Na velha casa onde vivi entre os meus três e os dez anos e,
depois disso, em largos verões durante toda a minha adolescência, havia dois
livros e diversos papéis impressos, recibos de pagamento de décimas, vários
exemplares, relativos a anos diversos, da Bula da Cruzada, raras cartas dos
filhos emigrados, alguns velhos exemplares de A Voz do Domingo que o meu avô comprava
religiosamente todos os domingos, à saída da missa em São Vicente e a sua caderneta
militar, tudo guardado numa das gavetas da pequena mesa da casa de fora. Havia
também uma buraca na parede da casa das talhas onde, sob uma espessa camada de
pó, encontrei um dia, entre outros papéis que já não recordo, uma escritura
pela qual o meu avô comprou, pela módica quantia de 4$200, o talho onde hoje
está a casa da minha prima Felismina.
Mas, voltemos aos livros
Os livros eram uma Cartilha Maternal, entretanto
desaparecida, sobre a qual se havia derramado um tinteiro e por isso com as
páginas muito manchadas de um azul desmaiado. Nessa cartilha aprendi a
reconhecer as letras e os números e a soletrar as primeiras sílabas.
Além deste, havia um outro livrinho que ainda guardo, pequenino de
apenas de 13,8x7,8 cm, já muito velho e sem lombada, as capas gastas presas
apenas pelas cordas da encadernação. Acaba abruptamente na página 194,
faltando-lhe, pelo menos, uma ou duas folhas.
Na folha de guarda apresenta algumas palavras manuscritas de
difícil leitura que me parece serem: Ataija / Aljubª (Aljubarrota?) / Aljubaª, (mais
uma palavra ilegível) / Comarca de Alcobaça.
O que, aliás, nem parece fazer ali muito sentido.
Trata-se da segunda impressão mais acrescentada, impressa em
Lisboa, na Régia Oficina Tipográfica, no ano de 1774, com licença da Real Mesa
Censória de
O CHRISTÃO ENFERMO, E
MORIBUNDO, CONFORMANDO-SE A JESUS
CHRISTO nas diferentes circumstancias da sua Paixão e, da sua Morte, Extrahido
e abreviado da Obra, que sobre este assumpto compoz na Lingua Francesa M.
PERONNET, Conego Regular, e Prior Curado de Santo Ambrosio de Melun. por Fr. FRANCISCO de jesus maria sarmento, Comissario Visitador
da Veneravel Ordem Terceira do Convento de N. Senhora de Jesus de Lisboa.
O título diz tudo e o livro é isso mesmo: um rol de curtos conselhos
ao cristão enfermo e moribundo e as extensas orações com que deve ele cristão, na companhia dos familiares e amigos, preparar-se para o próximo encontro com Deus. As orações estão escritas em tom
proclamatório, fazendo juz à fama de pregador do Fr. Francisco de Jesus Maria
Sarmento (como, por ex., a páginas 151: “Creio Senhor firmissimamente em tudo
quanto manda crer a Santa Igreja Católica Apostólica romana.; Fortalecei meu Jesus
a minha Fé, Espero Senhor salvar-me pelos vossos infinitos merecimentos …”).
Na página 155 tem início o OFFICIO DA AGONIA com a seguinte
introdução: “Tanto que o moribundo estiver agonizando se lhe porá na mão uma
vela acesa e estando todos de joelhos, dirá o Sacerdote (e em sua ausência,
qualquer Pessoa) as seguintes preces, ordenadas pela Igreja para esta ocasião”.
A partir daqui as orações estão em latim, começando no Kyrie eleison e
prosseguindo durante cerca de quarenta densas páginas.
O autor ou, melhor, o tradutor / adaptador foi uma conhecida
figura do seu tempo que, tendo entrado na Universidade de Coimbra aos 9 anos
foi bacharel em Direito Civil e Mestre em Artes aos 17 e decidiu, pouco depois,
iniciar a vida monástica na Ordem Terceira da Penitência (franciscanos) onde
foi pregador, visitador e geral provincial.
