terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Um retrato de há Cem Anos

 

Na arca da minha tia-avó Maria Marreca guardaram-se durante largas décadas três documentos preciosos. Primeiro, um livro de que já aqui dei conta e que, recolhido após o falecimento da Marreca, se encontra actualmente na posse de uma sobrinha bisneta. A ele me refiro no post publicado em 8 de Outubro de 2018, Um Livro do Séc. XVIII na Ataíja de Cima. Segundo, o Alvará de Nomeação do Cabo de Polícia Joaquim da Graça, de que falei recentemente no post O Cabo de Ordens, publicado em 7 de Janeiro de 2025.

Do terceiro documento falaremos agora.

A mesma mão amiga que me fez chegar o Alvará de Nomeação do Cabo de Polícia Joaquim da Graça, levou-me, também, a duas cópias de uma mesma fotografia no verso de uma das quais alguém, em anos recentes, escreveu: “Pai do Mariola … e, em letra diferente e escrito com esferográfica diferente, 1º Cabo de Ordens da Freguesia”.

Estas fotos são os mais maltratados dos documentos que a Marreca guardou e, por não terem sido vistas pelos herdeiros ou por não lhes ter interessado, ficaram elas no fundo da velha arca ainda por larguíssimos anos depois do falecimento da guardiã.

Esse abandono será a causa do lamentável estado em que se encontram.

Trata-se do retrato de um homem ainda jovem, bem penteado e bem barbeado, de camisa branca, gravata de riscas oblíquas e casaco escuro, talvez preto, em papel fotográfico recortado numa oval de 3x8 cm, colado sobre um cartão onde se vislumbra uma moldura prensada em tracejado e, numa das cópias, a que, aliás, se encontra em pior estado geral por, designadamente ter sido dobrada com a consequente quebra da foto e do cartão de suporte, consegue-se vislumbrar vestígios de palavras que identificam o fotógrafo.

Perante o estado em que se encontravam, levei as fotos a uma empresa especializada (LUPA – Luís Pavão, Lda), para limpeza. Apesar dos esforços da técnica, os resultados foram fracos devido ao facto de a sujidade, sujeita a humidades, se ter entranhado e danificado irreversivelmente os suportes.

Digitalizada e muito ampliada a foto, foi possível ler a legenda: Foto Veneza, Rua D. Pedro V, Alcobaça.

Ora, consultando o livro Cem Anos de Comércio em Alcobaça, de Jorge Pereira de Sampaio e Luís Afonso Peres Pereira, vemos que, conforme ao tempo foi anunciado no semanário local Semana Alcobacense, a Foto Veneza, de R. Lima Pereira, na Rua D. Pedro V, em Alcobaça, foi inaugurada em 7 de Novembro de 1920.

O meu bisavô Joaquim da Graça nasceu em 1853 e foi pai de, pelo menos, 10 filhos um dos quais o Mariola. Não sei a data do seu falecimento mas, se era vivo e julgo que era, em 1920 teria 67 anos.

Não é, assim, o homem da foto.

O fotografado também não é o seu filho Joaquim, que foi Cabo de Ordens (cabo de Polícia) em 1906, que esse, se fosse vivo, contaria em 1920 trinta e três ou trinta e cinco anos de idade mas, como a minha avó me contava, faleceu na tropa, ou seja, faleceu em 1906 ou pouco depois (ver, sobre este assunto, o post O Cabo de Ordens).

Quem será então o homem retratado e o que justificou que a Marreca tivesse guardado a sua fotografia por toda a vida?

Era, certamente, um dos seus irmãos mas não o Manuel Mariola porque esse, nascido em 1908, tinha em 1920 apenas 12 anos. Nem o João, de alcunha Redondo, que esse casou na Ataíja e, se tivesse “tirado o retrato”, o que duvido, tê-lo-ia levado para sua casa, aliás, do outro lado da rua. Nem o António, também Redondo, que tinha 17 anos em 1920, embora a fotografia possa ser de alguns anos mais tarde. É que o António casou e apesar de ter começado a fazer casa na Ataíja (1), foi viver para os Milagres, terra da sua mulher e aí ficou toda a vida e teve descendência. Se a foto fosse dele tê-la-ia, certamente, levado consigo para os Milagres.

