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quinta-feira, 4 de novembro de 2021
Gente da Ataíja de Cima - António Baptista Vigário - o António Sabino
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terça-feira, 18 de maio de 2021
Na Infância da Minha Avó Maria Lourenço - A Madrasta
Nascida em 27 de Outubro de 1881, a minha avó Maria Lourenço
casou-se, em S. Vicente de Aljubarrota, em 20 de Janeiro de 1902, com Joaquim
Coelho que também assinava Joaquim Coelho Quitério, tinha ela 20 e ele 24 anos
de idade, ambos solteiros e jornaleiros.
Era filha de Joaquim da Graça, carpinteiro e de Maria
Lourenço ou Maria Felizarda, que depois de um
curto casamento de oito anos faleceu em 3 de Novembro de 1888, aos 32 anos, pouco mais de um mês depois do
filho(a?) mais novo, este falecido em 27 de Setembro anterior, com a idade de um ano e
dez dias e deixando órfãos a minha avó e um irmão, Joaquim como o pai, esse então com quatro anos de idade, nascido em 29 de Setembro de 1884.
O seu avô paterno, o soldado reformado
João Maria de Sousa Cláudio, de quem ela me havia de contar, setenta
anos depois, tantas histórias de batalhas com franceses e das destruições
cometidas pelos invasores cerca de setenta anos antes do seu nascimento, esse
avô faleceu em 1884, com a bonita idade de noventa e cinco anos. Não foi, pois,
a ele que a minha avó ouviu as histórias que me contava. A minha trisavó Maria
da Graça, companheira do soldado Cláudio durante largas décadas, essa, faleceu
em 1894 e bem podia ter contado à neta alguns passos da vida aventurosa do
marido e outras histórias que terá aprendido com os próprios pais e vizinhos
dessa geração, ela que, nascida em 1814, chegou a este mundo ainda estavam
fumegantes os destroços das Invasões Francesas.
O meu bisavô Joaquim da Graça, viúvo aos
trinta e cinco anos e com dois filhos tão pequenos não tinha maneira de levar a
vida e não era a sua mãe já velha e viúva que o podia ajudar. A solução era,
como foi, após menos de dois anos de viuvez, um segundo casamento.
É assim que a jovem Mariana Coelho, dos
Casais de Santa Teresa, ainda menor de vinte anos, se viu levada ao altar e, com
o necessário consentimento do pai, arranjou de uma assentada marido e duas crianças.
Havia, o casal, de lhes juntar mais outros sete filhos.
As pessoas tendem a ver com romantismo
estas histórias dos tempos antigos. Mas elas tinham muito pouco de romance, e
muito menos de romance cor-de-rosa.
A pobre da Mariana, que me esforço por
compreender e não julgar, não era, segundo os testemunhos que me chegaram,
pessoa exemplar. Ainda há poucos anos a minha amiga Morena, bisneta da Mariana,
me contava como, tendo ela própria ficado órfã de mãe antes dos sete anos de
idade e tornada desde então a mulher da casa, com dois irmãos mais novos para
cuidar, aprendeu cedo a levantar a cara e enfrentar os desafios que a vida lhe
vai lançando. Foi assim que, muito tempo após o falecimento da Mariana, sendo a
Morena ainda pré-adolescente, se viu numa discussão com a ti Joaquina Porfíria
que, irritada por a pequena não ceder numa questão sobre galinhas que não
atentaram nas extremas e foram debicar umas couves que não deviam, terminou a
discussão gritando alvoroçada:
- “És uma malcriada! És bisneta da Mariana
Raposa! Aquela punheta! ... Deus me perdoe …, por alma dela Pai Nosso!”
Não sei qual era a razão de tais azedumes,
mas talvez o facto de terem sido vizinhas e as relações de afinidade ajudassem (a
Joaquina Porfíria, era sobrinha do marido da Mariana e devia, por isso, de
acordo com o costume, chamar-lhe tia).
Certo,
é que a alcunha de Raposa se devia ao facto de sobre a Mariana impender a
acusação de ter roubado uma galinha.
Da minha avó recordo a tristeza com que me
contava como o seu irmão Joaquim, que diariamente era recordado nas orações da
noite que sempre antecediam a ida para a cama, tinha morrido, de desgosto e
saudades de casa, dizia ela, durante o serviço militar, sem ter tido tempo de
habitar a casa que construiu e hoje é a minha sala.
E recordo os lamentos e a amargura com que
sempre evocava os tempos em que teve de conviver com a madrasta, uma mulher que
segundo ela a não amava nem amava o marido e não sabia cozinhar.
O facto de o meu bisavô ser carpinteiro
não o livrava da pobreza, às vezes, quase miséria. Ali na borda da serra, que
ainda em meados do século XX eu conheci tão pobre, um oficial, fosse
carpinteiro, pedreiro, sapateiro ou de outro mister, só o era a tempo parcial,
à medida das necessidades dos pobres vizinhos.
