quarta-feira, 30 de outubro de 2019

A Estrada do Lagar dos Frades em Meados do Século XX




A ligação de Aljubarrota à Ataíja de Cima fez-se, secularmente, por um caminho que saía de São Vicente, descia às Marmeleiras e aos Fiais de Deus, passando ao lado do cabeço do Murtal até cruzar a Rigueira que agora chamam de Ribeira do Mogo e, vinda dos lados das Pedreiras, percorre todo o vale até ao Poço Suão e a Chequeda, para aí ganhar águas permanentes e se transformar no rio Alcoa.

Na leve descida que vai do Murtal à Rigueira, rebentavam olhos de água nos tempos de chuva. Carros e bestas passavam a rigueira a vau e os peões, por uma estreita ponte, feita de uma única laje. Aí, na parede do que era o olival da ponte, então de José Ribeiro, ainda se via, em meados do século passado, o fuste de um antigo cruzeiro das Almas, local de descanso dos cortejos fúnebres.

Atravessada a Rigueira, abria-se ao lado esquerdo, uma inclinada ladeira, coberta de lages, a Azinha da Cucanha, que subia à Charneca da Várzea e às Figueirinhas e por onde os habitantes dos Casais de Baixo iam à missa a São Vicente.

O caminho para a Ataíja era o que hoje chamamos Rua da Ponte e dali continuava subindo pelas Tibarôas e Rossanas, até desembocar no Outeiro.

Foi assim durante séculos.  Mas, em 1897, o Governo de Hintze Ribeiro, que já três anos antes tinha classificado como estrada municipal o caminho entre a Lameira e os Casais de Santa Teresa, por Carvalhal, Ataíja de Baixo e Ataíja de Cima, mandou adicionar ao número de estradas municipais de 2ª classe, a ligação entre a Ataíja de Cima, o Cadoiço e Aljubarrota.

Pouco a pouco, o novo caminho foi-se impondo e, em data que desconheço passou a ser a estrada municipal n.º 553, o que julgo ser ainda a sua designação oficial e, no final dos anos de 1940, sofreu um grande impulso com a macadamização. Macadame de má qualidade, diga-se, porque uns dez anos depois já estava muito deteriorado, sobretudo nos pontos mais críticos: A ladeira grande, a chegar a Aljubarrota, a ladeira pequena, onde agora está a fábrica da Marmalcoa, a ladeira do Faca e a dos Caramelos e o Fundo da Igreja, eram tudo sítios onde do macadame já só havia vestígios entre as velhas lages que, de novo, brilhavam ao sol.

Só após o 25 de abril, então com o piso ainda muito mais degradado, pelo tempo e, nos últimos anos, pelo trânsito dos camiões de transporte dos blocos de Vidraço da Ataíja que, entretanto, começara a ser explorado é que, por iniciativa da população, como relatado no post Oalcatroamento da Estrada do Lagar dos Frades,  se vieram a iniciar as diligências que resultaram no alcatroamento da estrada.


Em meados do século XX, para quem vinha de Aljubarrota, a povoação da Ataíja de Cima começava a meio do pequeno planalto que encima a ladeira dos Caramelos. Aí residiam o Ti’ José Tomé e a sua mulher Maria Rosa ou Maria Carlos, conhecida por Maria “Metina”, por ser filha de uma Emilitina. A arruinada casa ainda lá está.

Seguia-se a casa recém-construída de Manuel Branco e Maria Florinda e, já na esquina com a falada Rua da Ponte, a casa de Luís Gomes que foi conhecido por Luís Francelino. A casa também ainda lá está e já falamos dela neste blog, num post com o título O Pátio

Na Rua da Ponte havia uma única casa que também ainda lá está, envolta num emaranhado de vegetação que mal a deixa ver. Aí moravam uma Alice, filha de Alfredo Ângelo da Silva e o seu marido Joaquim “Minderico”, oriundo do Casal do Rei.
Nessa casa funcionou o primeiro telefone que houve na Ataíja de Cima.


Voltando à Estrada do Lagar dos Frades, seguiam-se, já na subida, as casas de Tomé Ribeiro e de sua mulher Maria Jorge (Jorza, como dizíamos), onde agora está a casa de uma sua bisneta.
Em frente, era a casa, que também ainda lá está, de António Bernardino (António do Casal) e de sua mulher Joaquina “Guilhermina”, que aí viveram com os seus dez filhos. No pátio existe ainda uma notável cisterna com cobertura de duas águas.