Assim, ou muito me engano ou o fotografado é um outro meu tio-avô, o outro irmão homem da tia Marreca, de seu nome Joaquim, nascido 1891 e  que por isso tinha em 1920 vinte e nove anos de idade e em data que ainda não logrei apurar, ainda nos anos vinte ou no início dos anos trinta do séc. XX, emigrou para a Argentina e de quem nunca mais houve notícia.

 


 


NOTA:

(1) A casa terá estado inacabada por largos anos, sem portas nem janelas, razão por que a minha avó lhe chamava "o pombal", mesmo depois de já estar habitada há bastante tempo pelos novos proprietários, os meus tios António Agostinho da Graça e Joaquina Pequena. A casa foi, há uns sessenta anos, destruída por um incêndio.





terça-feira, 7 de janeiro de 2025

O Cabo de Ordens


As minhas memórias de infância remetem para os serões à lareira, quando a minha avó Maria Lourenço me contava histórias familiares.

Nessas histórias, o meu bisavô Joaquim da Graça era um carpinteiro pobre, viúvo em 1888 aos trinta e cinco anos de idade e pai de dois filhos vivos, (a minha avó de sete anos e o irmão Joaquim de quatro), que se casou, em 2ªs núpcias, com uma jovem casaleira de 20 anos de idade, a qual tratava mal os enteados órfãos e não tinha jeito para cozinhar.

Este segundo casamento do meu bisavó durou até ao seu falecimento e frutificou, tendo dele nascido, ao longo de 20 anos, pelo menos sete filhos dos quais seis chegaram a adultos e só uma, Júlia que casou com Luís Gomes, dito Francelino, tem atualmente descendência na Ataíja.

Dos demais, uma Maria faleceu jovem, um Joaquim emigrou para a Argentina e não mais houve notícias dele, um António casou nos Milagres e dele há descendência, um João, de alcunha Redondo, foi sapateiro, casou na Ataíja e faleceu sem descendência.

Os dois mais novos, mais novos, aliás, do que a sobrinha mais velha, Manuel, o Mariola nasceu em 23-11-1908, tinha o pai 55 anos, no mesmo ano da sua sobrinha Maria (Papoila) e Maria, a Marreca, ficaram solteiros, não tiveram descendência e viveram na Rua de Trás na casa que já era de seus pais e está hoje absolutamente arruinada e prestes a desaparecer.

O meu bisavô, como aliás o seu pai, diferentemente da generalidade dos seus conterrâneos que naquele tempo eram analfabetos, sabia ler e escrever e também os seus filhos homens o souberam.

Certamente que esse facto de saber ler e escrever terá sido uma das razões que justificaram a nomeação, em 1906, de Joaquim da Graça como Cabo de Polícia.

E, aqui chegados, importa saber duas coisas: o que era um Cabo de Polícia e quem era o Joaquim da Graça que foi nomeado Cabo de Polícia.

O Cabo de Polícia, a que eu na Ataíja sempre ouvi chamar Cabo de Ordens – os mais velhos recordar-se-ão que Alfredo Ângelo da Silva foi o último Cabo de Ordens – era o representante local do Regedor, a autoridade policial da aldeia.

As funções do Cabo de Polícia e os requisitos da sua nomeação constavam da Lei de 4 de Maio de 1896, que aprovou o Código Administrativo que ao tempo (1906) vigorava[i].

A administração do território baseava-se, por um lado, em municípios e paróquias de base eleitoral, governados respetivamente por uma câmara municipal e uma junta de paróquia que, por outro lado, estavam sujeitos a uma tutela governamental muito forte e próxima, assente em cada distrito no Governador Civil, nos municípios no Administrador do Concelho e nas paróquias no Regedor que era coadjuvado por Cabos de Polícia em número fixado pelo Governador Civil.