Não havia oficina, mas apenas um limitado
conjunto de ferramentas e a obra fazia-se em casa do cliente, levando-se as
ferramentas numa alcofa ou nuns alforges e ia também, a maioria das vezes às
costas, o banco de carpinteiro, um meio tronco suportados por quatro pés
oblíquos, o lado plano virado para cima, em cujo extremo estava pregado um
pedaço de tábua com um recorte em V, onde se fixavam as peças a trabalhar.
Às vezes, o contrato com o cliente incluía
o almoço. Não foi o caso naquele dia em que, contava-me a minha avó, ela
criança foi encarregue pela madrasta de um trabalho típico das crianças, o de ir
levar o almoço ao pai, almoço que era também o seu.
Naquele dia, sentados a uma sombra, munidos
cada um de sua colher com que haviam de comer do mesmo tacho, o meu bisavô
desatou o lenço que amarrava o testo e provou o almoço, uma espécie de sopa de
serralhas cozidas em pouco azeite.
- Não tenho fome, disse ele tristemente. E
ficaram, ambos, abraçados e em silêncio, sem almoço.
segunda-feira, 26 de abril de 2021
Memórias da minha avó Maria Lourença e da sua amiga Maria Coelha
A minha avó Maria Lourenço, era analfabeta e, nascida e vivida na Ataíja de Cima, não tinha ido mais longe do que Alcobaça em dia de mercado, ou Fátima, em
peregrinação pedestre.
Também foi, pelo menos uma vez, de férias à Nazaré, acho eu
que na primeira semana de Setembro de 1954. Setembro era, naquele tempo, o
tempo de os camponeses irem à praia. Lembro-me disso porque tinha eu uns seis
anos e também fui e essas férias ficaram-me gravadas na memória, por ter então
assistido a uma série de notáveis e impressionantes episódios, como já vos
contei noutro lugar.
Não que o quisesse.
Que tinha muito tempo para ir para debaixo da terra, teimava
com os netos que queriam, à viva força, pô-la ao par do progresso. Mas, gostou
daquele comboio que ainda cheirava a tinta, quase não fazia barulho, não
produzia fumo e era rápido. Tão rápido que, chegados à estação de destino, a
exclamação foi: Já!?
Mas, de como me lembro realmente da minha avó, é nós ambos,
sentados frente a frente, dentro da chaminé da velha casa onde vivíamos, quando
na lareira, depois da ceia, crepitava um lume pequeno e rezávamos orações pelo
eterno descanso dos parentes falecidos, invocados um a um. Nunca nenhum era
esquecido e, de todos, tenho especialmente viva a lembrança do irmão Joaquim,
falecido jovem, de desgosto e saudade contava-me ela, durante o serviço
militar, ainda no tempo dos Reis e esta era apenas uma das muitas histórias que
ocupavam esses serões.
É isso. É, também assim que recordo a minha avó: andando.
Íamos à missa a Aljubarrota, saía-se ainda escuro que o
Padre Casimiro era homem duro e, penso agora, convicto de que a fé exige
sacrifício, gostava de dizer a missa bem cedo. Ou, talvez fosse apenas
conhecedor da difícil vida dos seus paroquianos e sabedor de que após a missa,
mesmo no dia do Senhor, havia muito para fazer.
Toda a aldeia ia à missa, deslocando-se em pequenos grupos
familiares ou de vizinhos, duas, três ou meia dúzia de pessoas, uma procissão
anárquica coleando pelas curvas da estrada, a caminho de S. Vicente.
Do nosso grupo fazia parte a ti’Maria Coelha que nos esperava na porta.
Quando penso nisto fico sempre um pouco intrigado, porque já
não sei se o grupo era só assim. Então, e a Joaquina, filha solteira e
coabitante da ti’Maria Coelha e a minha prima Isabel que a avó e a tia criavam,
não iam connosco? Se calhar não. De certeza que não. A ti’ Joaquina Coelha era
mulher desembaraçada e de andar firme e apressado e, católica militante, havia
de ter compromissos na Paroquial de que, aliás, havia de ser uma das zeladoras
e, nesse caso, teria ido mais cedo. Se assim era, a Isabel não deixaria de ser
arrastada pela tia.
E a tia Pequena e o marido e os filhos, meus primos também,
que necessariamente tinham de nos passar à porta para ir à missa? E a tia
Papoila e os dela que, tal e qual? E, os do tio Porfírio que a caminho de
Aljubarrota haviam também de passar na nossa porta?
