Se as mais das vezes, conhecer com rigor a origem dos nomes dos lugares é conhecer as condições em que foram descobertos, conquistados, politicamente reivindicados ou povoados, a verdade é que, na generalidade do território português e europeu, as vicissitudes históricas foram tantas que, frequentemente, é de todo impossível saber com rigor de onde vêm os nomes (1).
Ao contrário, nos novos mundos que emergiram após as viagens marítimas transoceânicas é frequentemente muito fácil saber rigorosamente a origem dos nomes dos lugares (a origem dos nomes com que os europeus crismaram (2) esses lugares que, naturalmente, já possuíam um nome indígena (3). De facto, Frei Fortunato de São Boaventura não deixa de ter razão quando sustenta que não há lugar (ermo ou baldio, diz ele) a que os povos não tenham dado algum nome (4).
No novo mundo, os nomes das terras são, muitas vezes, mera repetição do nome da localidade ou região de origem dos colonizadores: Orleans em França e York na Grã-Bretanha deram, nos EUA, New Orleans (na Luisiana. Chamava-se Luís o rei francês) e New York (5), Lisboa e Lamego em Portugal, Nova Lisboa em Angola e Nova Lamego na Guiné, Montevideo no norte de Espanha (6), ou a capital do Uruguai, e Oeiras, Alenquer, Bragança, Santarém, Barcelos, Óbidos, Crato, Soure (7), Alcobaça e tantas outras no Brasil.
Nos EUA, um país do tamanho de um continente, a necessidade de um serviço de correios minimamente eficaz era de dimensão idêntica à dificuldade de o pôr a funcionar. Quando foi criado o lugar de responsável federal pelo serviço de correio, logo se revelou o maior problema que era o de os lugares não terem um nome “oficial”. Foi, pois, o responsável dos correios que baptizou milhares de lugares. À medida que o comboio avançou para oeste, problema semelhante existia e foi resolvido das formas mais imaginativas. Até os passageiros mais ilustres tiveram o direito a baptizar lugares, antes desertos, onde se ergueram estações e apeadeiros. (8)
No caso da Ataíja, um importante problema a resolver para determinar a origem de um tal nome advém do facto de Manuel Vieira Natividade (MVN), sustentar no seu “O Mosteiro de Alcobaça – (Notas Históricas)”, publicado em 1885, que:
“Athaija – corrupção do antigo vocábulo – atà-hij – até ahi. Era o ponto de demarcação do grande olival dos frades, hoje propriedade do sr. dr. Francisco Baptista Pereira Zagalo, illustre medico d'Alcobaça.”
Com todo o devido respeito pela enorme figura que foi MVN - cuja actividade e importância científica foi largamente reconhecida no seu tempo e é, ainda hoje, absolutamente incontornável quando se pretende estudar Alcobaça e a sua região – é evidente que, neste caso, não pode ter razão.
Ora esse é um problema. Parecendo evidente que MVN não pode ter razão, é necessário demonstrar essa sem razão.
Vejamos:
A nominação das pessoas e das coisas é condição necessária para o seu (re)conhecimento e até, para a sua existência. Num certo sentido, o que não tem nome não existe (9).
Ora, se assim é, então os frades sempre teriam de dar um nome ao lugar onde plantaram as oliveiras antes de lá as plantarem. O nome Ataíja é anterior ao olival dos frades (10).
Aliás, Ataíja situa-se no limite norte dos coutos e, se há necessidade da dar nome aos lugares é aos lugares de fronteira (11). Se não, como saberiam os frades e os seus vizinhos onde começavam e acabavam os terrenos de uns e de outros?
Não ponderou MVN estes argumentos de mero senso comum? Parece que não mas não deixa de ser estranho, como é estranho que não tenha dado importância à carta de doação que D. Afonso Henriques fez a São Bernardo (12).
Tal como se encontra transcrita, em português moderno, no “Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça – Roteiro”, (1987) de Maria Augusta Lage Pablo da Trindade Ferreira (13) refere-se a carta de doação dos coutos de Alcobaça (14) a uma herdade ...sub monte Taixa...
