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Um destes dias, em conversa com um familiar, talvez porque eu tenha exposto uma ideia que lhe pareceu pouco acertada, ripostou ele rispidamente: E se te dissessem que eras primo do Papoilo? Gostavas?
Desde então, a coisa tem andado a remoer na minha cabeça. Mas porque diabo não havia eu de querer ser primo do Zé Papoilo?
A verdade é que, a família a gente têm-na.
E, os factos são os seguintes:
Papoila era a alcunha da minha tia Maria, irmã mais velha do meu pai.
Quando ela nasceu, por volta de 1908, tinham passado seis anos sobre o casamento dos meus avós que já pensavam em adoptar mas, afinal, ainda tiveram tempo para gerar e criar seis filhos.
A alcunha foi-lhe, ao que parece, dada pelo próprio pai, talvez por, como a flor, ser “leve” (das ideias).
O Zé, esse, nasceu em 1937, ainda a minha tia era solteira, filho de João Fosmino (Felismino) que, aliás, se chamava João Coelho, vindo-lhe a alcunha do facto de ser filho de uma Felismina e, de quem me lembro como uma figura magra e curvada que, quando estava com um grão na asa como, aliás, era frequente, falava, semicerrando os olhos pequenos, numa espécie de francês entaramelado de que nada se entendia, a não ser um monsieur insistentemente repetido.
Essa tendência para beber, mais do que o seu corpo pequeno aguentava e, as dificuldades em manter um discurso articulado eram, pelos vistos, antigas. De tal modo que quando, para grande desespero da minha avó, a filha apareceu grávida, lamentava-se a mãe:
- Eu nem sei como é que ela o percebeu.
Ao que o meu avô terá respondido:
- Ora, apontou-lhe para a barriga e ela percebeu logo.
O Zé era amigo do cigarro e do seu copito e entornava-se com facilidade, o que o fazia, por vezes, chato e insistente. Uma cópia do pai. Os mesmos olhos pequenos, o mesmo corpo ligeiramente curvado e franzino, mal vestido e mal alimentado, carregando as sequelas de muitos maus tratos físicos, resultados da pobreza e do pouco juízo.
Teve uma vida aventurosa, fruto da sua fraca inteligência que o levava a ser pouco dado a compromissos e a vagabundear, às vezes por terras distantes, um pouco por todo o Portugal e, dizia, também por Espanha.
Apesar disso era, quando estava para aí virado, bom trabalhador e exímio cavador.
E, nem lhe faltava sentido de humor.
Um dia em que andava a cavar à jorna, durante o almoço que deglutia com vontade (era sua exigência que o pagamento incluísse sempre as refeições do estilo), diz-lhe o patrão:
-Ó Zé, comes bem!
A resposta foi rápida: - Pois como. Hei-de o ter!
Ou, certa vez em que alguém lhe chamou maluco: - Maluco és tu, que tens de trabalhar todos os dias.
O meu primo Zé Papoilo era um simples.
Tive conhecimento do seu falecimento por um telefonema que a minha mulher atendeu e me comunicou, acrescentando: Vais ao funeral? Claro, respondi-lhe. É meu primo.
E, no funeral do Zé Papoilo, estava uma boa parte da aldeia.
Isso, ainda agora, como quando escrevo estas linhas, me comove.
Afinal de contas, há muitas e diversas razões para se ir a um funeral: Porque somos amigos ou familiares do falecido. Porque somos amigos ou colegas de familiares do falecido. Porque o falecido era, de algum modo, importante e, ou, credor do nosso respeito ou admiração.
Em muitos casos, apenas, para ver e ser visto, ou porque pareceria mal não ir.
No caso do Zé Papoilo quase nenhuma dessas razões se aplicava. A sua desimportância, dispensaria quase todos de comparecer.
Quem foi ao funeral do Zé Papoilo, foi por uma única razão:
Porque quis.
Ou, talvez se tenham lembrado:
Bem-Aventurados os pobres de espírito, porque deles será o Reino dos Céus!
Parabéns pelo texto: uma boa e comevente recordação! Tembém eu me recordo ainda do Zé Papoilo, da sua simplicidade e da sua figura,já por si, bastante humorada,mas também respeitada... Apesar das constantes bebedeiras que saltavam à vista em qualquer festa da Ataíja, não passava ao lado de ninguém a sua grande bondade. E, apesar de com ele muito brincarem, nomeadamente nós as crianças da altura, ele era merecedor de todo o nosso respeito, pois sabíamos que tinha bom coração. A última imagem que tenho dele é sentado junto ao portão da sua irmã Felismina, com uma espécie de babete ao pescoço,e já quase sem falar, consequência, julgo eu, de uma tumor na garganta, que acabou por lhe tirar a vida... Paz à sua alma!
ResponderEliminarObrigado Fábio, pela atenção com que segue o blog.
ResponderEliminarO Zé Papoilo, o Quim Velho e outros, tiveram sorte, mau grado as suas desvantagens físicas e, ou, mentais.
Viveram num tempo e numa aldeia que era um ecossistema, onde todos tinham o seu lugar.
Obrigado José, por este momento de nostalgia, adorei o teu testo, pela forma como foi rematado.
ResponderEliminartambém eu sei como foi difícil combater e viver de forma, chamada pessoas com algumas limitações, como se todos nos , não tivesse mos mais ou menos alguma limitação!! Aquele abraço bem ajás.