Ali era mais, ala que se faz tarde, cada um trata do que é
seu mester e logo mais quando for o dia da festa então, juntamo-nos todos e
dançamos e cantamos e as mulheres riem e os homens bebem. Ou então hoje não é
dia de folguedos e,
E lá íamos os três, eu de garoto, elas de saia preta até aos
tornozelos, lenço preto como pertencia às viúvas, que hoje por ser Domingo ia
atado no alto da moleirinha, depois de as pontas darem uma volta na nuca,
abaixo do carrapito, deixando ver o lóbulo das orelhas onde pendiam velhas
arrecadas.
Sobre o lenço um chapéu de abas pequenas e reviradas para
cima e, sobre ele, cuidadosamente dobrado ou cobrindo os ombros, conforme o pedia
o tempo que fazia, o xaile.
Tudo preto como, repete-se, pertencia às viúvas.
Naquelas andanças com a minha avó eu, curioso, debruçava-me,
às vezes e apanhava coisas. É. Nunca fui caçador mas sempre me senti bem na
pele de recolector, juntar é, ainda, um gosto e nem vos digo da quantidade de
colecções que iniciei e nunca passaram de ajuntamentos.
Alexandre dos Cavacos, chamava-me a minha avó, mulher a quem
a vida escassa ensinara a preocupar-se apenas com o essencial e a juntar e a
guardar, apenas tudo o que era ou podia ser útil, como botões de roupa velha antes
de ir a rasgar, cortando-se em tiras que se enrolavam em bolas, para fazer
mantas de trapos.
Em casa da ti’Maria Coelha havia um tear, num quarto pequeno que estava junto à cozinha e tinha uma janela para o pátio, o sul e o sol que alumiava o trabalho da tecedeira.
Mas, que me lembre, nunca vi a ti’Maria Coelha tecer.
Poucos anos antes, em 1950, ainda ela tecia mantas e tapetes de trapos,
como já contei. Mas o que a seguir vos digo há-de ter-se passado na
segunda metade da década e, nesse tempo, já ela estava mais perto dos oitenta que dos setenta anos, em idade boa para a reforma e má para trabalhos que exigiam vista apurada e gestos
firmes. De resto, era a filha que agora, com genica, governava a casa. Para
trás tinham ficado 35 anos de viuvez. Anos difíceis, a sustentar a casa e criar os quatro filhos
que o marido lhe deixou, o mais novo com apenas um ano de idade, quando morreu
pela pneumónica, faz agora cem anos.
Na parede da casa de fora da ti´Maria Coelha estava pendurado
um retrato de um homem bem posto. Era o falecido marido e o retrato tinha tirado em New Beresford, no Massachussets, aquando da sua aventura americana.
De vez em quando, a ti'Maria Coelha olhava o retrato com desvelo:
- Ai o meu Francisquinho. Era tão bonitinho! ... raios o partissem, batia-me tanto!
terça-feira, 30 de março de 2021
Um “marroquino” no Carrascal
No livro dos casamentos da freguesia de N. S. dos Prazeres
de Aljubarrota surge-nos, em 21 de setembro de 1790, o casamento de António de Melo enjeitado do Hospital Real da Cidade
de Marzagam.
Ora, Marzagam, Marzagão, há, pelo menos, três:
A freguesia de Marzagão, em Carrazeda de
Ansiães;
Um município no Estado de Goiás, no Brasil,
fundado no Século XX e actualmente com cerca de 2.500 habitantes;
Um distrito, no município de Rosário Oeste,
no Estado do Mato Grosso, no Brasil, igualmente fundado no Século XX e
actualmente com cerca de 1.400 habitantes;
Nenhuma destas teve alguma vez um Hospital
Real pelo que não era a nenhuma delas que o padre se referia.
Mazagão é nome parecido, mas há também
diversas. Vejamos:
Mazagão (Mazagaon), no século XVI uma ilha
e hoje uma área da cidade de Bombaim, (Mumbai) na União Indiana, cujo nome
alguns atribuem a colonos portugueses do século XVI. Também não foi esta a
localidade em que o António de Melo foi enjeitado, desde logo porque Bombaim já
não estava na posse dos portugueses desde 1661, quando passou ao domínio inglês
incluída no dote de D. Catarina de Bragança que então casou com o rei de
Inglaterra, Carlos II.
Mazagão, inicialmente chamada Nova
Mazagão, hoje uma pequena povoação chamada Mazagão Velho[i] a trinta quilómetros da
Mazagão Nova, actual sede do município, tudo na margem do Rio Amazonas, no
Estado do Amapá, Brasil, foi fundada em 1770 por determinação do Marquês de
Pombal que para aí quis forçar a emigração de todos os portugueses retirados da
praça marroquina de Mazagão na sequência do abandono desta nos termos do Tratado
de Paz celebrado com o Sultão de Marrocos.
