terça-feira, 23 de março de 2021

A Estrada de D. Maria Pia e a Estalagem da Malaposta da Pedreira dos Carvalhos

 


No final do Séc. XVIII, mais precisamente em 1791, quando reinava a Sra. D. Maria I, foi elaborado o projecto da Estrada de Rio Maior a Leiria[i] que, por isso, ainda hoje é conhecida por Estrada de D. Maria Pia.

Aprovada por despacho, de 4 de junho de 1792, do Desembargador superintendente geral das Estradas, José Diogo de Mascarenhas Neto e construída nos anos seguintes, por ela circulou a partir de 1798 a carreira da Malaposta de Lisboa a Coimbra.

O referido despacho que se encontra integralmente transcrito por Ricardo Charters de Azevedo[ii], tal como, aliás, o projecto de “delineamento” da estrada, contém abundante informação sobre a região, incluindo os pontos de água usáveis pelos viajantes e animais de tiro e, por isso, absolutamente indispensáveis: “a maior distancia … he de três legoas desde os Candieiros athe aos Carvalhos[iii], mas quase no meio deste espaço há o poço do Muliano”.

As estalagens, ponto de alimentação e dormida ou descanso de viajantes e bestas e de muda das atrelagens, tinham de estar situadas, ao longo do percurso, a distâncias mais ou menos regulares que permitissem a substituição das parelhas, daí que o despacho não esqueça que “o sitio dos Candieiros necessita de huma estalage, e da mesma forma o dos Carvalhos”, (em 1791, conforme o Mapa, já existia uma estalagem na Cumeira de Cima[iv], no entanto, fora do caminho agora delineado).

Na caracterização da região a que, como justificação pela opção tomada, o despacho procede, o uso do solo também não foi esquecido, notando o desembargador que “a agricultura do terreno compreendido no mappa consiste em azeite, trigo, milho e vinha principalmente na porção que pertence aos Coutos”[v]

Num espaço escassamente povoado, tendo “cada legoa quadrada menos q 1800 habitantes” e muito pobre, onde os povos “respirão pobreza e rusticidade”, a estrada iria ainda, aos olhos do superintendente, contribuir para “o aumento da população e o progresso da agricultura”.

Aquando das Invasões francesas a Malaposta Lisboa – Coimbra já não existia, uma vez que face aos persistentes deficits de exploração o serviço foi extinto, tendo durado escassos seis anos, entre 1978 e 1804.

A partir daí e durante mais seis anos não conhecemos outras referências à estalagem dos Carvalhos, mas em Outubro de 1810, aquando da 3ª Invasão Francesa, a Estrada de D. Maria I foi um dos caminhos seguidos a partir de Leiria, pelos exércitos de Wellington, no seu recuo para as linhas de Torres, bem como pelos exércitos franceses de Massena que o perseguiam. De acordo com o General Koch[vi], em 7 de outubro Soult[vii] instalou-se nos Carvalhos[viii], Sainte-Croix bateu a região entre Molianos e Candeeiros e o General Montbrun instalou-se, com a artilharia, “à direita dos Molianos”.[ix]

Koch não menciona o estado da estrada, que ainda havia de ser bom, mas não podia dizer pior da zona: “É impossível ver uma região mais miseranda que a que vai de Carvalhos a Rio Maior; Candeeiros e Moliano não têm, sequer, o aspecto de lugarejos, e só apresentam meia dúzia de péssimas cabanas esparsas numa planície nua e árida onde não há cereais nem forragem nem água”.

Demos o devido desconto ao militar frustrado e cansado, mas lembremo-nos do que o Desembargador Mascarenhas Neto tinha dito dezoito anos antes.

Enquanto durou, a Malaposta teve na Estalagem dos Carvalhos um importante ponto de apoio, já que era aí que se cruzavam, era servida a ceia[x] e passavam a noite as carruagens vindas de Lisboa e de Coimbra, tudo conforme minuciosamente regulado nas Instruções para o estabelecimento das diligências entre Lisboa e Coimbra[xi].

A estalagem dos Candeeiros, referida no despacho mencionado do Desembargador Mascarenhas Neto, parece não ter chegado a ser construída, mas o lugar continuou a ter a importância resultante da existência de água no Poço dos Candieiros. Nos Molianos é também referida a existência de um poço, “de q uzam os habitantes daquele distrito”, o qual, no entanto, não é assinalado no Mappa de 1791.