Famoso pregador, estão dele publicados diversos sermões e
várias outras obras, todas de carácter religioso, das quais o verso da folha de
capa do nosso livrinho anuncia seis que, “Vendem-se na Portaria do Convento de Nossa Senhora de Jesus de Lisboa”.
Curiosamente, uma aturada busca na internet não reporta qualquer
resultado para o livrinho que tenho em mãos e não consta de nenhuma das listas
das obras do Frade Sarmento aí disponíveis.[i]
Trata-se, este “Cristão Enfermo e Moribundo” de um belo
testemunho de como ainda era entendida a morte, naquele final do Século XVIII.
A morte era uma passagem à vida eterna, um momento crucial no qual se decidia a
eternidade do falecido. Era fundamental ter uma “boa morte” e para isso o moribundo
era assistido por familiares e amigos. Buscava-se “a "morte dôce", a
agonia conduzida por Deus, através do padre, e acompanhada pelos mais próximos
vivos, com orações e cânticos, como se tratasse de um processo e não de um
instante definitivo e restricto.”[ii]
Estavamos, no entanto, num tempo de mudança. Quando Fr.
Sarmento escrevia O Cristão Enfermo e Moribundo, já pela Europa circulavam
escritos sobre a incerteza dos sinais de morte e se criavam sociedades dedicadas
ao estudo da “animação suspensa”, a morte aparente, “para que se não enterre
gente viva, como frequentes vezes tem acontecido em muitas partes”, como a
literatura tão impressivamente deixou relatado.
Os avanços na ciência e na filosofia e as preocupações de
saúde pública, como as que levaram à proibição dos enterramentos nas igrejas e
à criação dos cemitérios públicos, iriam ter por objectivo “a descoberta de um
sinal de morte incontroverso”, o que tornou o corpo humano “no lugar
privilegiado da experiência médica” e, finalmente, permitiu ao “Estado tomar
posse de um aspecto complexo da vida humana, enfrentando a morte com
objectividade, … retirando o corpo em agonia da influência nefasta de
familiares e, também, das autoridades religiosas e entregando-o a quem se
considerava competente para a gestão do processo final, no espaço e no tempo da
incerteza entre a vida e a morte”[iii],[iv]
Como é que este curioso livrinho chegou à gaveta da mesa da
casa de fora dos meus avós, que é o aspecto que do ponto de vista da história
familiar e local, verdadeiramente me interessaria, isso vai ficar sem resposta.
[i] Não é
referido, por ex., em ASSISTÊNCIA AO DOENTE MORIBUNDO NO SÉCULO XVIII
Dissertação apresentada ao Instituto de Ciências da Saúde da Universidade
Católica Portuguesa para obtenção do grau de Mestre em Cuidados Paliativo,s por
Ana Filipa Ladeira Félix da Costa Sob orientação da Professora Doutora
Margarida Vieira, Abril de 2012,
[ii] As provas
do corpo, os sinais da morte nos séculos XVIII-XIX, Jorge Crespo (da Faculdade
de Ciências Sociais e Humanas - Universidade Nova de Lisboa). Pro-Posições, v.
14, n. 2 (41) - maio/ago. 2003, disponível in 41-dossie-crespoj.pdf
(unicamp.br), consultado em 02-03-2021.
[iii] Idem,
idem. (as citaçõe sentre aspas e sem outra indicação referem-se a este texto)
[iv] Uma
aproximação à evolução da ideia de morte ao longo dos tempos, na civilização ocidental
pode se vista em Emanuel Guerreiro, A Ideia de morte: do medo à libertação, in
Revista Diacrítica, vol. 28 n.º 2, Universidade do Minho, Braga 2014.
Disponível online em: A
Ideia de morte: do medo à libertação (mec.pt), consultado em 02-03-2021.
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