Mazagão, hoje El Jadida, em Marrocos, foi
uma praça militar na orla costeira atlântica, uma das mais importantes cidades
fortificadas que os portugueses ali detiveram. Foi ocupada entre 1486 e 1769,
tendo sido a última do norte de África a ser abandonada, depois de Ceuta
perdida para Espanha na sequência da Guerra da Restauração, e de Tânger que,
tal como Bombaim, passou para Inglaterra como parte do dote de D. Catarina de
Bragança. [ii], [iii]
Tudo visto, o nosso António Mello, enjeitado
do Hospital Real da Cidade de Marzagam, que em 21 de Setembro de 1791 casou em
N. S. dos Prazeres de Aljubarrota com Teodora Machado, com quem foi morar na
aldeia do Carrascal, só pode ter sido enjeitado na cidade marroquina de
Mazagão, nos últimos anos da sua ocupação portuguesa.
Sendo de admitir que o António Mello teria
na data do seu casamento uma idade próxima aos 30 anos (o que, talvez, o
assento do seu óbito poderá melhor precisar) significa isso que terá nascido
cerca de 1760 e era uma criança quando Mazagão foi abandonada pelos portugueses.
Mazagão era, ao tempo do provável
nascimento do António Mello, uma cidade sitiada, alvo de frequentes ataques e
cercos, tendo o mar como única porta de saída e dependendo da metrópole
portuguesa como fonte de abastecimentos. Lá residiam, todos com as suas
famílias, os militares, os burocratas, os comerciantes, os artesãos e os seus criados
e escravos, perfazendo menos de duas mil pessoas.
O que terá levado ao seu enjeitamento?
Quem seriam os seus pais? Era filho de portugueses?
De português(a) e escravo(a)? De português(a) e mouro(a)? O seu aspecto físico
denunciava a sua progenitura?
Como chegou ao Carrascal?
Terá vindo bébé de Mazagão para Portugal e
aqui sido dado a criar a uma ama, como acontecia aos enjeitados do Real
Hospital de Lisboa, ou terá vindo com os demais portugueses que em 1769 aqui
fizeram escala antes de serem reencaminhados para o Brasil onde, aliás, chegou
apenas cerca de metade, umas 340 famílias, tendo os outros logrado ficar em
Portugal?
[i] Quando
andava em busca de elementos que me permitissem deslindar o local de
enjeitamento do António de Mello encontrei um interessantíssimo relatório de
trabalhos arqueológicos intitulado Uma Vila Pombalina na Amazônia - Mazagão
Velho Em Uma Perspectiva Arqueológica, de Marcos Albuquerque e Veleda
Lucena, Editora CRV, Curitiba, Brasil, 2020, que não só dá um amplo relato da
fundação e vicissitudes da Mazagão amazónica, como constitui um límpido roteiro
dos trabalhos arqueológicos ali realizados.
[ii] É
extensa a bibliografia sobre a presença portuguesa em Marrocos muita dela
acessível gratuitamente na internet mas, por toda, recomendo Os Portugueses
em Marrocos, de António Dias Farinha, Edição Instituto Camões, Lisboa, 1999.
[iii] As
fortificações portuguesas de Mazagão fazem parte, desde 2004, da lista do
Património da humanidade da UNESCO.
terça-feira, 23 de março de 2021
A Estrada de D. Maria Pia e a Estalagem da Malaposta da Pedreira dos Carvalhos
No final do Séc. XVIII, mais precisamente em 1791, quando
reinava a Sra. D. Maria I, foi elaborado o projecto da Estrada de Rio Maior a
Leiria[i]
que, por isso, ainda hoje é conhecida por Estrada de D. Maria Pia.
Aprovada por despacho, de 4 de junho de 1792, do
Desembargador superintendente geral das Estradas, José Diogo de Mascarenhas
Neto e construída nos anos seguintes, por ela circulou a partir de 1798 a
carreira da Malaposta de Lisboa a Coimbra.
O referido despacho que se encontra integralmente transcrito
por Ricardo Charters de Azevedo[ii],
tal como, aliás, o projecto de “delineamento” da estrada, contém abundante
informação sobre a região, incluindo os pontos de água usáveis pelos viajantes
e animais de tiro e, por isso, absolutamente indispensáveis: “a maior distancia
… he de três legoas desde os Candieiros athe aos Carvalhos[iii],
mas quase no meio deste espaço há o poço do Muliano”.
As estalagens, ponto de alimentação e dormida ou descanso de viajantes e bestas e de muda das atrelagens, tinham de estar situadas, ao longo do percurso, a distâncias mais ou menos regulares que permitissem a substituição das parelhas, daí que o despacho não esqueça que “o sitio dos Candieiros necessita de huma estalage, e da mesma forma o dos Carvalhos”, (em 1791, conforme o Mapa, já existia uma estalagem na Cumeira de Cima[iv], no entanto, fora do caminho agora delineado).