O serviço de Cabo de Polícia era gratuito e obrigatório e abrangia a totalidade da freguesia mas, na prática os Cabos de Polícia eram residentes nas aldeias mais importantes e o seu serviço cingia-se à aldeia.

Como coadjuvantes do Regedor cabia-lhes um alargado leque de funções de polícia, que aqui não importa especificar, das quais a mais relevante e à qual não havia maneira de se eximirem, era a nomeação dos homens que deviam carregar o morto até ao cemitério.

De facto, naquele tempo não eram uso  grandes cortejos de acompanhamento dos funerais. Em regra as mulheres ficavam em casa a chorar (como ainda hoje acontece nos países do Médio Oriente) e dos homens, apenas os que haviam de carregar o caixão e, eventualmente, algum parente mais próximo, integrava o cortejo fúnebre.

 Ora, transportar um caixão em ombros, por maus caminhos, durante três, quatro ou até sete quilómetros, como era o caso dos Moleanos, era tarefa para que, em regra, não havia voluntários. Cabia ao Cabo de Polícia, que conhecia a sua aldeia, designar de entre os homens válidos aqueles que deveriam transportar o morto até à Igreja paroquial e daí ao cemitério, o que devia  ser feito de acordo com regras de rotatividade equitativas e compreensíveis.

Parecerá estranho aos mais novos que as coisas se passassem como descrevo no parágrafo anterior. Mas, era mesmo assim. Lembro-me de os caixões serem transportados em ombros até Aljubarrota e de ter sido comprada – julgo que nos inícios dos anos sessenta - uma carreta que tornou a tarefa substancialmente mais fácil. Como me lembro da luta, aliás longa, dos Moleanos para conseguir autorização para a construção do seu próprio cemitério, precisamente para evitar a excessiva dureza da realização dos funerais em Aljubarrota.
Em 1906 e por muito tempo depois disso, o serviço de transporte do defunto era obrigatório e gratuito, sendo no entanto tradição que os transportadores gozassem, após o funeral, de uma merenda paga pela família do falecido. Quando eu era jovem ainda as coisas se passavam assim e a merenda era tomada nos fundos da taberna do Joaquim do Álvaro, onde agora o filho deste, o Torcato, tem o seu café.

Nos termos do artº 305º do referido Código Administrativo, os cabos de polícia eram nomeados de entre os soldados licenciados para a reserva, de entre os mancebos recenseados e sorteados para o serviço militar que não tivessem sido necessários para o preenchimento dos contingentes ou que podendo ser necessários ainda não tivessem sido chamados.

 

Quem era, então, o Joaquim da Graça que foi nomeado Cabo de Polícia em 1906?

O Código Administrativo dizia que os cabos de polícia eram nomeados de entre os soldados licenciados para a reserva e a lei que em 1869 criou o serviço militar obrigatório não remunerado, dispunha que esse serviço era por cinco anos, findos os quais os militares passavam a uma segunda linha, ou primeira reserva e, depois, para a reserva territorial até completarem 50 anos.[ii]

O meu bisavô Joaquim da Graça, nascido em 1853, tinha 53 anos em 1906 e, portanto, já não podia ser nomeado cabo de polícia.

Logo, o nosso Cabo de Polícia só pode ter sido o seu filho Joaquim, nascido em 29 de Setembro de 1884 e que à data da nomeação estava a pouco mais de um mês de completar os 22 anos e nessa data seria um mancebo  recenseado e sorteado para o serviço militar.

Serviço militar para o qual, aliás, veio posteriormente a ser chamado.

Nessa altura o Joaquim da Graça tinha namorada e estaria convencido de que já não seria chamado ao serviço militar obrigatório e, por isso, começou a construir a sua casa.