Taixa, ta-í-xa, Ataíja. Soa bem. O monte que hoje conhecemos por serra dos Candeeiros chamar-se-ía, então, monte Taixa e dele Ataíja teria tomado o nome. Isto já parece fazer muito sentido, até porque, também é muito natural que se nominem primeiro os acidentes geográficos e só depois os povoamentos que, eventualmente, venham a surgir junto deles. (15)
A referida carta de doação menciona os nomes dos seguintes lugares (16), pelos quais se traçava a fronteira dos coutos doados: Leiria, Óbidos, monte Taixa, Alcobaça, foz de Salir, água do Furadouro, garganta de Olmos, cimalhas de Aljubarrota, Andamo (17), água de Coz, Melua (18), mata de Patayas, (19) Pederneira e Muel.
No caso dos rios de Alcobaça (20) , é sem dúvida de origem árabe o nome Alcoa, o Côa, como são de origem árabe a generalidade dos substantivos portugueses começados por al que, como sabemos, é o artigo definido árabe.
No caso do nome Ataíja não é só surpreendente que MVN tenha optado por uma hipótese claramente contestável. É, também, surpreendente que o topónimo Ataíja tenha sido ignorado por alguns dos maiores cultores portugueses do árabe. Conheci bem o Dr. José Pedro Machado arabista e dicionarista insigne que era subdirector da Escola Industrial de Afonso Domingues no tempo em que lá frequentei o curso industrial de montador electricista. Tive oportunidade de conviver com ele nos últimos anos da sua vida e cheguei a colocar-lhe a questão de, no seu dicionário de palavras portuguesas de origem árabe não haver qualquer referência a Ataíja, infelizmente, a sua avançada idade (então próxima dos noventa anos) já lhe não permitiu tempo para me esclarecer a dúvida. Do mesmo modo, a amizade do Sr. Professor Doutor António Manuel Dias Farinha, Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, especialista em língua e cultura árabes, não me permitiu, até agora, grandes avanços nesta matéria.
Conheço, apenas, um especialista que expressamente se refere a Ataíja como topónimo de origem árabe: Frei João de Sousa (21) que publicou em 1789 a sua obra: Vestigios da lingua arabica em Portugal ou Lexicon ethymologico de palavras e nomes portuguezes que teem origem arabica, composto por ordem da Academia Real de Lisboa, da qual foi publicada, no ano de 1830, uma 2.ª edição com adições e correcções de Frei João de Santo António Moura. Esta segunda edição foi reeditada em fax símile, em 2004, a partir de um original existente na Biblioteca da Província Portuguesa da Ordem Franciscana, pela Livraria Alcalá, em parceria com o Centro Cultural Franciscano de Lisboa. Em 1981 tinha sido feita uma reedição, também fax simile, da primeira edição de 1789, da responsabilidade de A. Farinha de Carvalho que nela incluiu um prefácio de sua autoria.
No que respeita a Ataíja, não há diferenças entre ambas as edições. Diz-se aí, a propósito:
“ATAIJA (caracteres árabes, v. Nota (28) Attaija. Saõ dous lugares na Província da Estremadura. Bispado de Leiria, termo de Thomar. Significa a coroada. Deriva-se do verbo (caracteres árabes, v. Nota (28) tauaja coroar. Chorograph. Portug.”
Ora, se olhar-mos a serra dos candeeiros, verificamos que, frente às Ataíjas e aos Casais de Santa Teresa, se situa a parte mais elevada da serra que ali se desenha numa sequência de três montes arredondados. A coroada da serra.
Também no foral de Leiria, do mesmo D. Afonso Henriques, há uma referência a Ataíja:
“…Aprouve-me também a mim, rei Afonso, e firmemente resolvi dar limites ao mesmo castelo de Leiria, num circuito, a começar no mar, da parte ocidental, e, da parte meridional pela veia de Alcobaça e a chegar à fonte de Soão. E daqui, para o sul, passa pela Ataíja…” (22)
Pedro Gomes Barbosa, em “A Estação Arqueológica da Parreitas (Bárrio, Alcobaça) – Enquadramento Geral” (23), subscreve a tese da origem árabe do nome Ataíja, nos seguintes termos:
“Ataíja é o nome que até nós chegou por evolução fonética. Na carta de doação de Afonso Henriques é designada por Taixa, a que retiraram, na sua passagem para o latim do documento, e por alguém que compreenderia o árabe, o artigo “al-“, que frente ao “t” (como frente ao “s” e ao “z”) toma a consoante que lhe segue”.
Temos, assim, duas fontes académicas a validar a origem árabe do nome Ataíja.