Na caracterização da região a que, como justificação pela
opção tomada, o despacho procede, o uso do solo também não foi esquecido,
notando o desembargador que “a agricultura do terreno compreendido no mappa
consiste em azeite, trigo, milho e vinha principalmente na porção que pertence
aos Coutos”[v]
Num espaço escassamente povoado, tendo “cada legoa quadrada
menos q 1800 habitantes” e muito pobre, onde os povos “respirão pobreza e
rusticidade”, a estrada iria ainda, aos olhos do superintendente, contribuir
para “o aumento da população e o progresso da agricultura”.
Aquando das Invasões francesas a Malaposta Lisboa – Coimbra
já não existia, uma vez que face aos persistentes deficits de exploração o
serviço foi extinto, tendo durado escassos seis anos, entre 1978 e 1804.
A partir daí e durante mais seis anos não conhecemos outras
referências à estalagem dos Carvalhos, mas em Outubro de 1810, aquando da 3ª
Invasão Francesa, a Estrada de D. Maria I foi um dos caminhos seguidos a partir de Leiria, pelos
exércitos de Wellington, no seu recuo para as linhas de Torres, bem como pelos
exércitos franceses de Massena que o perseguiam. De acordo com o General Koch[vi],
em 7 de outubro Soult[vii]
instalou-se nos Carvalhos[viii], Sainte-Croix bateu a região entre Molianos e Candeeiros e o General Montbrun
instalou-se, com a artilharia, “à direita dos Molianos”.[ix]
Koch não menciona o estado da estrada, que ainda havia de
ser bom, mas não podia dizer pior da zona: “É impossível ver uma região mais
miseranda que a que vai de Carvalhos a Rio Maior; Candeeiros e Moliano não têm,
sequer, o aspecto de lugarejos, e só apresentam meia dúzia de péssimas cabanas
esparsas numa planície nua e árida onde não há cereais nem forragem nem água”.
Demos o devido desconto ao militar frustrado e cansado, mas
lembremo-nos do que o Desembargador Mascarenhas Neto tinha dito dezoito anos
antes.
Enquanto durou, a Malaposta teve na Estalagem dos Carvalhos
um importante ponto de apoio, já que era aí que se cruzavam, era servida a ceia[x]
e passavam a noite as carruagens vindas de Lisboa e de Coimbra, tudo conforme
minuciosamente regulado nas Instruções para o estabelecimento das diligências
entre Lisboa e Coimbra[xi].
A estalagem dos Candeeiros, referida no despacho mencionado
do Desembargador Mascarenhas Neto, parece não ter chegado a ser construída, mas
o lugar continuou a ter a importância resultante da existência de água no Poço
dos Candieiros. Nos Molianos é também referida a existência de um poço, “de q
uzam os habitantes daquele distrito”, o qual, no entanto, não é assinalado no
Mappa de 1791.
Eventualmente relevantes para os viajantes deste troço do
caminho terão sido as Vendas nele existentes que eram, segundo o Mappa, a Venda
do Vintém, na Moita do Gavião, a Venda dos Candeeiros e a Venda da Laranja,
perto da Sra. da Piedade (Molianos).
O desvio da estrada
real para as Caldas da Rainha e Alcobaça implicou o abandono da estrada de D.
Maria Pia, a qual só veio a retomar importância no início dos anos 60 do Séc.
XX, com a construção do actual IC2. Consequentemente, o serviço de diligências,
quando é retomado em meados do Séc. XIX, já não passa pelas Pedreiras pelo que
a Estalagem nunca voltou à sua função inicial e acabou por ser vendida em hasta
pública cerca de 1856[xii]
Depois disso foi
mercearia, taberna e habitação. No lugar das cavalariças, houve um lagar de
azeite e na cozinha ainda há uns quarenta anos existia a grande chaminé.
Recentemente, sobre
as velhas paredes, foi construída uma vivenda cujo primeiro andar assenta na
cornija original de cantaria, em meia cana simples, que corre toda a fachada.
O traçado original
da Estrada de D. Maria ainda hoje é facilmente reconhecido na quase totalidade
do percurso entre a Moita do Gavião e as Pedreiras, constituindo, aliás, a rua
principal de diversas localidades, nomeadamente, os Candeeiros, os Molianos e
as Pedreiras.
Em Maio de 2020, era este o aspecto da Estalagem dos Carvalhos:
[i] Ver
Ricardo Charters de Azevedo, A Estrada Rio Maior a Leiria em 1791, colecção
Tempos Vidas, 15, Textiverso, Leiria, 2011.
[ii] Op.cit.,
págs. 55 e 56.
