domingo, 4 de junho de 2017

Nossa Senhora dos Enfermos


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“A romaria mais original da minha terra é a da Senhora dos Enfermos, na Ataíja.”

Assim começava M. Vieira Natividade (MVN) o capítulo dedicado às romarias, in O Povo da Minha Terra, Notas e Registos de Etnografia Alcobacense, Lisboa, 1917. (1), (2)
O ilustre estudioso alcobacense (nascido, aliás, no Casal do Rei, a escassas centenas de metros do local da romaria) descreve, depois, a festa como era naquele tempo e eu ainda conheci sem grandes alterações, em meados do Séc. XX.

Celebrada no Domingo de Pentecostes, cinquenta dias depois da Páscoa, a Romaria da Senhora dos Enfermos era uma verdadeira festa das colheitas, uma celebração agrícola com origens pré-cristãs, uma festa alegre, momento de estrear novas roupas, uma festa cronológica (MVN) que servia para marcar o tempo.
Apesar da invocação, não era exactamente um festejo mariano. Antes, pentecostal, com rituais que a aproximavam das festas do Espírito Santo. De notável, por comparação com as festas das demais aldeias da região, tinha o círio, abundância de fogaças e os favores da pequena burguesia alcobacence que nesse dia ia ver de perto os serranos, fazer pic-nics nos arvoredos que circundavam o arraial e, talvez, comprar no leilão alguma fogaça.(3)
Este costume, manteve-se, aliás, por muito tempo e, durante anos, a Banda do Mestre Ernesto era animador imprescindível do arraial.(4)
A grande quantidade de gente, alguns divertimentos que, como o jogo do frango, hoje seriam, simplesmente, proibidos pela sua barbaridade, o vinho que corria em abundância e os bailes, propiciavam frequentes desacatos. Por isso, a festa de Nossa Senhora dos Enfermos era, naquele tempo, a única com policiamento permanente.
Foi aí que me lembro de, pela primeira vez, ter visto de perto a GNR em acção de restabelecimento da ordem pública, utilizando como improvisada prisão a casa da eira do Chico Airoso.
Foi na Senhora dos Enfermos que tirei, acompanhado dos meus avós, fará agora sessenta anos, o meu primeiro retrato, no fotógrafo à la minuta, coisa que também só ali havia.(4)

Além de M. Vieira Natividade, também José Diogo Ribeiro, in Turquel Folclórico (1928), dedicou atenção a esta romaria, registando, designadamente, os seguintes versos que o círio dedicava à santa:

Ó Senhora dos Enfermos
Aqui vimos, aqui estemos
Pro ano, se formos vivos,
Ainda cá tornaremos.

Ó Senhora dos enfermos
Cá vos vimos visitar.
Pro ano, se formos vivos,
Havemos de cá tornar

E, o grande etno-musicólogo Michel Giacometti, (5) registou, pelo menos, duas peças musicais tocadas no arraial: uma Música de Arraial e um Fandango.

“Dança-se o fandango, única dança tradicional que se conserva como digno representante dos mais arcaicos batuques”, dizia MVN.
E eu, lembro-me de a minha tia Joaquina Lourença, já idosa, descrever com alegria como tinha dançado o fandango na Senhora dos Enfermos. Ela descalça e o pai equilibrando uma garrafa de vinho na cabeça.

A romaria da Senhora dos Enfermos “É a única que conserva notas que mais interessam a etnografia”, (MVN), o que significa que, a generalidade das romarias da região, já não eram, em 1917, como teriam sido antes.

A mudança radical das condições e estilos de vida nesta zona da borda da serra, onde a economia não é agora agrária, teve como resultado, eu diria que natural, a perda de importância desta romaria que, nos últimos anos, se não realizou.

Tal como, algures entre os Séc.s XVIII e XIX, São Sebastião, o patrono da Capela, perdeu devoção popular e foi substituído por Nossa Senhora dos Enfermos, (6) também estes povos, que já não são camponeses e, por isso, não festejam as colheitas, têm novas devoções.