E, estávamos no Outeiro.
Aí dominava e domina a casa alta onde moravam os irmãos Joaquim e António Matias (são duas casas independentes) e antes tinham morado os seus pais António Matias e Joaquina Carvalha, ela natural dos Casais de Santa Teresa (Casais de Baixo), ainda viva em meados do século. Ele, faleceu aquando da Pneumónica, tal como a sua filha Delfina.
A casa, essa, corre actualmente riscos de ruína, o que é pena pois se trata de uma das casas mais antigas (século XVII) da Ataíja de Cima e tem evidente valor arquitectónico.


Do outro lado da rua a casa que José Sabino (José Coelho) tinha erguido, cerca de 1944 para o seu casamento com Joaquina Rosalia e hoje é propriedade de um dos seus filhos.

Seguia-se uma extensão de cerca de 100 metros de terrenos agrícolas antes de entrarmos no núcleo central da aldeia, o “Lugar”.
Aí, tínhamos as casas de Alfredo Ângelo da Silva, onde está o supermercado e, em frente, uma casa baixa onde funcionava uma taberna que também tinha sido do Alfredo e, comprada pelo Sarrano (Manuel Rei de Carvalho, natural da Bezerra, também conhecido por Manuel Sarrano ou Manuel dos Ovos) foi objecto, logo no início dos anos cinquenta, de obras profundas que aumentaram a área de implantação e lhe acrescentaram um segundo piso, como, no essencial, ainda lá está.
Seguia-se a casa que agora é de Manuel Tomé (desta e da casa do Alfredo falei já no recente post A Rua de Nossa Senhora da Graça ) e, pelo norte e até ao Adro da Capela, tudo eram traseiras de casas da Rua de Nossa Senhora da Graça.

Pelo Sul seguia-se a casa, que ainda lá está, habitada, de Manuel Matias que aí vivia com a sua mulher Maria Cordeira, os filhos e a sogra, primitiva proprietária, uma Ana de alcunha a Riteira.
Pegada, a casa que a viúva Maria Coelho tinha acabado de construir ou reconstruir e agora está a ser objecto de obras que lhe hão-de propiciar uma nova vida.

Mais terreno agrícola e, no Adro, dentro de um pátio, a casa que ainda lá está e foi de João Cordeiro, de quem já falei várias vezes, por ter sido o doador do edifício onde, durante quarenta anos, funcionou a escola da aldeia e eu aprendi a ler e escrever.
Encostada, a casa construída por Joaquim d’Avó, onde ainda vive a sua viúva e, de seguida, a que foi do avô do Joaquim, o “Vigário Velho”, onde agora está a de sua bisneta Deolinda.
Encostada a esta, a casa de José Ribeiro, uma casa antiquíssima que vem pelo menos do século XVIII como o atesta uma inscrição na padieira. Uma casa felizmente ainda viva.

Seguia-se a casa alta, também de José Ribeiro, onde agora está a casa do seu neto Rafael. Mas, naquele tempo já não era propriamente uma casa. O rés-do- chão funcionava como palheiro e o primeiro andar só era usado no tempo da azeitona, servindo de quartel ao rancho que o José Ribeiro costumava contratar para o lado dos Montes. No telhado rodava o moinho de vento que produzia a electricidade para o funcionamento da primeira telefonia que houve na Ataíja de Cima e, julgo, a Amélia ainda conserva.

Colada, onde agora o Rafael tem a garagem, a pequeníssima casa onde António Dias, o Pato Marreco, por alguns também conhecido por Rabo-Loiro, morava com a sua mulher Antónia Rosa e uma extensa família.

Seguia-se, no sítio onde António Faustino Ribeiro, o Mosca, construiu a sua casa e ainda vive a sua viúva, uma casa que então já estava abandonada, a casa do Jorge.
Coisas da infância, lembro-me dela como se fosse hoje: a casa recuada, na sombra de uma arribana, de telha vã e chão de terra, que ocupava toda a frontaria. Ao centro, para ajudar a suportar o telhado, um pilar, um tronco de madeira junto ao qual havia um pequeno maroiço de pedras, onde despontavam silvas.