[iii] Ou
Pedreira dos Carvalhos, que hoje conhecemos por Pedreiras.
[iv] Acima
da Cumeira há um lugar chamado Albergaria. Poderiam, albergaria e estalagem,
ser uma e a mesma coisa. No entanto, o Mapa assinala ambas.
[v] Aos
Coutos da Alcobaça, obviamente.
[vi] General
Koch, Memórias de Massena, Campanha de 1810 e 1811 em Portugal, Introdução de
António Ventura, Livros Horizonte, Lisboa, 2007
[vii]
General de Napoleão. Foi o comandante da 2ª Invasão de Portugal.
[viii]
Certamente na Estalagem que, apenas seis anos após o fim do serviço da Malaposta,
ainda havia de estar em relativo bom estado de uso e, comparativamente com
quaisquer outras construções da região, com as melhores condições para o alojamento do
Estado-Maior da Brigada.
[ix] Em Janeiro
de 1834, pouco mais de 23 anos depois destes acontecimentos, de novo a região
entre Molianos e as Pedreiras foi objecto de ocupações militares. Ver: neste
Blog A Guerra Civil (1832-1834) na nossa
região, in Ataíja
de Cima: A Guerra Civil (1832-1834) na nossa região (ataijadecima.blogspot.com)
[x] A ceia
era a refeição da noite, a que agora chamamos jantar. O jantar era a refeição
do meio do dia, aa que agora chamamos almoço, servida cerca das duas horas da
tarde. Ainda era assim na aldeia da minha infância.
[xi]
Godofredo Ferreira, A Mala-Posta em Portugal, Lisboa, 1946, citado em Armindo
Vieira, Pequena Monografia das Pedreiras, Pedreiras (Porto de Mós), Maio 2007.
[xii]
Armindo Vieira, op.cit., de onde também se retiraram as demais referências aos
usos do local.
sexta-feira, 12 de março de 2021
Casamentos em S. Vicente de Aljubarrota na 1ª Década do Século XIX
Dos livros de casamentos da Freguesia de S. Vicente de
Aljubarrota que se encontram digitalizados e actualmente disponíveis em digitarq.adlra.pt,[i]
o mais antigo é o Livro de Casamentos da Fregª de S. Vicente / Livro 1º / 1802
a 1826, cujo termo de abertura é o seguinte:
“Este livro é para se fazerem os assentos dos casamentos da
Fregª de S. Vicente de Aljubarrota deste Bispado de Leiria 12 de Janrº de 1803 Dr.
José Joaquim Duarte Amado”
Sem embargo, o primeiro dos assentos é relativo a um
casamento ocorrido em 7 de Dezembro de 1802. Vamos desprezar este e concentrarmo-nos
nos celebrados na década correspondente aos anos de 1803 a 1812.
1810 foi o ano em que, em Outubro, após a Batalha do Buçaco,
a região foi vítima da passagem sucessiva dos exércitos de Wellington que no
seu recuo para as linhas de Torres e a política de terra queimada, provocou
grandes devastações, e de Massena que, em perseguição daquele, esteve acampado
na Região[ii]
e, daí até à sua retirada em abril de 1811, ficaram estacionadas em frente das
linhas de Torres e na região entre Rio Maior e Santarém e fizeram sucessivas
incursões na região para pilhagem de alimentos e forragens. No entanto, não parece
poder afirmar-se uma relação directa entre o diminuto número de casamentos
havidos nesse ano em S. Vicente e esses factos, porquanto, tratando-se embora
do ano com menor número de casamento (3) a verdade é que um deles foi celebrado
em novembro tendo os outros dois tido lugar em fevereiro e março anteriores,
mas nenhum nos restantes meses, nem janeiro ou setembro, dois dos meses normalmente
com mais casamentos.
Olhando para a distribuição dos casamentos ao longo do ano,
tem-se uma confirmação do ditado popular que postula que “boda molhada é boda
abençoada”. De facto, a distribuição do somatório dos casamentos do período
pelos meses do ano, dá o seguinte resultado:
Distribuição
dos casamentos pelos meses do ano |
|||||||||||
jan |
fev |
mar |
abr |
mai |
jun |
jul |
ago |
set |
out |
nov |
dez |
8 |
4 |
1 |
3 |
1 |
1 |
1 |
3 |
14 |
6 |
22 |
4 |
EEm
flagrante contraste com a actualidade, quando os meses de Verão são os preferidos
para as festas de casamento.