O inopinado chamamento à tropa provocou-lhe grande desgosto e, chegado ao quartel, ensimesmado, num dia frio de inverno chorou copiosamente com a cara encostada a um portão de ferro gelado, adoeceu e morreu.

Assim mo contou a minha avó que nas suas orações da noite nunca esquecia esse infeliz irmão que, aliás, sempre chamava de Joaquim Lourenço.

O Alvará de nomeação de Joaquim da Graça como Cabo de Polícia foi, durante muitas décadas, religiosamente guardado no fundo de uma arca pela sua meia-irmã, a minha tia-avó Maria Marreca

A casa que construiu mas nunca habitou é hoje a minha sala.


 



[i] A Legislação Régia pode ser consultada on line, no site da Assembleia da República, em parlamento.pt

[ii] (Borges, José Martins, Major de Infantaria, A Evolução de Modelos de Recrutamento Nas Organizações Militares, Instituto Universitário Militar, Departamento de Estudos Pós-Graduados (Curso de Estado-Maior Conjunto), Pedrouços, 2018. In (consultado em 16/12/2024):
https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/23221/1/MAJ%20José%20Borges.pdf

sábado, 4 de janeiro de 2025

Dicionário de Ataíja de Cima

 

A decisão de publicar o Diário de Ataíja de Cima, agradeço-a ao Francisco Soeiro Mendes que, com o seu incentivo, pôs cobro a vários anos de hesitações sobre se valia ou não a pena publicar, correndo o risco de eventuais prejuízos económicos.

A recepção dos ataijenses que acorreram a adquirir o livro e as notícias que me vão chegando e me convencem do agrado geral, são muito satisfatórias. É bom vermos reconhecido o nosso trabalho, mais a mais o trabalho de investigar e escrever que é, por sua natureza, bastante solitário.

Só tenho, por isso, de agradecer essas manifestações de interesse, aprovação e carinho com que me têm brindado e me incentivam a continuar um trabalho que me dá muito prazer e tenho o propósito de continuar enquanto o permitirem o corpo e a cabeça.

Publicar em edição de autor, como foi o caso, é uma aventura. Trabalhosa, morosa, custosa. Mas, estou agora animado a repeti-la.

A primeira tiragem que, à cautela, foi muito pequena, esgotou rapidamente. Uma segunda tiragem, antes do Natal teve também boa aceitação. Mas, haverá outros interessados que, por uma ou outra razão, ainda não tiveram oportunidade de adquirir o livro ou, sequer, tiveram dele conhecimento.

Para estes, o livro está agora à disposição no Salão Cultural Ataíjense a cuja direção agradeço a disponibilidade.


Porque a publicação do Dicionário de Ataíja de Cima, não tem por objetivo a obtenção de quaisquer proveitos materiais, é com alegria que informo que a receita bruta de todos os exemplares que sejam vendidos no Salão, reverterá inteiramente, em partes iguais, a favor do Salão e do Centro Pastoral.







Vemo-nos no dia 19-01-2025, no Almoço Anual do Salão Cultural Ataíjense



quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

A Indústria Ataíjense na Reconstrução de Notre Dame

 

Cerca de 5 anos e meio depois do grande incêndio que, em 15 de abril de 2019, lhe provocou graves destruições, teve lugar no passado dia 7 a reabertura da Catedral de Notre Dame de Paris.

O Incêndio começou na cobertura e provocou a queda do pináculo que, com o seu peso de  muitas toneladas de madeira e chumbo, rompeu a abóboda na zona do cruzeiro. O telhado ardeu totalmente e as empanas laterais ficaram muito danificadas.

Notre Dame de Paris (Nossa Senhora de Paris) cuja construção se iniciou em 1163, tendo as obras se prolongado por cerca de 200 anos (o Mosteiro de Alcobaça começou a construir-se em 1178), é um dos mais importantes monumentos religiosos da Europa, símbolo do Gótico, o novo estilo arquitetónico que pelos séculos seguintes se iria afirmar por toda a Europa, substituindo o chamado estilo românico que tinha sido o padrão nos séculos anteriores (dos anos 900 aos anos de 1100).