 (Foto de "O Povo da Minha Terra")



ADENDA:


O texto acima foi publicado neste blog em 29-05-2012 e, em 23-06-2013, foi quase integralmente reproduzido no blog JERO, do jornalista alcobacense José Eduardo Oliveira.

(conf. http://jeroalcoa.blogspot.pt/2013/06/m-450-memorias-das-festas-da-regiao-de.html), que, no final, acrescentou a devida nota: "Relativamente à festa de Nossa Senhora dos Enfermos grande parte do texto reproduzido é da autoria de José Quitério e foi publicado em 29 de Maio de 2012 no seu blog "Ataíja de Cima".


Mas, não é essa a razão desta Adenda.
O facto é que hoje é dia 4-6-2017, Domingo de Pentecostes. 
Haverá, por isso na Ataíja de Baixo, alguma cerimónia em honra de Nossa Senhora dos Enfermos. 
O quê, não sabemos que estamos longe e o google é, a propósito, totalmente omisso. 
Como não o havia de ser quando a economia local é, se possível, ainda menos agrícola do que era há cinco anos e quando a própria Igreja Católica, cada vez mais mariana e menos trinitária, relegou o culto do Espírito Santo para o panteão das curiosidades e, estou convicto, hoje em dia uma boa parte dos fiéis nem sequer saberá o que é o Pentecostes?


Podemos, assim, dizer que sabemos porque e quando morreu a romaria de Nossa Senhora dos Enfermos da Ataíja de Baixo e, não se podendo dizer quando nasceu, pode afirmar-se com segurança que não era muito antiga, ao contrário do que se diz no site da Junta de Freguesia de Aljubarrota.
De facto, há várias devoções e festas na freguesia de que há notícia bem mais antiga. 


A devoção a Nossa Senhora dos Enfermos não surgiu aqui antes da segunda metade do século XVIII, já que ainda em 1758 (ver Nota (6)) não havia notícia da sua presença na Ataíja de Baixo e todos os autores que antes disso se referiram à aldeia apenas assinalam a existência de uma ermida dedicada a São Sebastião. Como é o caso, por exemplo, do Padre Cardoso que, no seu Dicionário Geográfico, Tomo I, de 1747 diz sobre a Ataíja de Baixo que "tem vinte e cinco vizinhos e uma Ermida de São Sebastião, pouco distante do povo".



O cartaz de 2015, mostra como já nesse ano nos encontrávamos 
bem longe das antigas festas em honra de N. Sª. dos Enfermos


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NOTAS:
(       (1)    Reeditado (fac-simile), em 2000, em Alcobaça, por Rebate, movimento de cidadania.
(     (2)    O livro contém numerosas ilustrações, de grande qualidade e interesse etnográfico, da autoria de Alberto Souza.
(      (3)    Fogaça, oferenda ao santo, em pagamento de promessa, no dia da festa anual. Em tempos idos, durante o Antigo Regime, fogaça era um imposto fixo que cada casa (fogo) pagava ao senhorio da terra.
(      (4)    Festas e Romarias do Concelho de Alcobaça, edição da Câmara Municipal de Alcobaça, 2005.
(      (5)    Michel Giacometti, Cancioneiro Popular Português, Círculo de Leitores, Lisboa, 1981.
(     (6)    Em 1758, nas respostas ao inquérito pombalino, as chamadas Memórias Paroquiais, o Cura de São Vicente não faz qualquer menção à Senhora dos Enfermos, dizendo apenas que na Ataíja de Baixo se festejava  São Sebastião.
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2 comentários:

  1. Este texto acaba (em 23-6-2013) de ser quase integralmente reproduzido no blog JERO, do jornalista alcobacense José Eduardo Oliveira.
    (Conf. http://jeroalcoa.blogspot.pt/2013/06/m-450-memorias-das-festas-da-regiao-de.html), tendo sido, a final, acrescentada a correspondente nota:
    "Relativamente à festa de Nossa Senhora dos Enfermos grande parte do texto reproduzido é da autoria de José Quitério e foi publicado em 29 de Maio de 2012 no seu blog "Ataíja de Cima""


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