Neste período paroquiaram S. Vicente de Aljubarrota 3 padres:
o Cura Tomás de Aquino da Costa, que o fazia desde 1793 e prolongou o seu
magistério até novembro de 1810, quando foi sucedido pelo Cura José Maria de
Sequeira que assinou o seu primeiro casamento em abril de 1811, mantendo-se até
abril de 1812, seguindo-se o Cura José Joaquim Leitão que assina o seu primeiro
assento de casamento em junho de 1812. Dos 2 primeiros os assentos que agora estudamos
não nos fornecem outros elementos. Do padre José Joaquim Leitão, ficamos a
saber que em janeiro de 1803 já era padre coadjutor da freguesia de S. Vicente
e que em 1805 era igualmente coadjutor mas, agora, de Nossa Senhora dos Prazeres,
da mesma Vila de Aljubarrota, cargo que também desempenhava em 1809. Não deixa
de ser curioso este trânsito do padre entre as duas freguesias de Aljubarrota, sabendo
nós que o curato de S. Vicente era da apresentação das Colegiadas de Porto de
Mós[iii],
enquanto o Vigário de Nossa Senhora dos Prazeres era apresentado pelo Abade
Bernardo de Alcobaça[iv].
Os assentos mencionam, seja como oficiantes, seja como
testemunhas, além dos curas Tomás de Aquino da Costa e José Maria de Sequeira,
mais os seguintes padres, todos eles, como havemos de ver em outros estudos,
naturais do concelho de Aljubarrota.
- José Joaquim Leitão, ou José Leitão, ou Joaquim Leitão
que, como vemos, foi Coadjutor de S. Vicente e de Nossa Senhora dos Prazeres e,
finalmente, Cura de S. Vicente.
- João Gomes, da Ataíja de Cima.
- Joaquim de Sousa, natural da Ataíja de Cima que, sabemo-lo, foi Cura da
Paróquia de Santo António do Arrimal e faleceu em 4-2-1827, sendo sepultado na
Capela da Nossa Senhora da Graça da Ataíja de Cima.[v]
- José Coelho, do Casal da Eva.
- Manuel Coelho de Sousa, ou Manuel Coelho, ou Manuel de Sousa, natural dos
Casais de Santa Teresa, cujo testamento já estudámos .[vi]
- Rufino da Fonseca, que em Dezembro de 1808 é vigário encomendado de Nossa
Senhora dos Prazeres
- João Pedro da Cunha, prior de S. Pedro de Porto de Mós
- António José Gomes Botelho, certamente familiar dos capitães Manuel Pedro (Manuel
Pedro Gomes Botelho) e Gregório José Gomes Botelho.
- Reverendo Dr. José de Sousa, da Vila.
E, outras pessoas importantes:
- Alferes José Tavares Amado ou José Tavares
- Capitão José Joaquim Tavares Amado, ou José Tavares Amado. Trata-se,
certamente, da mesma pessoa que em 1807 era Alferes e em 1809 já era Capitão.
- Alferes António da Fonseca, natural de Leiria casado com Josefa Clara Xavier
do Couto, natural de Famalicão, mas residentes em Aljubarrota de onde era
natural a filha Rita Rosa da Fonseca que casou com o viúvo Francisco Viegas
Machado que já encontrámos como proprietário de escravos[vii].
- Capitão Bartolomeu José Rodrigues Carreira, ou Bartolomeu Rodrigues Carreira,
casado com D. Maria Doroteia Ângela de Sequeira, pais de Fortunata Maurício de
Sequeira que casou com Joaquim Bernardo, filho do Dr. Silvestre Triaga de
Mendonça
- Capitão Manuel Pedro Gomes Botelho, ou Manuel Pedro
- Dr. Francisco Correia Triaga de Mendonça, ou Francisco Correia, ou Francisco
Correia Triga, ou Francisco Correia de Mendonça.
- Dr. Silvestre Triaga de Mendonça.
Os casamentos eram por regra celebrados na Igreja Paroquial de
S. Vicente. No entanto, um deles teve lugar na Paroquial de N. S. dos Prazeres
e outros em capelas das aldeias da freguesia: cinco em N. S. da Graça, da
Ataíja de Cima, três em Santa Teresa, dos Casais de Santa Teresa e um em S.
Sebastião, na Ataíja de Baixo. Parece não haver nenhuma razão especial para o
facto que, acreditamos, se deverá à vontade dos noivos.
Os párocos raramente assinalaram o estado dos noivos. Onde
não há outra indicação, presume-se que eram solteiros, o que, expressamente, só
é dito em 10 casos no que diz respeito aos noivos e 11 no que respeita às
noivas. Como viúvos, geralmente com identificação do cônjuge falecido, são
indicados 13 noivos (19,1%) e 5 noivas (7,3%), sendo que num único caso ambos
são viúvos.
Onde foram viver os novos casais?
O filho do Dr. Triaga e a filha do Capitão Bartolomeu, foram
assistir para a Quinta de S. Paio, Freguesia de Santa
Maria da Vila de Porto de Mós.
