozinhada com simplicidade e moderação de molhos e temperos, valorizando e deixando “respirar” os sabores e os aromas de cada ingrediente.

Na Ataíja de Cima, temos um desses casos: Um sítio onde se come muito bem e a preço muito em conta.
O CAFÉ CENTRO, na Rua dos Arneiros, n.º 63, (bem perto do Largo do Outeiro), com o telefone 262508227.

Ali não há pretensões: Especialmente activo ao almoço dos dias úteis, do que se trata é de alimentar o pessoal das indústrias locais. Gente que gosta de comida boa e simples, doses generosas e preço módico. Por isso, carnes grelhadas e um coelho no churrasco, absolutamente delicioso, ou um honesto frango, bem assado, dourado e de pele estaladiça que é dos melhores que eu já comi, são o forte da casa.
Mas, ao sabor do mercado, aparecem outras iguarias. Hoje, por exemplo, havia, além do mais, galo com esparguete (um verdadeiro galo, não um frango inchado) e uma óptima sopa de peixe.

O Joaquim trata da grelha, de que é um grande especialista.
A Lúcia, sempre simpática e eficiente, cozinha e serve às mesas.

São meus amigos, é claro! Mas, se há coisa que eu nunca faria, era recomendar um restaurante onde me não apetecesse voltar.

O melhor, mesmo, é o leitor experimentar também e deixar o seu comentário aqui, no blog.

BOM ALMOÇO!


O texto acima foi originalmente publicado neste blog em 22-5-2012.
 
Sabendo nós que nestas coisas de restaurantes o segredo estás nas mãos que fazem o trabalho e, por isso, às vezes os sítios mudam subitamente de qualidade, só isso já justificaria a actualização do texto, para dizer aos leitores que, no Café Centro, nada mudou. Nem a ementa, nem a generosidade das doses, nem a qualidade da grelha.

Como tantos estabelecimentos de restauração, a solução para sobreviver à devastação que a pandemia provocou no sector, foi apostar no take away. E, se depois do confinamento ainda me não sentei no Café Centro, a verdade é que entretanto já usufrui por mais de uma vez da qualidade dos seus grelhados.

Por isso posso dizer a quem ler estas linhas: 

O coelho grelhado continua uma maravilha e o frango no churrasco é do melhor que conheço.



12 de Abril de 2023

Hoje, dia 12 de Abril de 2023, faleceu, aos 67 anos de idade, o Joaquim Gomes de Sousa, proprietário, assador e, assim, a alma do Café Centro.
O Joaquim era, não é demais repeti-lo, um grande assador e a fama do seu coelho grelhado trazia gente de longe até à Ataíja e ao seu modesto restaurante.
Partiu cedo, após curta mas implacável doença.
Será recordado, por mim e por todos os que tiveram a oportunidade e o gosto de provar os seus grelhados, pelos momentos de prazer gustativo que a suas aptidões na grelha muitas vezes nos proporcionou.
Descanse em Paz






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