Em Portugal o estilo gótico tem uma evolução que vai da Igreja do Mosteiro de Alcobaça até ao Mosteiro da Batalha, por muitos considerado o seu expoente entre nós.

Voltando a Notre Dame, o terrível incêndio desencadeou em França e um pouco por todo o mundo uma forte emoção, face ao que parecia ser o desaparecimento de uma das grandes maravilhas arquitetónicas.

A isso reagiram o Presidente da República Francesa que desde logo afirmou que a Catedral iria ser reconstruída e, ao seu apelo para a participação de todos nessa reconstrução, responderam os mecenas doando uma quantia na ordem dos 800 milhões de euros, mais do que o custo total das obras.

O Presidente Macron tinha, ainda, estabelecido o objetivo de que as obras fossem concluídas a tempo dos Jogos Olímpicos de Paris, o que só por escassos meses não foi conseguido.

Na sua imensa complexidade os trabalhos de reconstrução exigiram uma preparação que demorou dois anos, implicando o estabelecimento de estruturas provisórias de sustentação e protecção, a remoção e análise dos escombros e uma alargada discussão sobre os objectivos da reconstrução, tendo prevalecido a decisão de reconstruir a Catedral tal como se encontrava em vésperas do incêndio, sendo certo que esse era o resultado de uma alargada intervenção ocorrida em meados do século XIX, sob a direção do arquiteto Viollet-le-Duc, o qual deu à Catedral o aspeto que lhe conhecíamos antes do incêndio e agora retomou.

Para uma descrição alargada do que foi o incêndio e as opções e obras de reconstrução da Catedral podem os mais curiosos ler o artigo Notre-Dame depois do incêndio e outros sobre o mesmo assunto, publicados na National Geografic Portugal.

Tratou-se de uma tarefa gigantesca que envolveu enormes quantidade trabalhadores, empresas e materiais. Por exemplo, a cobertura do telhado exigiu a utilização de cerca de 4.000 metros quadrados de placas de chumbo, foram restauradas ou feitas cópias de cerca de 2.000 estátuas e 2.400 carvalhos foram cortados para fornecer a madeira para reconstruir as estruturas do telhado e do pináculo.

A queda do pináculo e o resultante rompimento da abóboda provocaram danos designadamente no altar e é essa a razão deste post, pois foi aqui que a indústria ataíjense participou na reconstrução da Catedral.

A MVC - Portuguese Limestones, pode legitimamente orgulhar-se de todos os degraus, feitos em pedra moleanos, terem sido produzidos na empresa.





sábado, 23 de novembro de 2024

Padre Ramiro Pereira Portela

 

Faleceu hoje, dia 23de Novembro de 2024, na Casa do Clero, em Fátima, onde vivia, o Sr. Padre Ramiro Pereira Portela.

O Sr. Padre Ramiro paroquiou Aljubarrota durante mais de 50 anos, entre 7 de Agosto de 1965 e Setembro de 2017, quando foi substituído pelo actual pároco, o Padre Dr. Adelino Filipe Guarda.

Natural de Meirinhas, Pombal, onde nasceu em  30 de Outubro de 1935, o Padre Ramiro chegou a Aljubarrota um jovem com menos de 30 anos e por aqui ficou até passados os 81anos, até ao fim da sua actividade como pároco.

Uma tão prolongada permanência não poderia deixar de ser marcante, mais a mais que o padre Ramiro era uma personalidade suficientemente polémica para criar amores e desamores, sobretudo com a sua vontade de construtor.

Sem embrago era geralmente respeitado e querido e orgulhava-se, certamente, de a sua actividade pastoral se ter saldado, nos últimos anos de actividade, pela ordenação de dois dos seus paroquianos, jovens que conheceu desde sempre, batizou e acompanhou no desenvolvimento da fé.