Significa isto que Ataíja já existia, como povoação, no tempo da ocupação árabe do território, ou no tempo de D. Afonso Henriques? Não necessariamente e, muito provavelmente, não. (24, 25) O que se me afigura dever ser tomado por certo é que as Ataíjas receberam o nome da serra que lhes é fronteira e hoje chamamos de Serra dos Candeeiros, (o que, por outro lado, nos leva a um novo problema que é o de saber de onde vem este nome Candeeiros).(26)
Curiosidades a propósito da palavra ataíja:
Nas minhas buscas na internet encontrei:
Banática - é uma pequena localidade e muito antigo porto da margem sul do Tejo, no concelho de Almada (27). Segundo os especialistas em toponímia o seu nome deriva do árabe ben ataija que significará paço do príncipe.
Ataíja é, um apelido (melhor dito, um nome de família ou de tribo ou de clã), actual árabe. Designadamente, o antigo ministro e representante do Qatar na OPEP, de que já foi, aliás, secretário-geral é um tal Ataíja (Abdulla bin Hamads al-Ataija).
Na Sérvia há um capitão de nome Rezu Ataíja.
Na Australia, há uma menina de nome próprio Ataíja.
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NOTAS:
(1) Na Wikipédia, encontrei um forum de discussão sobre palavras de origem árabe onde se questionava que Silves fosse uma dessas palavras, já que a origem do nome seria a “provável cidade pré-romana de Cilpis”. Ora, é certo e largamente documentado que a Silves actual é a árabe Shelbi, ainda hoje apelido comum na Tunísia (o nosso guia num circuito na Tunísia chamava-se Buzid Shelbi – Buzid Silves, como em português há Braga, Coimbra, Caminha, Covilhã, Alenquer, Viseu, Bragança, Miranda, Lisboa e mais uma infinidade de apelidos que são topónimos, referência ao lugar de origem da pessoa ou da sua família). Até o vulgaríssimo Sousa será carregado nos respectivos BI's pelos descendentes de um ou, mais provavelmente, vários originários da ainda hoje denominada região do Vale do (rio) Sousa.
Talvez tenha existido a tal cidade romana de Cilpis. Talvez este nome, ou um nome parecido, tenha sido mantido pelos povos que aí habitaram após a derrocada do império romano. Talvez os árabes tenham continuado a usá-lo, naturalmente adaptado. A evidência que é a de que, como quase tudo, também o nome dos lugares evoluem e a Cilpis romana bem pode ter dado o arábe Shelbi que deu o português Silves.
(2) Crismar: mudar o nome.
(3) Indígena: que ou aquele que é natural do país onde habita.
(4) Ver Eduardo Marrecas Ferreira, “Aljubarrota – Pequena Monografia”, Lisboa, 1931. (mas, lá por o frade ter razão em abstracto, isso não quer dizer que a tivesse na discussão onde usou o argumento).
(5) Antes, os holandeses tinham-ma baptizado de Nova Amsterdão.
(6) “Diz-lhe homem!... que eu fui atrás dos franceses até Montevideo!” dizia um velho ataíjense no séc. XIX, como hei-de melhor contar noutro texto.
(7) Todas nas cercanias do rio Amazonas e fundadas no Séc. XVIII e baptizadas com um objectivo bem claro: marcar a posse portuguesa do território.
(8) Ver Bill Brysson, “Made in América”, 2ª Edição, Quetzal Editores, Lisboa, 2006
(9) Ver Nota 4.
(10) Aliás, o olival dos frades da Ataíja, Olival do Santíssimo, apenas foi plantado no Séc. XVIII.
(11) Ver Nota 7. Como já se disse, ao longo do rio Amazonas muitas localidades têm nomes de localidades portuguesas. Foi a necessidade de marcar fronteiras que levou ao seu baptismo por atacado
(12) “O Mosteiro de Alcobaça – (Notas Históricas)” foi, como se disse, publicado em 1885 quando o autor tinha vinte e cinco anos de idade. Trata-se. Assim, de uma obra de juventude, o que justificará alguma ligeireza no tratamento de uma matéria, a toponímia, a que, aliás, julgo, MVN não voltou a dar grande atenção.
(13) Maria Augusta Lage Pablo da Trindade Ferreira foi directora do Mosteiro de Alcobaça entre 199_ e 200_.
(14) Carta de 8 de Abril de 1153, pela qual D. Afonso Henriques doou a São Bernardo “(a sua herdade entre) ...Leiria e Óbidos abaixo do monte Taicha, comarca de Lisboa, águas vertentes ao mar. Damo-vos, também o lugar que se chama Alcobaça...”