Eventualmente relevantes para os viajantes deste troço do caminho terão sido as Vendas nele existentes que eram, segundo o Mappa, a Venda do Vintém, na Moita do Gavião, a Venda dos Candeeiros e a Venda da Laranja, perto da Sra. da Piedade (Molianos).

A falta de uso e de manutenção haviam de arrastar a Estalagem dos Carvalhos, para alguma degradação. Diz Godofredo Ferreira que “com a passagem do exército invasor do comando do General Massena, a casa ficou em ruína e quasi abandonada”. Na verdade, o exército francês não terá usado a estalagem por mais do que alguns dias, pelo que a ruína só poderia ter sido provocada na retirada e, para ser ruína, teria de ter sido incendiada. Mas, não há qualquer indício de isso ter acontecido. Pelo contrário, ela volta a ser arrendada logo em 1814, pelo que não estaria em muito mau estado nessa data.

O desvio da estrada real para as Caldas da Rainha e Alcobaça implicou o abandono da estrada de D. Maria Pia, a qual só veio a retomar importância no início dos anos 60 do Séc. XX, com a construção do actual IC2. Consequentemente, o serviço de diligências, quando é retomado em meados do Séc. XIX, já não passa pelas Pedreiras pelo que a Estalagem nunca voltou à sua função inicial e acabou por ser vendida em hasta pública cerca de 1856[xii]

Depois disso foi mercearia, taberna e habitação. No lugar das cavalariças, houve um lagar de azeite e na cozinha ainda há uns quarenta anos existia a grande chaminé.

Recentemente, sobre as velhas paredes, foi construída uma vivenda cujo primeiro andar assenta na cornija original de cantaria, em meia cana simples, que corre toda a fachada.

O traçado original da Estrada de D. Maria ainda hoje é facilmente reconhecido na quase totalidade do percurso entre a Moita do Gavião e as Pedreiras, constituindo, aliás, a rua principal de diversas localidades, nomeadamente, os Candeeiros, os Molianos e as Pedreiras.

Em Maio de 2020, era este o aspecto da Estalagem dos Carvalhos:


O portão da Estalagem tal como foi construído há mais de 220 anos

Vista Geral da Fachada

Uma habitação moderna construída sobre as velhas paredes



[i] Ver Ricardo Charters de Azevedo, A Estrada Rio Maior a Leiria em 1791, colecção Tempos Vidas, 15, Textiverso, Leiria, 2011.
[ii] Op.cit., págs. 55 e 56.
[iii] Ou Pedreira dos Carvalhos, que hoje conhecemos por Pedreiras.
[iv] Acima da Cumeira há um lugar chamado Albergaria. Poderiam, albergaria e estalagem, ser uma e a mesma coisa. No entanto, o Mapa assinala ambas.
[v] Aos Coutos da Alcobaça, obviamente.
[vi] General Koch, Memórias de Massena, Campanha de 1810 e 1811 em Portugal, Introdução de António Ventura, Livros Horizonte, Lisboa, 2007
[vii] General de Napoleão. Foi o comandante da 2ª Invasão de Portugal.
[viii] Certamente na Estalagem que, apenas seis anos após o fim do serviço da Malaposta, ainda havia de estar em relativo bom estado de uso e, comparativamente com quaisquer outras construções da região,  com as melhores condições para o alojamento do Estado-Maior da Brigada.
[ix] Em Janeiro de 1834, pouco mais de 23 anos depois destes acontecimentos, de novo a região entre Molianos e as Pedreiras foi objecto de ocupações militares. Ver: neste Blog A Guerra Civil (1832-1834) na nossa região, in Ataíja de Cima: A Guerra Civil (1832-1834) na nossa região (ataijadecima.blogspot.com)
[x] A ceia era a refeição da noite, a que agora chamamos jantar. O jantar era a refeição do meio do dia, aa que agora chamamos almoço, servida cerca das duas horas da tarde. Ainda era assim na aldeia da minha infância.
[xi] Godofredo Ferreira, A Mala-Posta em Portugal, Lisboa, 1946, citado em Armindo Vieira, Pequena Monografia das Pedreiras, Pedreiras (Porto de Mós), Maio 2007.
[xii] Armindo Vieira, op.cit., de onde também se retiraram as demais referências aos usos do local.

2 comentários:

  1. Eis a planta:
    https://postimg.cc/VJQhvTp2

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  2. Em breve farei desenho 3D, simulando como seria o edifício original, caro José Quitério.

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