A sua presença em Aljubarrota fica perpetuada por um busto mandado erguer  pelos seus paroquianos, colocado junto à entrada da Igreja de São Vicente de Aljubarrota.

Curiosamente, a sua terra natal é actualmente paroquiada por um dos jovens paroquianos que viu chegar a tomar ordens, o ataíjense Padre Fábio Bernardino.



Requiescat In Pace

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Dicionário de Ataíja de Cima

 

 

Depois de largo tempo hesitando entre publicar ou não publicar, finalmente, decidi embarcar na aventura de dar à estampa um pequeno livro sobre a minha aldeia natal, a que chamei Dicionário de Ataíja de Cima.

O livro, organizado como se fora um dicionário, contém factos diversos, memória pessoais, trata de pessoas, com seus nomes e alcunhas e, às vezes, apontamentos de genealogia, elenca palavras que já não se usam ou aqui se usam ou usavam com sentidos específicos e em alguns casos bastante diferentes daqueles que lhes dão os dicionários da língua portuguesa, assim como aflora questões de microtoponímia, economia, história, conta estórias e algumas outras coisas que me lembraram  pensei que podiam ter algum interesse para os leitores ataíjenses, para quem o livro foi pensado.

Os leitores do blog ali encontrarão muitos temas que também já aqui foram tratados, aliás, geralmente com mais desenvolvimento.

Do conteúdo deste dicionário já dei aqui no blog um pequeno apontamento, no texto Para Um Dicionário da Ataíja de Cima - Letra E, publicado em 20 de Junho, próximo passado e pelo qual os leitores puderam começar a fazer uma idéia do conteúdo do livro. (mais recentemente, na minha página do Facebook, publiquei uma outra página do dicionário, já impresso).

No próximo fim-de-semana, (dias 15,16 e 17 de Novembro de 2024), o livro será entregue por mim, na Ataíja de Cima,  às pessoas que já manifestaram interesse na sua aquisição e a quaisquer outras interessadas.

Espero que os que vierem a adquirir o livro se agradem com a sua leitura, melhor, com a sua consulta porque um dicionário não é para ler é para consultar



domingo, 15 de setembro de 2024

Uma casa na Rua de Trás

 

A Rua de Trás, agora chamada de Rua de Santo António, é uma antiquíssima rua que fecha pelo norte o núcleo central da aldeia, o Lugar.

Quando eu era pequeno, nos anos cinquenta ou sessenta do século passado, ainda ali viviam mais de 40 pessoas, em 10 casas habitadas.

Nos anos entretanto decorridos as transformações foram profundas. As pequenas casas, umas sem quintal e apenas um pequeno pátio nas traseiras, outras com quintais minúsculos, coladas umas às outras, estreitinhas, algumas delas sem outra serventia que não a porta da rua, deixaram de satisfazer as necessidades e os interesses das novas gerações que preferiram fazer casas fora desde núcleo central, estendendo-se pela beira dos antigos caminhos.

A decadência da Rua de trás, não começou, deve dizer-se, apenas há 70 anos. Naquele tempo, já algumas das casas antes habitadas se encontravam vazias, por morte dos últimos habitantes ,e na sua maioria, tinham já sido adaptadas a novos usos e serviam como arrecadações ou palheiros.
Quando, vindo do Largo do Monumento aos Combatentes, a rua vira à direita para o lado da serra, estavam, desse lado direito, além da casa da esquina, pelo menos mais três. Uma, propriedade de Luísa Ribeiro era usada como armazém de azeite e por isso chamada de Casa das Talhas. Haviam a casa onde então moravam João Redondo e a sua mulher e, aquela, agora em obras, onde moravam Eleutério dos Santos, com a sua mulher Maria Constantina, ou Maria Serafina, também conhecida por Maria Pequena, filha de Constantino dos Santos e de Serafina dos Santos e Pequena por ter uma irmã mais velha também Maria.

Em frente, uma antiquíssima casa que ainda lá está, propriedade de Luísa Ribeiro que ao lado construiu a sua e aquela ficou desabitada e apenas um complemento da nova.