De quatro não se indica o lugar do novo
lar e, dos que saíram da freguesia, seis fixaram-se em diferentes lugares da
outra freguesia de Aljubarrota, N. S. dos Prazeres, cinco foram para outras
freguesias que hoje fazem parte do concelho de Alcobaça (Alpedriz, Cela, Évora,
Maiorga e S. Martinho do Porto), um ficou-se na fronteira da freguesia, em
Cumeira de Cima, já na freguesia do Juncal e Concelho de Porto de mós. Apenas
um casal foi viver mais longe, em Abitureiras (a meio caminho entre Rio Maior e
Santarém).
Os outros cinquenta ficaram na freguesia,
em regra na aldeia de onde eram, ou um deles, originários. Ou seja, 73,5% dos
novos casais ficaram a residir na freguesia e mais 8,8% na freguesia de Nossa
Senhora dos Prazeres. O que significa que, pelo menos 82,3% desses novos casais
se fixou na área da actual freguesia de Aljubarrota, distribuídos pelos
diversos lugares, como segue:
|
Lugares da
freguesia onde assentaram os novos casais |
|||||
(N. S. Prazeres) |
Ataíja de Baixo |
Ataija de Cima |
Cadoiço |
Casais S. Teresa |
Cumeira de Baixo |
Vila (S. Vicente) |
6 |
12 |
12 |
6 |
11 |
3 |
6 |
Independentemente do crescimento que tais
lugares tenham ou não sofrido entre 1758 e 1802, assunto sobre o qual, de
momento, não possuímos informação, o número de novos casais nesta 1ª década de
1800 representará, certamente, um importante acréscimo ao respectivo número de
fogos e, por isso, ao crescimento populacional futuro.
Infelizmente, os assentos umas vezes são
omissos e outras são pouco claros, não sendo fácil distinguir quem mora aonde,
ou quem é natural de onde. Assim, não havendo condições para quantificar com
rigor a frequência com que surge (ou devia surgir) cada uma das localidades
mencionadas, o que seria interessante para analisar a mobilidade geográfica da
população de Aljubarrota neste início do século XIX, diremos apenas que as povoações
mais referidas são, naturalmente, aquelas da freguesia que mais beneficiaram da
nupcialidade mas, também, povoações de freguesias vizinhas, desde logo Nossa
Senhora dos Prazeres e, nesta, o Carvalhal, a sua maior aldeia mas, também, o
Juncal e a Maiorga, ou a Cela. As referências à cidade de Lisboa (3), dizem respeito
à naturalidade da mãe de um dos nubentes e, também, ao facto de dois deles
serem expostos do “Real Hospital de Cidade de Lisboa”. Referências a
localidades mais afastadas, são pontuais e dizem respeito a uma única pessoa
por localidade.
Ainda assim, vale a pena elencar as sessenta povoações, casais ou lugares mencionados nestes assentos porque isso, a par das já referidas localidades de assento dos novos casais, nos dará apesar de tudo, alguma noção da referida mobilidade geográfica da população deste pequeno concelho rural. No quadro abaixo inclui-se o nome da povoação ou lugar, a freguesia respectiva e, se julgado necessário para melhor identificação, o município actual.
Lista das povoações
mencionadas nos assentos |
|||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Chãos, SV Chequeda, NSP |
|
Ou seja, tudo se passa numa área muito
restrita centrada na freguesia e alargando-se, cada vez mais tenuemente, ao
então concelho e aos concelhos imediatamente vizinhos. Fora isso, apenas uma ou
outra pessoa justifica as raras referências a localidades mais distantes.
[i]
Consultado em 12.03.2021
[ii] O
General Koch, nas suas Memórias de Massena, Livros Horizonte, Lisboa, 22007, refere-se
expressamente a tropas estacionadas em Calvaria, Alcobaça, Pedreiras, Molianos
e Candeeiros
[iii] “ O parocho
desta igreja é cura annual de alternativa; aprezentação das colegiadas de Sam Pedro
e Santa Maria da villa de Porto de Moz”, conf. Memórias Paroquiais (1758).
Volume III, João Cosme e José Varandas, Caleidoscópio e CHUL, Lisboa, 2011.
[iv] Conf. Loc.
Cit.
[v] Ver Ordenação
Sacerdotal de Fábio Bernardino, in Ataíja
de Cima: Ordenação Sacerdotal de Fábio Bernardino (ataijadecima.blogspot.com),
consultado em 12.03.2021
[vi] Ver O
testamento do Padre Manoel de Souza, in Ataíja
de Cima: O testamento do Padre Manoel de Souza (ataijadecima.blogspot.com),
consultado em 12.03.2021
[vii] Ver
Escravos em Aljubarrota, in Ataíja de Cima:
Escravos em Aljubarrota (ataijadecima.blogspot.com), consultado em
12.03.2021