Vinha depois a casa de António Pereira, o Tita. Um personagem peculiar e um pouco louco que bebia demais, batia na mulher e nos filhos e passou algumas vezes pela prisão. A seguir à casa havia uma enorme figueira de onde ele lançava imprecações e gritos ameaçadores.
Eu tinha um medo terrível dele e dos seus gritos.
Na frente da casa havia um pequeno patim onde, às tantas, o Tita resolveu cravar um eucalipto para servir de mastro e, aos domingos, içava a bandeira nacional, a que prestava honras com um pau de vassoura a servir de espingarda, cerimónia  a que, algumas vezes, obrigou a mulher e os filhos a assistir perfilados. O Regedor quis pôr termo à cena, mas não se tendo provado qualquer desrespeito à bandeira, o juíz mandou o Tita em paz.

Em frente, estavam as casas, hoje a caminho da ruína, de José Salgueiro e Conceição Neto e, antes, uma mais antiga onde morava o irmão dela, José Henriques, também conhecido por José Neto e pela alcunha de O Carago e, então, ainda era solteiro.

De novo do lado sul, havia o pombal, como lhe chamava a minha avó.
Tratava-se da casa de dois pisos onde vivia a minha tia Pequena e que foi consumida por um incêndio. Era o pombal por ter sido construída, mas não acabada (tendo ficado de vãos vazios, como um pombal), por António da Graça, um meio irmão da minha avó que acabou por casar e ir viver nos Milagres e a quem, por isso, chamávamos o Ti’António dos Milagres.


Do outro lado da estrada, era a casa – que ainda está viva e habitada – de outro António Agostinho, também conhecido por António Cláudio e, mais vulgarmente, o Russo, que aí vivia com a sua mulher Delfina e uma extensa prole.
No pátio havia uma frondosa nogueira e na eira, que também ainda existe, estava um certo verão uma amoreia de cereal para ser debulhado.
O Padre, na missa, tinha anunciado que corria entre os coelhos uma doença infecciosa (era a mixomatose, vulgarmente chamada lepra dos coelhos) e que era preciso tomar medidas para evitar o alastramento da doença: Devia abrir-se uma cova no quintal, para enterrar os animais doentes que deviam ser mortos, regados com petróleo e queimados.
Um jovem José Russo quiz fazer tudo direitinho mas esqueceu-se de matar o coelho que, sentindo-se a arder, saltou da cova e foi a correr enfiar-se na amoreia que estava na eira, dando origem a um grande incêndio que foi debelado pela acção abnegada de quase toda a aldeia que, sem auxílio de bombeiros e com a escassa água a ser passada “à formiga”, em baldes, conseguiu confinar e controlar o fogo.


Finalmente, na Serrada, a casa que fora de Matias de Horta e Maria Botas, naquele tempo já desabitada e na posse de José Bernardo, por o Matias e a sua mulher terem, entretanto, sido internados no Asilo.

Tudo visto, por volta de 1950, moravam na Estrada do Lagar dos Frades mais de 100 pessoas.


A casa do Outeiro terá, actualmente, mais de trezentos anos

1 comentário:

  1. A Paula Cordeiro teve a amabilidade de aprtilhar o texto no Facebbok, como o seguinte comentário:

    "Que me desculpem a falta de modéstia no que toca à minha família e em particular ao “peso” do nome do meu avô José Ribeiro, na vida da aldeia da Ataija de Cima.
    Porém ao ler este texto fantástico do José Quitério não consigo deixar de destacar o enorme orgulho, de ler que a nossa casa de família é aqui mencionada mais uma vez, agora graças aos meus pais, António Carlos e Maria Amélia Cordeiro , com a palavra “viva”, porque orgulhosos da sua herança familiar tudo fazem para manter viva uma herança familiar que sabemos vir no mínimo do fim do século XVIII.
    Que eu e o meu irmão saibamos sempre honrar estas palavras, e que um dia os meus netos e bisnetos continuem a ler a história dos seus ascendentes com o mesmo orgulho que eu, pois a casa é não só nossa, mas as raízes da família Faustino Ribeiro e agora Cordeiro, e por isso “o lar” de muitos além daqueles que nela vivem.
    Obrigada José mais uma vez, por este texto.
    ❤️
    A casa da foto não é a minha, mas dada a sua beleza, adoraria vê-la recuperada e viva, tal como a minha. Algo que não duvido que venha a acontecer um dia, porque na Ataija as pessoas sabem respeitar o passado."
    Só posso agradecer a divulgação do blog e dizer que os comentários aos textos que vamos publicando são um poderoso incentivo para continuar o trabalho que nos propusemos.
    Obrigado.

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