Continuando encontrávamos, pelo norte, além da que motiva este texto, mais duas casas desabitadas. Uma que lá continua, tal e qual, agarrada às obras do Joel Pereira, era propriedade do meu avô José Agostinho. Estreitinha, escondida atrás de um pequeno alpendre onde existe uma minúscula divisão onde, talvez, há muitos anos, dormisse o porco. Entrando, segue-se, do lado esquerdo, a grande chaminé que servia de manjedoura ao burro que naquele tempo ali vivia.

A casa que imediatamente se lhe segue e está hoje recuperada, é umas das duas casas habitadas da rua. Era, então, propriedade de José Ribeiro que a usava como palheiro e lhe chamava a Casa da Quitéria.

Do outro lado da rua já tudo eram arrumos de Sabino Vigário e tinham entradas pela Rua da Penicheira, esta ainda então com saída para a pequena travessa que liga a Rua de Trás ao Adro.

Seguiam-se quatro casas de habitação, todas com traseiras para a Rua de Trás mas entrada principal virada à agora chamada Rua de Nossa Senhora da Graça. Hoje são três, a saber:

A que teve Emília Mariano por último residente e onde então vivia a ti’Maria da Serra, viúva do meu tio-avô António Agostinho.

A que se segue e sempre conheci sem gente, também feita arrecadação de José Ribeiro que lhe chamava a Casa do Catrino.

As duas seguintes, onde conheci a ti’Silvina e a ti’Maria Serafina, avó dos Delfinos, são agora uma única.

 

É toda esta viagem pela memória motivada por que, no passado dia 8, vindo do Festival das Sopas, deparei com a Casa do Porfírio arrasada.

Apertada entre a casa que foi dos meus tios-avós Mariola e Marreca e aquela que os mais novos conheceram por do Cai-Bem, bisneto do Porfírio, a casa esteve entaipada largas décadas e só olhos atentos vislumbravam, sob a cal, o desenho do alpendre, um alpendre como era comum nas casas ataíjenses de séculos passados.

Daqui a pouquíssimo tempo, olhares distraídos verão apenas a passagem para o pequeno quintal das traseiras da casa do Cai-Bem e poucos acreditarão que ali houve, por séculos, uma casa.


Mas, eu lembro-me de, pequeno ainda, aí ver o velho e viúvo Porfírio dos Santos, debruçado no parapeito do alpendre, observando o movimento da rua.

Este Porfírio, que a minha avó dizia que era enjeitado, não era bem enjeitado, antes, era natural da Pederneira e filho de mãe solteira tendo vindo cedo para a Ataíja, certamente como criado.

Casou aos vinte anos de idade e, disse então o padre, era sapateiro. A mulher, a minha tia-bisavó Maria de Jesus, andava pelos trinta anos e estava viúva, com dois filhos de José Ribeiro, tio-avô da Amélia Ribeiro, um casamento que tinha durado apenas sete meses, tendo o segundo filho nascido já o pai era morto.

Estes rapazes, foram, como já contei noutro texto, dois dos muitos portugueses que emigraram para o Brasil, para a Amazónia, atrás do boom da borracha. Um deles, morreu ao fim de pouco tempo. O outro passou ao Rio de Janeiro onde constituiu família que, julgo, já vai em trinetos.

Juntos, o Porfírio e a Maria de Jesus tiveram uma filha que os mais velhos conheceram por Joaquina Porfíria, a qual casou com António Orelha, viveram na Rua das Seixeiras, numa casa agora também em ruínas, tiveram um rancho de filhos e deles existe hoje larga descendência.

Com o desaparecimento da Casa do Porfírio, como também recentemente da Casa da Maria Pequena, é cada vez menos o que sobra de uma Ataíja antiga, muito antiga.

É assim a vida.

Como cantava o Fausto Bordalo Dias:

atrás dos tempos vêm tempos
E outros tempos hão-de vir