terça-feira, 30 de março de 2021

Um “marroquino” no Carrascal

 


No livro dos casamentos da freguesia de N. S. dos Prazeres de Aljubarrota surge-nos, em 21 de setembro de 1790, o casamento de António de Melo enjeitado do Hospital Real da Cidade de Marzagam.

Ora, Marzagam, Marzagão, há, pelo menos, três:

A freguesia de Marzagão, em Carrazeda de Ansiães;

Um município no Estado de Goiás, no Brasil, fundado no Século XX e actualmente com cerca de 2.500 habitantes;

Um distrito, no município de Rosário Oeste, no Estado do Mato Grosso, no Brasil, igualmente fundado no Século XX e actualmente com cerca de 1.400 habitantes;

Nenhuma destas teve alguma vez um Hospital Real pelo que não era a nenhuma delas que o padre se referia.

Mazagão é nome parecido, mas há também diversas. Vejamos:

Mazagão (Mazagaon), no século XVI uma ilha e hoje uma área da cidade de Bombaim, (Mumbai) na União Indiana, cujo nome alguns atribuem a colonos portugueses do século XVI. Também não foi esta a localidade em que o António de Melo foi enjeitado, desde logo porque Bombaim já não estava na posse dos portugueses desde 1661, quando passou ao domínio inglês incluída no dote de D. Catarina de Bragança que então casou com o rei de Inglaterra, Carlos II.

Mazagão, inicialmente chamada Nova Mazagão, hoje uma pequena povoação chamada Mazagão Velho[i] a trinta quilómetros da Mazagão Nova, actual sede do município, tudo na margem do Rio Amazonas, no Estado do Amapá, Brasil, foi fundada em 1770 por determinação do Marquês de Pombal que para aí quis forçar a emigração de todos os portugueses retirados da praça marroquina de Mazagão na sequência do abandono desta nos termos do Tratado de Paz celebrado com o Sultão de Marrocos.

Mazagão, hoje El Jadida, em Marrocos, foi uma praça militar na orla costeira atlântica, uma das mais importantes cidades fortificadas que os portugueses ali detiveram. Foi ocupada entre 1486 e 1769, tendo sido a última do norte de África a ser abandonada, depois de Ceuta perdida para Espanha na sequência da Guerra da Restauração, e de Tânger que, tal como Bombaim, passou para Inglaterra como parte do dote de D. Catarina de Bragança. [ii], [iii]

Tudo visto, o nosso António Mello, enjeitado do Hospital Real da Cidade de Marzagam, que em 21 de Setembro de 1791 casou em N. S. dos Prazeres de Aljubarrota com Teodora Machado, com quem foi morar na aldeia do Carrascal, só pode ter sido enjeitado na cidade marroquina de Mazagão, nos últimos anos da sua ocupação portuguesa.

Sendo de admitir que o António Mello teria na data do seu casamento uma idade próxima aos 30 anos (o que, talvez, o assento do seu óbito poderá melhor precisar) significa isso que terá nascido cerca de 1760 e era uma criança quando Mazagão foi abandonada pelos portugueses.

Mazagão era, ao tempo do provável nascimento do António Mello, uma cidade sitiada, alvo de frequentes ataques e cercos, tendo o mar como única porta de saída e dependendo da metrópole portuguesa como fonte de abastecimentos. Lá residiam, todos com as suas famílias, os militares, os burocratas, os comerciantes, os artesãos e os seus criados e escravos, perfazendo menos de duas mil pessoas.

O que terá levado ao seu enjeitamento?

Quem seriam os seus pais? Era filho de portugueses? De português(a) e escravo(a)? De português(a) e mouro(a)? O seu aspecto físico denunciava a sua progenitura?

Como chegou ao Carrascal?

Terá vindo bébé de Mazagão para Portugal e aqui sido dado a criar a uma ama, como acontecia aos enjeitados do Real Hospital de Lisboa, ou terá vindo com os demais portugueses que em 1769 aqui fizeram escala antes de serem reencaminhados para o Brasil onde, aliás, chegou apenas cerca de metade, umas 340 famílias, tendo os outros logrado ficar em Portugal?

 

A cidadela de Mazagão em meados do Séc. XVIII

 



[i] Quando andava em busca de elementos que me permitissem deslindar o local de enjeitamento do António de Mello encontrei um interessantíssimo relatório de trabalhos arqueológicos intitulado Uma Vila Pombalina na Amazônia - Mazagão Velho Em Uma Perspectiva Arqueológica, de Marcos Albuquerque e Veleda Lucena, Editora CRV, Curitiba, Brasil, 2020, que não só dá um amplo relato da fundação e vicissitudes da Mazagão amazónica, como constitui um límpido roteiro dos trabalhos arqueológicos ali realizados.

[ii] É extensa a bibliografia sobre a presença portuguesa em Marrocos muita dela acessível gratuitamente na internet mas, por toda, recomendo Os Portugueses em Marrocos, de António Dias Farinha, Edição Instituto Camões, Lisboa, 1999.

[iii] As fortificações portuguesas de Mazagão fazem parte, desde 2004, da lista do Património da humanidade da UNESCO.

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