(15) Alguns exemplos: Ponte de Lima, é, certamente, a povoação que cresceu no lugar onde havia uma ponte sobre o rio Lima. A ponte é sem dúvida anterior à povoação ou, pelo menos, ao nome actual da povoação. Todos concordaremos que não faria sentido uma povoação sem nome à espera de uma ponte para ser baptizada. O mesmo se passa com Oxford (Ox - nome de rio, ford – vau) ou Cambridge (Cam – nome de rio, bridge – ponte), tal como no caso de Ribadesella, em Espanha, nas Astúrias (Riba – de – Sella: acima [na foz] do rio Sella ou com as portuguesas Ribamar [sobre o mar] ou Ribadave [sobre o rio Ave]), ou os casos de Ribatejo e Alentejo, significando, respectivamente, acima do Tejo e para além do Tejo. Também Odemira, Odeceixe, Odeleite e Odelouca foram buscar os nomes aos rios que as banham. Caso muito curioso é o do Rio de Janeiro. Assim baptizado foi o rio que aliás o não era, como se veio a verificar.
O mesmo para Alcobaça e apoiando a tese que defende que o nome resulta da junção dos nomes dos rios, melhor do que o árabe al-Qubasha (carneiros); ou o latim Helicobatia. A verdade é que se podem encontrar, em todo o mundo e sem grandes dificuldades, centenas (provavelmente, milhares), de povoações que receberam o nome dos rios que as banham mas não conheço (existirão – não há regra sem excepção –) casos inversos.
(16) Os nomes dos lugares mencionados na carta são de extrema importância porquanto, para além do objectivo prático que era o de definir as fronteiras do território doado, têm para nós um valor acrescido resultante de dever reconhecer-se que se trata de nomes correspondentes a locais concretos (não significa que se tratasse, necessariamente, de povoações, lugares habitados.) e que têm de se presumir suficientemente conhecidos e reconhecíveis para serem entendidos mesmo por quem previamente os não conhecesse, como era o caso do donatário.
(17) Andam
(18) Mélvoa
(19) O que afasta a hipótese romântica de Pataias ser corruptela de “à pata, aias”.
(20) "Os rios deram o nome a Alcobaça ou Alcobaça generosamente se dividiu em dois para não ficarem os rios anónimos? Parecem brincadeiras de viajante mas são assuntos sérios. E não está bem que nos dêem explicações que nada explicam. Ainda que se deva reconhecer que é perfeitamente possível viver e trabalhar em paz, mesmo sem estar resolvido o problema do nome de Alcobaça." José Saramago, Viagem a Portugal, Círculo de Leitores, Lisboa, 1991, p. 160.
(21) Frei João de Sousa foi um célebre arabista, nascido na cidade de Damasco, na Síria, cerca de 1735, filho de pais nascidos na Índia Portuguesa. Faleceu em Lisboa em 29 de Janeiro de 1812. Para a biografia de Frei João de Sousa, ver http://www.arqnet.pt/dicionario/sousajoaof.html, Edição electrónica © 2000-2003 Manuel Amaral, que transcreve “Portugal - Dicionário Histórico, Corográfico, Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico”, Volume VI, págs. 1045-1046. Edição em papel © 1904-1915 João Romano Torres – Editor.
(22) Prof. Jorge Carvalho Arroteia in http://www.museumonteredondo.net/historia.htm#Capítulo_3.
(23) In Pedro Gomes Barbosa (coordenação) “A Região de Alcobaça na época romana – A estação arqueológica de Parreitas (Bárrio)”, Edição do Município de Alcobaça e do Instituto de Estudos Regionais e do Municipalismo Alexandre Herculano da Faculdade de letras da Universidade de Lisboa, 2008.
(24) Sabemos, no entanto, que a região foi habitada no período Neolítico (o que é diferente de ser habitada desde o Neolítico).
(25) Ainda que alguém por aqui habitasse, o povoado teria tão pouca importância que não seria adequado à marcação de limites tão importantes como os da doação ou os de Leiria. Ao contrário, a serra é um marco evidente.
(26) Mas essa é questão para ser discutida num outro texto.
(27)Mesmo ao lado poente da ponte 25 de Abril.
(28) Tal como aparecem grafadas em árabe no mencionado livro de Frei João de Sousa
Ataíja:
Coroar:
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